sábado, 5 de novembro de 2016


      shakespeare 400 – hamlet e o tempo

 


      É mesmo Hamlet que o diz: o tempo desloca-se. Di-lo evidentemente por palavras. Ao autor toca apresentar ao público as provas do que declama a sua personagem, fazer com que o público viva com a personagem a tragédia do tempo.
       

       Shakespeare mostra-nos os sinais desse tempo deslocado, subvertido, imponderável. Durante quanto tempo está o Espectro na presença de Hamlet? Impossível saber. O tempo comporta a sua mesma impossibilidade. O tempo do Espectro não admite medida, concretização.
 
 
        O pai de Hamlet terá sido assassinado pelo irmão, Cláudio, com a cumplicidade da cunhada (mãe de Hamlet), casada com o cunhado no próprio dia das exéquias do marido.
        É quando no pátio da ronda do castelo de Elsenor soa a concreta meia-noite que o Espectro do rei assassinado aparece a Hamlet e lhe revela a verdade – há quem assinale em Shakespeare a estranha pontualidade dos fantasmas régios.
 
 
        O tempo desarticula-se para Hamlet, desestrutura-se pelo aparecimento do Espectro do pai.
        Porquê, quando, como, onde – foi o rei assassinado?
        O rei foi envenenado por uma substância que lhe introduziram no ouvido quanto dormia a sesta debaixo de uma árvore do jardim do castelo.
        A palavra de um Espectro pode fazer prova de um delito?
        Cabe a Hamlet a obrigação de desvendar a verdade repondo a ordem no tempo desarticulado.
 
        Quando uma trupe de cómicos passa por Elsenor, Hamlet contrata-os para representar o assassinato do pai segundo as indicações fornecidas pelo Espectro, e para ver como reage o casal usurpador.
        O teatro no teatro. O velho truque do tempo. O tempo desmembrado e subvertido que se pode reconstituir pela representação do seu ideal. Porque o teatro é uma máquina do tempo, um elemento de revelação. Um tempo da verdade plausível. A busca da verdade, de toda a verdade, terá de passar pela reconstituição do tempo que lhe é próprio.
        E o tempo declara-se eloquentemente sobre duas categorias de vida, o sono e a morte, e competentes relações entre um e outra.
 
 
        A deusa Nix (a Noite) era mãe de dois gémeos, Hypnos e Thanatos. Hypnos, de olhos fechados, é amamentado pela mãe, e Thanatos, pelo contrário, amamenta-se de olhos abertos. E mais a coincidência temporal de sono e morte no mesmo espaço, a noite.
        Se o tempo se deslocou, só a verdade poderá remeter o pêndulo dos relógios à regularidade rítmica ordinária.
 
 
        Mas a representação dos cómicos da tragédia da morte do rei não interpelou o casal usurpador. A desordem do mundo permanece intocada pela representação ideal. A consciência do tempo permanece confusa. A verdade não se manifestou. A busca da verdade na ordem do tempo é tarefa impossível. Hamlet fica isolado no seu desígnio – na sua verdade, no seu tempo deslocado. Não compreende os outros, os outros não o aceitam. É um louco.
 
 
        O louco que se confronta com a caveira de Yorick, o bobo, falecido há anos. O odor dos mortos é sinal do tempo. Nenhum mortal, nem o grande Alexandre, se eximiu a fedor do seu corpo morto, castigado pela ordem regular do tempo.
 
 
Shakespeare domina os meios expressivos para impor uma dimensão dos tempos, o da acção, o da consciência, o da reminiscência do público. O tempo é uma operação intelectual que ao palco compete objectivar.



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