quarta-feira, 28 de junho de 2017


       RENEGAR É PERTENCER

    (Este meu gosto bizarro, que não me larga, de interpretar a actualidade pela leitura de jornais velhos…)
 
 
    O autêntico escritor escreve primeiramente para si próprio, por necessidade, compulsão, imperativo. E pelo gosto de. Idealmente  escrevemos para toda a gente, ambição nunca preenchida. Todos queremos ser lidos. Só por excesso de timidez ou autodesconfiança, ou sob pressão de circunstâncias hostis, escrevemos para a gaveta. No fundo há senpre uma esperança. Para voar, a asa precisa de encontrar a resistência do ar.
 
 
Talvez não haja muitas entrevistas importantes de escritores nacionais importantes por aí à disposição – repito: entrevistas importantes de escritores importantes.Pode haver um número apreciável de entrevistas ao enfatuado escritor português, aquele modernaço, prolixo, hiper-adjectivante, sentencioso, palavroso, universitário, inautêntico, professoral, pretensioso e quase sempre pseudo-qualquer coisa.
Estou a ser injusto e parvo? Estarei. Devo estar. Que se há-de fazer? Correm-se sempre riscos quando se opina.
 
 
E foi o acaso que veio em meu socorro ao descobrir em papeladas vetustas uma entrevista interessante e justamente com um dos escritores portugueses contemporâneos da minha preferência. Falo de José Rodrigues Miguéis. Gosto. É verdade. Acho-o muito jovem. No melhor dos sentidos. Será por ter vivido tanto tempo fora de Portugal? E logo na América!
 
 
Respiguei de José Rodrigues Miguéis uma entrevista, melhor dizendo, um inquérito do suplemento literário do há muito falecido Diário Popular. Viviamos todos então o mês de Outubro de 1975 - vejam bem onde chega a minha vetustez informativa...
 
 
Sente-se integrado numa geração? - primeira pergunta. Nem por isso – primeira resposta. Que se desenvolve assim: só com a Seara Nova (a original) me senti participante da geração pós-Ultimatum e do jovem fervor republicano; e sobretudo do espírito crítico, reformador, actuante. As ideias impeliram-me desde cedo para fora da minha órbita natural. Poderia ter sido diferente? Não sei. A minha geração não existia quando comecei a romper a casca como um patinho feio. Um estranho.
    Um estranho. Pois se calhar foi por isso que na juventude comecei a apreciar José Rodrigues Miguéis. O cidadão é o escritor por fora, como este é o cidadão por dentro. Como  separá-los?
A retórica da pergunta que segue espelha alguma coisa do que me intimida no intelectual português: Parece-lhe que seja o acto de escrever dissociável da inserção do escritor-cidadão na comunidade? (Uff!) Resposta: escrever é de todas as ocupações a mais pessoal, solitária, ensimêsmica. 

José Rodrigues Miguéis aponta um supremo alvo para o escritor: a liberdade. Diz: não sendo funcionário público não deve contas a ninguém. E se errar, meu caro Dr. José Rodrigues Miguéis, e se errar? Que o pague. Há obrigações que são impostas, Dr. Miguéis… as obrigações e deveres impostos de fora são invenção de medíocres, oportunistas ou pescadores de águas turvas… procuram servir-se da literatura para atingir os seus fins… extra-literários… ornar-se com plumas alheias… exercer autoridade sobre outros…
 
                                                

Pergunta sobre a profissionalização do escritor…
Nos anos 30, José Rodrigues Miguéis vai tratar do bilhete de identidade. Escritor não é profissão, berrou-me enfurecido o funcionário. Então olhe, ponha… vagabundo… ele pôs um risco. Talvez tivesse razão.
 
 
O profissionalismo é alheio à literatura, à criação, pensava Miguéis. Não era escritor quem queria. Nem as sociedades e agremiações da especialidade resolviam a contento o assunto. Pergunta ele: alguém ousaria dizer que Picasso ou Chagal são pintores profissionais? Ou que Schönberg ou Stravinski são compositores de ofício? E o Eça, cônsul de profissão?
Tudo isso seria exterior ao fundamental, a criatividade. Ninguém se associa para ter talento – nem só porque o tem. Homero, Voltaire, Rousseau, Karl Marx: não precisaram de ser sócios para inventar as ideias e propagá-las.
No entanto, Miguéis não vai fora da hipótese de o escritor poder ter um emprego estranho à literatura que lhe permita escrever com independência. Mas um emprego que não o ocupe todo, que não lhe interfira com as tarefas da escrita, que não lhe condicione os movimentos mentais. Óbvio. Só os que lucravam com a escrita dispensaram outras actividades.
Ninguém nos mandou escolher a via do sacrificio, pois não?
Escritor profissional, que é isso? Aquele que escreve o que lhe mandam? Seria viver em estado de dever. Esse seria um funcionário. Miguéis não podia com isso. Antes a liberdade – que para ele era a mais dura das disciplinas.
Pergunta do inquérito do Diário Popular (de 1975, sublinho): e o Estado? O Estado deveria ajudar o escritor? Resposta: facilitar-lhe a educação, sim. Deixá-lo em paz para escrever o que quiser também. Para lhe assegurar os direitos de autor que sofrem demasiadas limitações, sim… e que  Miguéis particularmente em Portugal considerava uma farsa…

                             

Como o profissionalismo, todo o mecenato me é odioso. Não tem que ver com o génio ou a criação.É certo que grande parte da literatura é vigarice ou fabricação… isto é ele, Miguéis, que o diz, não sou eu, an?
Fala José Rodrigues Miguéis: a sociedade só tem que acatar os génios, reconhecê-los, remunerá-los dignamente – afinal parece que já são deveres a mais.
Mas sim, Dr. Miguéis (quando se fala com um português é sempre de óptimo tom tratá-lo terceiromundisticamente de doutor ou engenheiro. Posso dizer “sr. Faulkner”, “sr. Mauriac”, “sr. Flaubert”, ou “sr. Céline” – este que por sinal era doutor, médico -, porque são escritores de relevância mundial, mas para um português… que não é político, mas enfim, é escritor… é preciso respeitinho, sr. dr. E José Rodrigues Miguéis, como bom escritor português, era doutor, licenciado em Direito.)
Mas ia eu a dizer, Dr. Miguéis…  quem, na sociedade pode julgar ou avaliar o génio? E como? Pelo êxito? É o dr. mesmo que o diz: não basta; e por vezes ilude. Então, como, dr.? Pela duração? Mas aí o dr. diz que pode vir tarde e ninguém a sabe prever. E diz mais, que o gosto, o mérito e tudo isso vai mudando com o tempo, e assim estamos no beco sem saída. E o mais que o dr. ainda diz a isso é: não confundamos democracia com mediocridade – que é o que mais confundimos, por acaso, não podia deixar de ser, em que país estamos? -,  nem confundamos justiça com choradeira. E por aqui se fica o dr. quanto à instância social avaliadora do génio…
 
 
Nascido em Alfama, mais lisboeta do que José Rodrigues Miguéis não pode haver. Formou-se em Direito. Em 1924. E também se licenciou em Ciências Pedagógicas por Bruxelas. Em 33. Era compagnon de route de velhos republicanos e de velhas revoluções, foi amigo de Raul Brandão, de Jayme Cortesão, de António Sérgio, de Bento de Jesus Caraça, de José Gomes Ferreira, e depois expatriou-se. EUA. Em 1935. Lá, foi redactor associado do Reader’s Digest e por lá escreveu grande parte da obra. Literariamente, José Rodrigues Miguéis quer dizer Páscoa Feliz, Leah e Outras Histórias, Saudades para Dona Genciana, A Escola do Paraíso, Gente de Terceira Classe, Nikalai Nikalai, O Espelho Poliédrico, O Milagre Segundo Salomé. Para só mencionar alguns títulos.
 

 
 
Pergunta: quantas horas trabalha e quantas páginas produz por dia? Resposta: estava com 73 anos na altura da entrevista, e naquela idade era imprudente falar em horários.
 
 
Deitava-se tarde, dormia mal, levantava-se a desoras. Lia quanto lho consentisse a saúde, a vista, o cérebro e o coração. De noite. E nem todos os dias escrevia. Ah,quem me dera! Dez ou quinze anos antes ainda era menino para produzir dez ou vinte páginas de 375 palavras. Não se considerava um escritor fácil. Espontâneo sim. E até torrencial… sim, sim, mas insatisfeito, severo, sempre em busca da fluidez da expressão…
No tempo da Páscoa Feliz? Tinha 25 anos… sei lá como a concebi. Dispersava-me por mil tarefas, políticas, pedagógicas, altruístas… perdia o meu tempo. Hoje tenho muito mais ideias. Não vivo para mais nada. Guardei-me para tarde, e a idade não perdoa.Inspiração? Não sei.
Necessidade de um estado de excitação, exaltação mental ou afectiva, sim, creio nisso. A razão intervém depois da escrita espontânea e automática e vem refazer a arquitectura da escrita.
Dr. Miguéis… e planos? Planos? Planos de escrita. Não me lembro de os ter feito. Então e como é que o livro… o livro surge à medida da invenção-criação, como n’O Milagre Segundo Salomé. Admito, está bem, que em certos casos… o plano, o plot, seja indispensável, pelo menos aproximativamente. Tenho histórias que escrevi de um jacto, sem saber para onde ia e em que a minha surpresa de escritor, no fim, era a mesma do leitor desprevenido…
E ambiente de trabalho? Isolamento? Solidão e silêncio. Indispensáveis. E só eu sei quanto lhes sofro o excesso… e a falta… quando rapaz escrevia onde calhava… em cafés, claro… mas, sabe, escrever, como amar, exige certa privacidade… e sempre escrevi à mão, de impulso…
Sim, mas depois vinham as revisões, as recópias, a forma final, legível, sempre, como ele diz, pensando no irmão tipógrafo. Máquina só nas versões finais, três ou quatro, e operando apenas com os dois indicadores. A máquina, pensava ele, tornava um escritor prolixo. A máquina falava demais, desviava-se do assunto.
A mão é um órgão económico, disciplinado, fiel. Embora ainda hoje não possa entender o que escrevi num relâmpago, tão depressa ia a mão. E não me envergonho de dizer que agora, aos 73 anos, a minha mão está mais renitente.
 
                

Dr. Miguéis… há essa coisa a que no seu tempo se chamava vício e que agora é adição… a adição dos artistas criadores, copos, tabaco, algum estimulantezinho… sempre fumei enquanto escrevia. Há um ano deixei de fumar e sinto-lhe terrivelmente a falta. Torna-se mais difícil escrever. E até pensar.
Ainda bem, dr., que não vive já em 2017. Teria que se deixar domesticar e transformar-se num caniche socialmente bem comportadinho e comercialmente útil. Se fumasse enquanto escrevia no café, estava feito, pois estava, estava sujeito a que o denunciassem… não, a PIDE não, que ideia… já não temos disso. Esses eram uns broncos. Agora, por lei, denunciamo-nos uns aos outros. Por causa da política? Não! Por causa do cigarrito. A subversão agora é essa. Claro, dr., mais perigoso do que ser comunista em 1950.
Há quem diga que o fumo estimula o talento, a tal inspiração. Não  sei dessas coisas. Mas estes tempos que o dr. não vive e que são o futuro com que sempre sonhou, não precisam para nada de talento nem de inspiração. Só precisam de saúde – pelo menos física, e aparente. Saúde e respirar os escapes dos carros e sofrer as saudáveis consequências dos transformações climáticas por mor das descargas sei lá de quê para a atmosfera. Descargas de quê? De fumo de cigarro. De que havia de ser?
 
 
Nunca bebi nem tomei drogas. Mas creio que o tabaco, como certas drogas, anfetaminas, efedrinas, ritalinas, e mesmo bebidas alcoólicas podem reforçar os poderes de expressão e de concepção. Mas ó dr. o mundo já não quer nada disso. Essas coisas desencadeiam os demónios interiores. Ah, pois por isso. Eestamos cheios deles. E agora desencadeiam-se mais em família e pouco lhes dá para a criatividade – a não ser alguma criatividade assassina. Sabe lá o que vai para aí de violência doméstica, da doméstica e da outra, de qualquer outra, de todas as outras! Deve ser por causa do tabaco…
Mas voltando ao que interessa… cadernos de notas, apontamentos…  por muitos anos não tomei notas das ideias que me ocorriam. Tinha a invenção pronta e frequente. Por volta dos 40 anos dei em fazê-lo, ocasionalmente, e só então me dei conta da sua importância. Foi um erro não ter começado mais cedo. Com   a idade a memória torna-se infiel.
Pergunta mecânica: corrige muito os manuscritos? Ou pouco? E as provas tipográficas? 
Resposta: a minha regra é entregar um original definitivo, sem emendas.Nunca altero nada nas provas. Bons tempos os do Eça e do Fialho que podiam arruinar o editor à força de alterações.
Livros de consulta… o meu livro de consulta é a minha reserva de situações, ideias, tempos, modos, afectos, casos, expressões. Evito escrever sobre assuntos que obrigam a demoradas documentações.
Quem diz livros de consulta, diz livros de cabeceira…
Em tempos tinha sempre à cabeceira uma pilha de livros, que não acabava de ler, os convívios absorviam-me o tempo. Leio hoje mais e melhor, embora sem método nem disciplina, três ou quatro livros ao mesmo tempo…
Na cama só leio na doença. Ou para adormecer. Descartes descobriu que a cama é boa para pensar…
A tudo prefiro as memórias. São as vidas, não as ficções, que me empolgam.
 
 
José Rodrigues Miguéis é outro autor que torce o nariz às influências. Que tem dificuldade em assumi-las. Quanto mais não seja directamente. Possivelmente o Camilo, o Eça. Ou o Brandão. Ou o Aquilino. Talvez esses. Esses podem-no ter influenciado alguma coisa. Diz ele: a imitação é o ensaio do vôo literário. E fala dos russos – era um adepto da cultura russa, pelo que me pareceu. Fala dos russos e fala de Balzac, de Flaubert, de Stendhal, de Gide, de Aragon, de Malraux. Fala dos mestres americanos – será por isso que gosto da escrita de José Rodrigues Miguéis, por essa hipotética, mesmo que ténue, influência dos mestres americanos?
 
 
Devo ter aprendido com todos esses alguma coisa. Mas a minha maior influência fui sempre eu próprio, o meu modelo e paradigma.
O inquiridor do Diário Popular quer saber se o Dr. Miguéis já era bom em redacção na escola. Resposta dele: que era, mas que tinha más notas, que só tarde os professores compreenderam. Conheci sobretudo mestres de banalidade. Pois havia de cá vir abaixo outra vez Dr. Miguéis, para conhecer os mais lídimos mestres de banalidade.
Só o leitor e o tempo fazem o escritor, só eles importam.
Autobiográfico na sua ficção, Dr. Miguéis? Toda a obra literária é autobiográfica, mesmo quando virada do avesso. A própria fantasia, a escolha do assunto, as personagens, definem uma propensão.
A obra é um prolongamento da personalidade, e é a revelação de uma personalidade o que entusiasma o leitor, ainda que inconsciente disso.
 
     

O Dr. Miguéis declarava em Outubro de 1975 – nas vésperas da extinção do verão quente -  não cultivar o histórico. Nem o técnico. Nem se dar a excessivas apoquentações com a exactidão cronológica. Só lhe interessava o reflexo que a leitura determinava no espírito do leitor. Preocupava-se com o rigor da caracterização e da expressão, a sugestão de verdade, o ambiente, o modo, o clima, os afectos. E a fluidez do estilo que pudesse penetrar insensivelmente o leitor como se fossem raios cósmicos a produzir um efeito emocional.
 
 
E acerca da escolha dos nomes da suas personagens achava ele que quase sempre os nomes se escolhiam por si. Alípio, Aparício, Engrácia,Buldogov,Orapronobsky.Dona Genciana – o nome de uma planta afrodisíaca cuja flor rôxa produz uma tintura usada no passado em doenças de pele – um nome que se aplicava lindamente à personagem.
    Estou um pouco além da idade de aprender.Assistir a palestras só por obrigação. Tertúlias literárias não as há nos EUA. Bibliotecas. Sim. Trago-as para casa. A Biblioteca Pública de Nova York…
Vai ao cinema? Vai ao teatro? Vê televisão? Visita museus? E galerias? Viaja? As implacáveis inquirições automáticas e impessoais do questonário do saudosíssimo Diário Popular de Outubro de 1975.
 
 
Dantes havia em Nova York casas que mostravam filmes russos. Hoje, que é deles? Franceses e italianos eram a rodos. Hoje rareiam. Ou eu envelheci ou eles. A pornografia invadiu tudo: a prudência não me aconselha a ver esses filmes. Aliás, são de uma monotonia sufocante.
(Pornografia strictu sensu não direi tanto da escolha cinematográfica de hoje, mas porrada, pseudo-antecipação científica - desde que meta porrada -, desastres, catástrofes, sangue a golfar, filmes feitos em computador, o cineasta deixou de ser um artista, passou a ser um técnico, porque o cinema deixou de ser arte e ficou-se pelo entretenimento… é assim dr., que se há-de fazer?)
E será que a opção política, ou a vinculação partidária eventual tiveram influência no que José Rodrigues Miguéis escreveu? Ele admite que sim. Mesmo que não julgue isso imperativo. A opção política fora sempre para ele um estímulo. Uma obsessão também. Uma devastação na minha vida.
Escritores empenhados, comprometidos, engagées. Fala o próprio. Há que distinguir os que o são: 1) em palavras e batendo as mãos no peito; 2) na obra; 3) na vida, como cidadãos. Era aí que se lhe verificava o engagement. Mas excluía a probabilidade de ter sido comandado, ao escever, pelas convicções próprias. Não foi assim? Sim. Foi. Escrevo como se presumisse que a revolução é um facto passado em julgado, consumado, que me torna livre de escrever sem peias. A revolução, porém, não é em si um fim, mas um meio. O seu intuito é realizar a crescente e possível felicidade dos homens no seu conjunto. Não deve sacrificar os homens aos esquemas.
 
 
E por falar em revolução e em possível sacrifício dos homens aos esquemas,aos sistemas, em Outubro de 75 seria inevitável que se perguntasse a José Rodrigues Miguéis pelo 25 de Abril. Que impacto lhe provocara como escritor.
 
 
Diz ele que o 25 de Abril não foi o fim de uma época. Diz que foi o amanhecer de um tempo novo. Restaria saber até que ponto seria eficaz. As revoluções interessam-me como fenómenos de cultura, sintomas de algum estádio cultural. Esta teve sobre mim um efeito quase fulminante…
Agora que todos se proclamam de revolucionários, os antifascistas históricos foram anulados. Quando ouço tanto alarido a respeito de liberdade e de democracia, apetece-me correr a fazer um seguro contra a falta delas, ou agarrar uma bóia de salvação. Chego a recear que tantos revolucionários juntos acabem por não fazer a revolução...
 
 
 “Mas então foi para isto que se fez o 25 de Abril?”, ainda se pergunta hoje, 2017. E pela minha parte só gostaria de lhes poder responder “pois foi”.
José Rodrigues Miguéis não disse o que se leu atrás. Só disse assim: o escritor é um ser que filtra, reflecte e medita o seu mundo e a sua vida, o seu papel e posição neles. É impensável fora da sociedade cujo ar respira… é impensável isolado ou dissociado, mesmo quando julga opõr-se-lhe ou renegá-la. Renegar é pertencer.
 
 

Mas as opiniões do escritor não valem mais do que as de qualquer homem comum. O que lhes dá prestígio é a qualidade publicitária do entrevistado.
A literatura é uma coisa que se faz… e de que se deve falar o menos possível…
 
 

 

quinta-feira, 15 de junho de 2017


       UM EXEMPLO MORAL CONTRA VONTADE

 
Na verdade é o que sou: um exemplo moral.Mas contra a minha vontade, disse o realizador espanhol Pedro Almodovar. 
 
 
Escrever, filmar, montar, promover o filme. Em cada uma dessas fases criativas se descobrem coisas sobre a história que se conta. Descobrem-se coisas sobre si mesmo e sobre os outros. Pode ser o que inconscientemente se procura quando se escreve ou se faz cinema: entrever os enigmas da vida, resolvê-los ou não. Em todo o caso, revelá-los.
O cinema é a curiosidade, no verdadeiro sentido da palavra.
Gosto de pensar que as salas de cinema são um bom refúgio para os assassinos e os solitários. E também me agrada considerar o grande ecran como um espelho do futuro.
 
 
Pedro Almodovar dá-me a ideia do génio do cinema alternativo a Manuel de Oliveira que poderiamos ter em Portugal se tivessemos a fortuna de sermos um país propício à originalidade e ao nascimento de génios, em vez de imitadores seja do que for.
Pedro Almodovar acentua: comecei a fazer filmes quando a Espanha se tornou democrática.
Sem o elemento democracia entende ele que nunca poderia tornar-se cineasta em Espanha.
Quando estive em Cannes quis saudar o público espanhol, porque foi o meu primeiro público e foi graças a ele que continuei a fazer filmes.
 
 
Temas. Descubro o meu tema ao escrever a história. Nunca começa sabendo de antemão o tema que vai tratar. Pois por isso é que a escrita é  uma grande aventura para mim. Imagina que o tema está dentro dele e precisa de algum trabalho para que ele lhe apareça de forma consciente. Sim, muitas vezes o motivo narrativo que me leva a escrever é apenas um pretexto. Assim como muitas vezes aquilo que ele pensava ser o centro da história desaparece à medida que a escreve.
Não se questiona sobre se é ou não um cineasta de vanguarda. (Ainda bem – comentário meu). Eu trabalho na mais figurativa das artes que é o cinema, diz. Cinema que, por sinal, ele acha que não avançou tanto como a pintura, Nenhum cineasta conseguiu dar um equivalente filmico do que foi o cubismo, o dadaísmo, o expressionismo ou a abstracção. O cinema nunca se ultrapassou muito a si próprio. Por isso digo  que há pontos de vanguarda que não têm lugar no cinema.
 
 
Kitsch? Nunca escrevi em espírito de paródia,mas as religiosas de Negros Hábitos pertencem conscientemente a um universo kitsch. Nessa época, as referências dele vinham principalmente do cinema. Pensava em Sara Montiel.
É verdade que pensava em Sara Montiel quando ela fazia papeis de religiosa. E pensava em mais quê? Talvez num certo  cinema espanhol pop em que as boas irmãs educavam e salvavam adolescentes. Esses eram filmes-trampolim para actrizes estreantes que depois seriam estrelas. Pense-se em Marisol. Almodovar pensa também em Rocio Durcal. Então, Negros Hábitos é uma espécie de piscadela de olho… é, ao cinema religioso pop, assim como achei que o tratamento das personagens apostava numa distância humorística. A Irmã Rosa foi-me inspirada por um artigo sobre as religiosas que se consagram especialmente aos travestis.
 
 
Ora aqui está ma coisa que Almodovar me está a ensinar e de que eu não fazia a mais pequena ideia. Essas religiosas, diz ele, tentam dar aos travestis  a possibilidade de sairem da prostituição.
Tentei arranjar documentação sobre a actividade dessas religiosas. Estava muito curioso de saber como se desenvolvia a interacção travesti-religiosa. Seria engraçado, mas Almodovar não conseguiu permissão para observar essa realidade de mais perto.
 
 
A escrita e a técnica, amigo Almodovar. Ah, cada vez suporto menos escrever para dar uma descrição técnica, informativa. “Manuela sai à rua, espera por um táxi, chega à estação”. Todos os establishment shots me aborrecem. Eu quero ir ao essencial. E logo desde a escrita.
Na montagem estava a etapa decisiva da realização de um filme. Questão de ritmo. Questão de cadência de cenas. Quanto tempo esta personagem deve ficar á porta do quarto daquela outra para que se sinta o tempo certo? Difícil.
O ritmo deve estar no interior dos planos. O ritmo e a respiração do fllme devem ser encontrados desde a rodagem.
Eu faço filmes que encontram a sua orígem na realidade, mas que não são estudos de costumes realistas. A realidade dá-me a primeira linha do argumento, mas a segunda sou eu que a invento. E esta segunda linha não aperfeiçoa a realidade a não ser do ponto de vista dramático. Não a torna melhor nem mais bonita. Torna-a mais interessante cinematograficamente. O cineasta aproxima-se de Deus. Faz com que as coisas aconteçam.
 
 
Mas a ideia do cineasta como Deus suscitava a Almodovar algumas perguntas. Qual o controlo que efectivamente se pode ter  sobre aquilo que se cria. Quanto custa ao criador criar as coisas que cria. Que nível de dor sente ao ver o resultado da sua criação.
Escrever? Sim, tomar notas sobre a realidade. Como os esboços dos artistas? Isso mesmo. Mas esboços literários. Os meus esboços são sempre literários.
Em geral, quando os cineastas falam da ideia que tiveram para um filme descrevem uma imagem. Essa imagem vai conduzi-los à história. Mas com ele não se passava assim. Para mim, no início, há sempre palavras, falas, uma história que me conduz às imagens do filme.
 
 
Filme A Flor do Meu Segredo. A personagem feminina reencontra o marido. Zanga-se com ele. Foi a primeira coisa que escrevi. Depois, perguntei-me: como é que esta mulher chegou aqui? Como vai ela desenvencilhar-se?
Procuro os locais onde a personagem viveu, as personagens secundárias que estão em relação com ela. É como que um trabalho de detective. Um detective, entretanto, que seguia pistas que ele próprio inventava. Diz ser essa a mecânica de escrita dos escritores mesmos. É um processo misterioso, mas comigo é assim que se passa. Às vezes leva-lhe um ou dois meses. Outras vezes custa-lhe quatro anos. É verdade. Mas a sequência-mãe tem de ser sempre forte.
Anda me sinto ligado a essa velha ideia, segundo a qual, como dizia Rossellini, os filmes devem ser transparentes para o espectador.
 
 
Praticaria Almodovar um estilo de narração subsidiária do das Mil e Uma Noites, uma ficção interrompida por outra ficção, que é por sua vez interrompida para que se volte à anterior. Porque gosta das ramificações narrativas, dos desenvolvimentos vivos. E compreende que seja por isso que os escritores gostam dos filmes dele: a narração literária estaria muito mais avançada do que a do cinema.
Ecletismo e liberdade. Considera o ecletismo estético-cinematográfico uma maneira muito fin de siècle de contar histórias. Hoje, as pessoas voltar-se-iam mais facilmente para o passado, seleccionariam as histórias desse passado e juntar-lhe-iam as histórias do presente. Em fins do século XX haveria tendência para os balanços. Já se sabe o que aconteceu e todos os estilos seriam possíveis. Mas ele não tivera uma educação clássica e por isso o ecletismo dele era natural. Sempre fora indisciplinado e assim mantivera alguma liberdade.
 
 
Roubar uma ideia a Brian de Palma? Em Que Fiz Eu Para Merecer Isto roubei alguma coisa de Carrie. Acho legítimo. Ele próprio roubava, ele, Brian de Palma, ideias a outros cineastas, sendo ainda assim um grande criador.
Almodovar também faz profissão de fé em não ser aquele realizador cinéfilo que de quando em vez não resiste à citação de outros realizadores que admira. Não é cinéfilo, mas não se segue daí que não possa utilizar alguns filmes de outros como parte activa dos argumentos próprios. Não o faz, contudo, como homenagem a ninguém. Fá-lo como roubo. Passa a fazer parte activa da história que ele quer contar e por isso não é homenagem. A homenagem é passiva. O cinema que viu converte-se em experiência própria e automaticamente em experiência das personagens dele.
 
 
Pergunta-lhe o entrevistador: achas que as dificuldades em reunir condições financeiras para fazeres A Lei do Desejo resultaram de uma censura moral disfaçada? Claro que sim. Completamente. Já não há censura oficial em Espanha. Mas há uma censura económica e moral. A Lei do Desejo é considerado por ele um filme-chave na carreira. Sim, é. Recebi em Espanha muitos prémios pelos meus filmes, mas por este nem um.
 
 
Por falar em desejo, Alomodovar gosta tanto de Tennessee Williams que não só envolveu Todo Sobre Mi Madre na peça Um Eléctrico Chamado Desejo,como ao fundar a sua produtora lhe deu o nome de Deseo Films.
 
 
Gosta do teatro de Tennessee Williams, pensou em encenar algumas peças dele e não o fez, porque?, por achar que a repressão sexual presente na obra de Williams está desajustada aos tempos actuais e que para lhe dar algum cabimento teria de pôr mulheres a representar alguns dos papeis masculinos, o que seria escândalo por demais.
 
 
A minha educação enquanto espectador foi feita nos filmes adaptados de peças de Tennessee Williams, em especial O Eléctrico Chamado Desejo.
A Lei do Desejo, o filme, ainda. Quando comecei a escrever queria falar sobre o processo de criação, a maneira como a vida de um realizador impregna o seu trabalho, o modo como ele vampiriza a sua própria vida, parecendo viver apenas para escrever histórias, o modo como a união entre a sua vida e a sua máquina de escrever se pode tornar, neste processo de trabalho, uma coisa quase monstruosa.
Há uma necessidade de se sentir desejado, mas é muito raro que dois desejos se encontrem e se correspondam. É uma das tragédias do género humano.
Um cineasta recebe carta do rapaz de quem gosta. Porém, não a carta que gostaria de receber. Então, senta-se à máquina e escreve ele a carta que gostaria de receber. E envia-a ao rapaz de quem gosta. E recomenda-lhe que a assine, que a meta no correio e que lha reenvie.
 
 
Há algo de surpreendente e de muito forte em Todo Sobre Mi Madre. Será que Almodovar pôs nesse filme tudo aquilo de que gosta?
Tudo o que gosto? Sim, literatura, espectáculo, bastidores, mulheres, actrizes, mãe, filho, travestis. Tudo o que filmara em Todo Sobre Mi Madre parecia tocar-lhe o coração. E era verdade.
Era verdade. Tudo isso lhe era próximo, forte e profundo. É sem dúvida dos filmes mais intensos que já fiz. Quer dizer que nos outros podem ter ocorrido sequências banais? Nâo. Mas neste eu quis ir ao essencial de cada sequência. Elipses, muitas. Exacto. Dá uma sensação de intensidade. Pode ser asfixiante.
O mundo dos travestis e da prosituição já ele o tratara noutros filmes…  pois já, mas em Todo Sobre Mi Madre abordo-os de maneira diferente. Acho que com os mesmos elementos e as mesmas personagens se podem fazer milhares de filmes.
 
 
Acerca do tema do travestismo, Almodovar refere ter conhecido certas pessoas… conheci, conheci pessoas que viveram em Paris, que fizeram implantes mamários em Paris e vieram trabalhar para Barcelona, tal como Lola de Todo Sobre Mi Madre.
Essa personagem de Lola seria inspirada directamente por um travesti. Foi inspirada por um travesti que era proprietário de um bar em Barcelona e que vivia lá com a mulher. Bem, mas esse travesti, e aqui está a piada, proibia a mulher de usar mini-saia, enquanto ele se podia passear em biquini. Por uma questão de moral, digo eu.
Foi assim mesmo, e quando me contaram essa história fiquei impressionado. Era a manifestação perfeita do carácter irracional do machismo. E guardei esta história com a ideia de me servir dela um dia.
O machismo – isto digo eu – não deve ser muito mais do que a exacerbação de um conceito moral. E alimenta-se por isso de uma restrição moral muito forte. Não sei, isto digo eu.
E um dia, em Barcelona, Almodovar faz pesquizas para a tal personagem de Lola. E descobre coisas espantosas.
Conheci um travesti de 45 anos que andava na prostituição com o filho que tinha vinte e poucos e que também era travesti. Quando o rapaz fez anos o pai travesti e a mãe ofereceram-lhe como prenda uma operação às mamas.
 
 
As cenas mais bizarras de Todo Sobre Mi Madre são inspiradas na realidade, mas, pelo que nos diz Almodovar, estão ainda um bocado aquém da realidade.
As mães de Almodovar ficam sempre próximas da sua própria mãe. E a mãe-personagem de Almodovar sempre foi uma mãe da classe social da qual ele provinha.
No tempo desta entrevista, Almodovar ainda tencionava produzir um filme em vídeo sobre a própria mãe. Punha-a diante da câmara e convidava-a a falar. E que falasse o mais possível. A mãe tinha necessidade de falar. E está visto que, como ele é cineasta, não poderia evitar exercer-se com tal, nem que fosse a mãe o objecto filmico. Pensou fazê-la ler os textos de que ele gostava e que gostaria de ouvir ditos pela voz da mãe. E, caso interessante, os textos que ele gostaria que a mãe lesse, alguns deles, eram de Truman Capote, nomeadamente o prefácio à Música Para Camaleões. Acabará por ser um personagem de Todo Sobre Mi Madre  a lê-lo.
 
Todo Sobre Mi Madre é um filme que Almodovar dedica às actrizes que desempenharam no ecran papeis de actrizes, algo que, diz ele, constitui um género de pleno direito no cinema.
É a mãe que te põe no mundo. É ela que te inicia nos mistérios do mundo, nas coisas essenciais, nas grandes verdades. Talvez ele idealizasse um tanto as mães. As mães que aparecem nos filmes dele ele concorda que são iniciadoras. Angela Molina em Carne Viva. Sim. Comporta-se com Liberto Rabal como uma mãe quando lhe ensina a fazer amor o melhor possível. Inicia-o numa coisa importante que é o acto físico do amor.
 
 
Não era que a religião tivesse assim tanta importância para ele… eu acredito é nos rituais…  pois sim, mas não acreditava no que quer que porventura existisse por detrás dos rituais. Mas a mãe era crente… sim, crente na forma espanhola, de maneira pessoal, não espiritualmente, uma crença material e prática. Como assim? Quero dizer, mais idólatra do que transcendente. Ele achava que os espanhóis iam à igreja e tudo isso, mas tinham uma religião doméstica, com santos venerados em casa.
Todo Sobre Mi Madre fala sobretudo sobre o pôr um ser no mundo, da maternidade… bom, maternidade que afinal é paternidade…  sim, e vice-versa.  Almodovar quer dizer que para lá das circunstâncias de cada um… claro, hombre, existe um instinto animal… que nos incita a engendrar…  e a defender o que engendraste e a exercer direitos sbre esse ser que engendraste…
 
 
Um filme também… sobre a solidariedade entre as mulheres, uma solidariedade que se manifesta ao sabor das provações da vida. E que é uma glorificação da frase essencial de O Eléctrico Chamado Desejo:  sempre dependi da bondade de desconhecidos”…
Existiria tal solidariedade entre os homens? Ele diz que não. Não conhece muitos homens – excepção feita aos religiosos – a tentarem ajudar-se, a organizarem-se. Coisa que nem sequer pode imaginar. Parecer-me-ia grotesco. E quanto á ideia dele de melodrama? O essencial. O desejo de ir ao coração das coisas, retirando do caminho o que não seja necessário. Daí as elipses. Que o entrevistador acha um tratamento paradoxal para um melodrama. Paradoxal, sim. Mas eu gosto do cinema de sentimentos, embora os filmes sentimentais no geral não me agradem. E não lhe agradavam em particular os filmes sentimentais feitos no EUA.
 
 
Era pouco menos do que um milagre um filme ser recebido pelo público com as intenções que o realizador lá tinha posto.  
Somos muito complicados. Cada um de nós vê um filme com as próprias referências, através da nossa própria história.
Mas elementos há em filmes dele que ele acha familiares a toda a gente, que toda a gente conhece e é capaz de sentir. Não que eu seja pretensioso e diga que consegui exactamente o que queria, mas tenho a impressão de que há elementos em mim mesmo que podem ser compreendidos em todo o mundo por toda a gente.
Outra coisa: Almodovar, um cineasta da família.
Estranho? Pode parecer estranho, mas é um tema em que eu acho que se lhe manifesta poderosamente o génio inovador. Ele aponta a circunstância que pode caracterizar o fim do século XX: a ruptura da família. Doravante seria possível criar uma família com outros membros, com outras relações, aliás, com outras relações biológicas. E acha ele que as famílias são instituições a respeitar seja qual for a natureza e a constituição delas. Porque há que sublinhar o essencial: que os membros da família se amem.
 
 
Mas as tuas personagens sempre viveram com uma ideia diferente de família - a “voz” do entrevistador. Eu esqueço-me dos filmes que fiz. Repara, uma das religiosas de Negros Hábitos fundou uma família com um padre e um tigre. Sempre vi as coisas com esse espírito. Em Saltos Altos a personagem de Victoria Abril estava à espera do filho de um homem que se travestia para se tornar mãe dele… famílias multiformes, que assentam na afeição.
Em Todo Sobre Mi Madre, repara que a família também é um grupo de teatro. Muito bem, consequência do facto de eu ser um cineasta e trabalhar em equipa com muita gente. Almodovar gosta desse tipo de família constituída pelas pessoas que trabalham juntas e que têm uma base emocional a uni-las.
Penso que a salvação provém do grupo que te acompanha. Sentes-te menos só e o grupo de trabalho acaba por se tornar a tua família.
Será que Almodovar pensou no falecido colega alemão Fassbinder, que criara uma família de colaboradores e que misturava a criação artística com a vida real? Não. Almodovar considera-se menos depedente do que Fassbinder das pessoas que o rodeiam. E além disso diz que recusa fazer como Fassbinder que tiranizava as pessoas com quem trabalhava.
 
 
O grande plano. Diz que tem um conteúdo narrativo muito forte e é de utilização complexa. O grande plano é uma espécie de radiografia da personagem e não permite a mentira. É fácil tecnicamente, mas tem que se estar muito seguro do que a personagem deve transmitir nesse preciso momento. E também muito seguro da maneira como o actor vai passar esse sentimento.
 
 
Um pensamento curioso de Almodovar: hoje em dia, na vida real, existem muitas profissões que não se podem exercer como deve ser se não se for actor. E é verdade. As histórias do cinema ou do teatro repetem-se na vida, mas nunca verdadeiramente acabam da mesma maneira. E queria fazer um filme sobre uma mulher que sabe fingir na perfeição, que sabe representar e desempenhar um papel e que vai desenvolver esse dom no quadro do seu trabalho.
Não sou vaidoso ao ponto de acreditar que cada um dos meus flmes vai ser um sucesso imediato. A incerteza é um estado normal, mesmo quando se está contente com o filme que se terminou.
Na altura em que Pedro Almodovar disse o que atrás se leu, Todo Sobre Mi Madre acabava de estrear em Espanha e preparava-se para competir em Cannes. Abril de 1999. Eu tinha dúvidas sobre o ir ou não ir a Cannes.  O que o incomodava mais era a competição. Não gosto nada da ideia de poder ver filmes opondo-os uns aos outros.
Há um filme que lhe transmite a plena sensação de ter entrado seriamente na linguagem do cinema. Negros Hábitos. Depois veio Que Fiz eu Para Merecer Isto. E foi outro avanço. Um avanço até de ordem pessoal. Senti-me livre para tratar um assunto inspirado pela minha história pessoal, pela minha família, pela minha classe social. Senti-me mais confiante e mais feliz a dirigir actores. E é nesse filme que Almodovar dá o passo decisivo para o que, segundo penso, viria a ser uma das mais notórias características do estilo dele. O abater das barreiras do género. A mistura entre drama e comédia. Dirá ele que tal facto se viria a tornar uma marca de fabrico.
 
 
Pensava que os filmes dele descreviam uma muito coerente progressão, que o filme seguinte completaria o que fora dito no filme que o precedera. E é claro que falo em termos gerais, diz ele, porque Matador, que se seguiu a Que Fiz Eu Para Merecer Isto, é sem dúvida o filme que mais insatisfeito me deixou.
Almodovar escreve um novo argumento. Avança depressa. Està à escrita faz 15 dias, porém sobre notas que vem tomando desde há dois anos. Gostaria de ter a certeza de estar a escrever o argumento do seu próximo filme, mas não se sente em condições de saber se esse argumento é absolutamente ridículo ou absolutamente maravilhoso. Ou, quem sabe, se as duas coisas ao mesmo tempo.Tudo pode depender da maneira como esse argumento for filmado. É, em qualquer dos casos, material de risco.
 
 
Pensa que poderá flmar aquele argumento e apresentar o filme sob pseudónimo. Todos saberão que o filme é dele, mas sob pseudónmo sentir-se-à mais livre. E também sob pseudónimo será menos importante para ele saber se o filme resulta ridículo ou não.
Suponho eu que se tratasse do filme que viria a chamar-se Habla Com Ella. Mulheres que por acidente ou doença deixavam de falar. Homens que com elas, em situações diversas embora, convivem. Gosto da ideia de dois homens que continuam as suas vidas com mulheres que já não falam, mas que são tão expressivas como esses homens, se bem que de outra forma. Não era fácil para ele. Mas a ideia excitava-o.
 
 
Achou que todos se sentiram recompensados quando recebeu o Oscar por Todo Sobre Mi Madre. Porque era o primeiro para um tipo de cinema que marchava no sentido oposto ao da mentalidade da maioria. Sente que os filmes dele estão à margem e que todos aqueles que não pensam em termos de mercado se sentiram recompensados com o Oscar que ganhou. Muitas pessoas me disseram sentir-se identificadas com o meu Oscar, os que queriam continuar a trabalhar sem serem presas do mercado.
Ter-se-á então Almodovar comprometido a ficar refém desse espírito anti-mercado cinematográfico. Mas não queria tornar-se um exemplo moral. Porém, na verdade… na verdade é o que sou: um exemplo moral. Mas contra a minha vontade. Diz ele que a trajectória é… como é? Faz o que queres fazer, confia em ti, sê paciente, não te vendas, e obterás o melhor. Mas não seguiu essa trajectória, diz, por imperativos morais. Não,  segui-a porque era mesmo o que eu queria fazer.
 
 
(Baseado no livro de entrevistas com Pedro Almodovar, assinado por Frédéric Strauss, da editora 90 graus, intitulado justamente Conversas com Pedro Almodovar.)