quarta-feira, 26 de outubro de 2016


SHAKESPEARE 400

– A VERDADE DE CADA UM

 
                                                                                                                

Passei a noite a ler os sonetos do porcalhão do Shakespeare. Dois terços dos sonetos são evidentemente dedicados a um jovem. Em cerca de 30 sonetos ele declara que O ama ou lhe chama “querido rapaz”, ou qualquer coisa no género. Como é que pastores da igreja e professores podem fechar os olhos a esta deplorável propensão do poeta nacional? - escreveu um Graham Green de 22 anos, nos seus tempos de Oxford.
 
                        
 
Green atacava Shakespeare, sim, porém, não mais a obra do que o homem. Mesmo assim, não deixando de ver Shakespeare como o mais insigne poeta do conservadorismo que nos tempos modernos se chamaria de establishment.

                                      

Outra voz relevantíssima do firmamento literário universal, T.S. Eliot, disse isto acerca do pensamento e da emoção: o poeta que pensa é apenas o poeta que pode exprimir o equivalente emocional do pensamento. Toda a grande poesia dá a ilusão de uma visão da vida. Quando ingressamos no mundo de Homero, Sófocles, Virgílio, Dante ou Shakespeare tendemos a acreditar que estamos a apreender algo que pode ser expresso intelectualmente, porque toda a emoção tende para uma formulação intelectual.
 
                                                               
 
Como bem notou Arthur Miller, quem, ao longo das idades, se lembrou alguma vez dos críticos que arrasaram Shakespeare no seu tempo? Tanto de Shakespeare como de Moliére, Strindberg, Tchekov…
 
 
Se sempre houve quem dissesse que a escrita de teatro só deveria contar para a consideração de ser literatura desde o momento em que a cena, o palco, lhe desse existência real, houve ainda quem ousasse mais longe (Harold Bloom), dizendo que que a escrita de teatro nunca, em caso algum, seria de considerar literatura, posto que literatura era a arte da palavra lida, mais complexa, mais ambiciosa, de maior exigência estética e intelectual para o leitor do que a palavra dita no palco poderia esperar do espectador. Ressalvando todavia uma única excepção: Shakespeare. Porque para um completo entendimento, uma frutuosa compreensão e um acrescentado prazer a tirar das peças de Shakespeare seria absolutamente essencial lê-las.
 
                   
 
Como também alguém desvalorizou a importância das peças de teatro de tessitura totalmente inventada, e porque os máximos expoentes da dramaturgia universal, Shakespeare, claro (e Ésquilo, e Sófocles, e Eurípedes) articularam as suas obras sobre um lastro de historicidade, lendas seculares, factos, realidades, ou ainda antigas invenções baseadas em realidades históricas.
 
 

Já Hitler apreciava mais Shakespeare (luxuosamente encadernado em couro e ciosamente guardado em Berchtesgaden) do que apreciava o seu compatriota Goethe. Shakespeare era superior a Goethe em todos os aspectos. Shakespeare excitava a imaginação histórica de Hitler enquanto os poetas seus compatriotas desperdiçavam o talento que tinham em insignificantes intrigas e rivalidades familiares. Não obstante toda a Alemanha tivesse proclamado que Goethe e Shakespeare eram da mesma igualha artística e intelectual.

 
 
E mesmo no que se prendia com questões judaicas (tão caras), Hitler lamentava que o século alemão das Luzes tivesse produzido uma obscura obra, Nathan, o Sábio (nunca ouvi falar), história de um rabino que logra a reconciliação entre cristãos, muçulmanos e judeus, quando Shakespeare oferecia ao mundo o seu Mercador de Veneza.

                                                 

 
Citava amiúde Hamlet e apreciava especialmente Júlio Cesar, peça de que chegou a esquiçar um décor de fachadas para o 1º acto – correu até o boato de que ele esperava pelos Idos de Março para tomar decisões capitais…
 
           
 
Peter Ustinov dizia que a literatura psiquiátrica estava bem longe de ter sido estreada por Freud. Muito antes de Freud já Shakespeare tinha trabalhado, e muito, e bem, no assunto – já para não referir Dostoievski.
 
                 

Somerset Maugham escreveu que só uma profunda idolatria se recusava a ver em Shakespeare as negligências da vida dele, e até nas personagens que construía, porque Shakespeare sacrificava tudo aos efeitos de cena.
 
 
 
 
E Wagner?
Enquanto Shakespeare nos mostrava o mundo tal como era, Goethe dava-nos a serenidade do espirito livre que o contempla – assim o entendia Wagner.
 
                                                                                             
         Wagner assumia-se devedor de Shakespeare – como dos gregos, como de Goethe, está visto; como de Beethoven. Sonhava poder chegar à fala especialmente com Shakespeare e Beethoven. Considerava-se o herdeiro musical de Beethoven, e escolheu o assunto shakespeariano de Measure For Measure para uma das primeiras óperas Das Libesverbot.
 
                                     

Martin Amis afirma que o teatro é evidentemente inferior ao romance e à poesia. E pergunta-se pelos dramaturgos que duraram no favor do público mais de um século. Os quais vêm a ser… Shakespeare. Shakespeare e quem mais?

 
Injusto. Acho eu, quando ele disse que depois de Shakespeare se ia à procura de um qualquer “norueguês sepulcral”. E até tinha graça essa coisa de Shakespeare ser dramaturgo. Era uma das melhores piadas de Deus.
 

 
Eduardo III e Sir Thomas More – peças atribuídas a Shakespeare que depois lhe foram retiradas da autoria. Que terá sido feito delas?
 
 
A primeira edição shakespeariana aparece em 1623, e realizada segundo um critério dos seus amigos. Parece que Shakespeare participou pessoalmente, ainda, num plano geral de edição da obra, que no entanto nunca chegou a ver concretizado.
O pecúlio lexical do Bardo são 30.000 palavras. Ou então atentemos numa outra estatística que estabelece 29.066 vocábulos diferentes para um total de 884.647 palavras.
Que interesse tem isto?
 
 
No testamento de Messer William Shakespeare nem sombra de referência às suas obras.
Estranho.
 
                    
 
Há quem diga que ele esperaria beneficiar os herdeiros pela edição das peças após a sua morte, porque, entre os autores teatrais da época, só um felizardo teve a dita de ver as obras editadas antes de morrer, Ben Johnson.
 
 
Para a edição de Shakespeare as peças foram copiadas e recopiadas, algumas ainda em vida do autor, é certo, mas sabe Deus como, sabe-se lá por quem, sabe-se lá se bem se mal. Porque as variantes são imensas. Quem fez a divisão dos actos, quem acrescentou didascálias para clarificar cenas, etc., etc.? Sabe-se lá.
 
 
E dizer de caminho (quanto a traduções) que a célebre tirada To be or not to be foi traduzida por Voltaire assim: demeure, il faut choisir et passer à l’instant de la vie a la mort et de l’être au néant.

 

domingo, 9 de outubro de 2016


shakespeare 400

      – robert louis stevenson


  Stevenson orgulhava-se muito das suas primeiras leituras de Shakespeare e recordava o prazer que dessas leituras havia tirado.


 
    Só não lera Ricardo III, Henrique VI e Titus Andronicus. Fizera tentativas, mas admitia que nunca na vida os chegaria a ler.
 
 
   Outra insignificância engraçada é o ter gostado entre todas as personagens romanescas da de D’Artagnan, e ter notado que nem Shakespeare alguma vez conseguira personagem tão bem esgalhada como essa de Dumas. Ou, no mínimo, que nunca advertira da obra de Shakespeare personagem com que simpatizasse no mesmo grau.
 
                                                                     
 
 
   Mas também nada na vida o tinha emocionado mais do que o discurso de Kent a Lear.
   E também poucos amigos tinham exercido sobre a personalidade de Stevenson mais forte influência do que Hamlet. Ou Rosalind – com esta encarnada no palco por uma actriz sublime, Sarah Siddons.
 
 
   Delirara com a segunda parte do Henrique IV, quer considera um momento de suprema eloquência. Como do mesmo modo admirara o elogio dos hussardos feito por Falstaff na primeira cena do 4º acto.
 
 
A cena de Rosalind e Orlando era um modelo de declamação. E da nobreza viril do adeus de Othello à guerra nem valia a pena falar.
 
                                                        
 
Tudo isso era música. Era o patamar superior de organização de texto. Era a mais compacta unidade entre as partes, o equilíbrio perfeito de um pêndulo.
 
 

sábado, 1 de outubro de 2016


shakespeare 400 – charles dullin

                                                                                             
       
         Dullin, o grande actor francês dos anos 30 e 40, perguntou um dia a um director de teatro se recebia muitos manuscritos.
        - Sim, recebo, muitos manuscritos e poucas peças.
        Dullin pensava parecido quanto às personagens. Havia um grande, incontável número de papéis para fazer, mas se se falasse de personagens autênticas essas seriam as excepções à regra geral dos muitos papéis e raríssimas personagens com alguma autenticidade.
 
                                                                                          
 
        Grandes personagens, para Dullin, eram as que sobreviviam ao seu autor. As que continuavam a lutar em nome do autor. As que recebiam os impiedosos golpes da crítica. As que entusiasmavam alguns e permaneciam incompreendidas por outros.
        As grandes personagens eram semi-deuses. As grandes personagens desafiavam a eternidade sem acederem jamais ao Olimpo.
 
                                                                          
 
        Porque Hamlet continuaria a arrastar o seu manto negro sobre a poeira das tábuas do palco. Porque Ricardo III continuaria coxeando sobre ódios e terrores, morreria sempre a mesma morte, renasceria amanhã à noite e amanhã à noite tornaria a morrer.
 
                                                                                       
 
        Porque o demoníaco Don Juan, porque Lear, o velho louco, porque Brutus, o pensativo, continuariam a gravitar no círculo onde o seu destino os encarcerara.
 
                                                                                   
 
        Algumas dessas personagens incitariam revoluções, seriam os porta-estandarte das causas nobres de cada geração, provocariam a juventude, receberiam o desprezo dos velhos.
        Já no tempo de Dullin (e que dizer neste nosso tempo) as grandes personagens eram raras. O teatro fora despojado do carácter sagrado, da cerimónia, do espectáculo, e ao actor passou a exigir-se um comportamento de homem da rua.
 
                                                                              
 
        Passaria a haver mais probabilidades de encontrar o herói na plateia do que na cena.