quinta-feira, 31 de março de 2016

      SHAKESPEARE 400-SIR JOHN GIELGUD

 
É ano de Shakespeare.
Há que evocar os grandes actores shakespeareanos.
Cá está um. E dos mais ilustres.
 
  

Sir John Gielgud.
Quem? A rapaziada nova tenho a certeza de quem nem sequer ouviu falar dele, quanto mais vê-lo no cinema. Os mais velhos, como eu, claro que sim.
Evidentemente que quem o conhece, tal como eu, conhece-o do cinema, onde teve incontáveis participações em filmes de prestígio, certamente, mas sem ser um actor popular, uma estrela de Hollywood, e raramente, que me lembre, em papéis principais. O grande papel em que me recordo bem dele, assim de repente, é num filme de Alain Resnais, Providence, com Ellen Burstyn e Dirk Bogard, em que fabulosamente interpretava um escritor canceroso e alcoólico sempre deitado na cama, que confundia as ficções que criava com a realidade da própria vida familiar. E diz ele que foi um dos filmes que mais lhe agradou fazer.
 
 
No cinema foi de preferência aristocrata, alta patente militar, cardeal, papa, rei… e mordomo. Mordomo em Arthur. Achou divertido e interessante o seu trabalho nesse filme, Arthur, com Dudley Moore e Lisa Minelli. Uma fantasia sobre um rapaz multimilionário que guiava um Rolls Royce a deitar dinheiro pela janela fora. Gielgud fazia de mordomo num sentido mais ou menos paternal, tentando ajudar o rapaz milionário a crescer.
 
 
Filmes. Santa Joana, Beckett, Chimes at Midnight, Carga da Brigada Ligeira, Crime no Expresso do Oriente, O Homem Elefante, Prosperos’s Book, Arthur, Gandhi – assim de memória, e os mais conhecidos.
Compreendeu depressa a enormidade das diferenças entre representar em cinema e em teatro, e sobretudo para ele, depois de tantos e tantos anos a actuar ao vivo sobre as tábuas.
 
        

Compreendeu a absoluta necessidade de paciência no trabalho cinematográfico, as esperas de horas e horas entre dois takes, duas cenas, duas mudanças de luz e de décor.
Compreendeu a prontidão mental e física que era precisa para representar sem preparação, sem aquecimento, e sem continuidade, no momento próprio, muitas vezes só um olhar, muitas vezes apenas uma reacção à deixa de outro actor, outras vezes uma longa tirada, uma cena inteira, um amplo plano de conjunto.
 
 
Era mister concentrar-se no pensamento, na ideia que está por detrás da acção propriamente dita e ser parcimonioso e simples na execução do que lhe era pedido. No cinema tudo depende dos movimentos da câmara, e um actor nunca sabe ao certo quais as cenas que no final serão aproveitadas e montadas. Tudo ao contrário do trabalho teatral, claro, em que o actor, desde que sobe o pano, controla o espectáculo e se controla a si mesmo.
 
                      

No cinema, o actor decide a sua interpretação, representa um plano largo, aberto, geral, e depois tem de estar preparado para as repetições em planos mais apertados, em detalhe, um gesto, uma cara, os planos mais pequenos que vão completar uma cena. Vem alguém e diz “ponha a mão em cima do saco ao dizer esta frase”. Vem outro e diz “toque com o dedo na sua gravata”. E fazem-se coisas sem se saber por que se fazem, e é preciso conservá-las na memória pelo menos durante uma semana, para fazerem raccord. O que é uma tremenda chatice, porque se é obrigado a repetir minuciosamente gestos, movimentos que uma pessoa naturalmente faz sempre de maneira diferente.
 
 
A assistente de continuidade está sempre à coca, lembrando ao actor os exactos movimentos e gestos que fez duas semanas antes, quando o plano principal foi filmado. E o pior de tudo é que, seja o que for que o actor faça, de bom ou de mau, uma vez aceite pelo realizador, ficará gravado para sempre. Nenhuma chance de improvisar, de aperfeiçoar no espectáculo seguinte. Não há espectáculo seguinte.
 
 
John Gielgud começou bastante cedo, mesmo assim, a fazer cinema, 1931, em Londres. Mas é em 1935 que faz o seu primeiro filme importante, O Agente Secreto, com Hitchcock. Era uma estafa representar todas as noites no teatro e estar às 7 da manhã fresquinho no plateau para filmar.
 
 
E então começa por não gostar de cinema; ou não gostar de fazer cinema. A vantagem, está-se mesmo a ver, era ser incomparavelmente mais bem pago do que no teatro. Mas também, por então, não tinha grande confiança em si enquanto actor de cinema, e quando via o que tinha feito nos filmes detestava o seu próprio trabalho.
         Quando comecei a fazer filmes, nos anos 30, sempre pensei que havia que ter o cuidado de ser exactamente o que parecia, o que fez de mim um tímido perante a câmara.
E entre 1936 e 1952 não trabalha em cinema.
         Com o tempo e a prática deixei de me preocupar com a imagem que a câmara dava de mim, perdi a vontade de me exibir, e procurei seriamente e somente viver a personagem.
 
 
Lembro-me de James Mason em Júlio César e da técnica impecável que era a dele ao exprimir toda a personalidade do papel, tudo o que passava pela mente da personagem, contudo sem recurso a caretas ou exageros de expressão facial. E então comecei a encarar o cinema com outra atitude, estudando o modo como os actores de cinema restringem ao mínimo e eficazmente as expressões faciais.
Só em 1952 se sente bem a fazer cinema. Foi com Joseph Mankiewicz, no papel de Cássio, precisamente em Júlio Cesar – com Marlon Brando.
 
 
Nesse filme, Julio César, era o único inglês do elenco – não contava com James Mason, que era inglês mas que há muito se mudara para Hollywood. E o receio que tinha era que os outros actores, americanos, pensassem alguma coisa do género “olha lá vem este grande senhor do teatro londrino a querer ensinar-nos a fazer Shakespeare”. Por isso andara mudo e quedo nas filmagens, e nem uma nem duas quanto aos estilos de representação ou de declamação de cada um.
 
 
A propósito desse filme, Júlio César, refere a modéstia do então jovem Marlon Brando, a quem, a pedido dele, deu algumas sugestões para o célebre discurso de Marco António em que Brando tem um dos seus momentos mais geniais.
Um dos menos felizes filmes em que entrou tinha por título O Primeiro Ministro e ele fazia de Disraeli, um dos maiores estadistas britãnicos de sempre. Que era de ascendência judaica.
Por ter um nariz grande, muita gente se convenceu de que John Gielgud era judeu, ou que, no mínimo, teria sangue judeu, o que o indicava particularmente para papéis de judeu. Chegou a perguntar ao pai se havia na família alguma pinga de sangue hebraico – e até porque, pensava, boa parte dos melhores actores do mundo eram judeus. Mas não. Não havia nada de judeu na família.
 
 
Mas nem foi por parecer judeu que ele teve muita sorte com os papéis em que fez de judeu. Shylock, o principal papel do Mercador de Veneza, por exemplo, judeu. Nunca teria sucesso com ele. Tentara representá-lo no teatro como um monstrengo, feio e sujo e com sotaque estrangeiro. Mas em 1938 já os nazis andavam por aí e ele entendeu que o público inglês gostaria de ver em Shylock um judeu simpático, quase um herói. E sentiu que era isso que como actor romântico esperavam dele.
Na escola de teatro, Gielgud teve a dita de ouvir pessoalmente uma lição de Bernard Shaw. Dessa sessão reteve ele uma ideia principal, uma recomendação de Bernard Shaw aos jovens actores: nunca deveriam aceitar como cachet menos de 8 libras por semana – estava-se nos anos 20.
 
 
Sempre quisera desempenhar no palco shakespeareano o papel do rei Henrique IV. Nunca tivera essa dita. De maneira que ficou encantado quando Orson Welles o convidou para o papel no seu filme Chimes at Midnight (As Badaladas da Meia Noite), em que o próprio Welles fazia de Falstaff.
 
 
Gielgud tinha a noção de que o filme, fascinante, repleto de momentos interessantíssimos, não fora um êxito popular. Mas adorou trabalhar com Welles. Foi um filme feito aos bochechos, rodado ora aqui ora ali, como quase sempre com Welles, e devido aos eternos problemas que ele tinha de financiamento. Como tal, Gielgud só viu Welles a representar Falstaff depois do filme pronto, e mesmo assim só quando o viu no cinema.
 
 
As cenas da sua morte, enquanto Henrique IV, obviamente, foram rodadas no edifício abandonado de uma antiga prisão, numas colinas perto de Barcelona. O pior é que as janelas não tinham vidros e o frio de Novembro entrava por ali dentro e enregelava o pessoal. Gielgud estava de malha nas pernas e uma leve camisa de noite. Sentava-se no trono e tinha uma resistência eléctrica aos pés para se aquecer, enquanto Orson Welles gastava as últimas pesestas do orçamento a comprar uma garrafa de brandy para o manter quente e operacional.
 
 
No Old Vic, John Gielgud aprende o seu Shakespeare. E o Old Vic pagava mal, e os actores, por via disso, quase não tinham vida social.
 
 
Gielgud chega ao famoso Old Vic em 1921 como jovem actor não remunerado e ao abrigo de um acordo entre o lendário teatro e a escola de onde ele provinha. A companhia estava cheia de velhos actores que de cinco em cinco minutos davam saltadas ao bar e se exprimiam numa linguagem execrável. Começou a fazer papéis de algum calibre logo em cinco peças, uma delas desconhecida e sendo as outras quatro nem menos do que Hamlet, Peer Gynt, Henrique V e Rei Lear.
A primeira fala que proferiu no palco foi: “aqui está o número dos franceses mortos” -  do Henrique V.
 
 
Em 1929 foi Romeu. Sem êxito. A peça, segundo a concepção do director era para não passar das duas horas de representação e o resultado foi uma algaraviada dita às pressas que o público mal percebeu. Depois vem um papel no Mercador de Veneza; depois o Malade Imaginaire, de Moliére, o Ricardo II, no protagonista. Sentiu-se muito orgulhoso de si por lhe terem dado o papel, que seria um primeiro sucesso pessoal.
 
 
Diz ele que o celebérrimo Old Vic, naqueles anos 20, pelo menos, tinha isso de bom: um actor podia experimentar as suas possibilidades sem ser nem precocemente crucificado nem precocemente hiper-elogiado no dia seguinte. Depois foi Macbeth e os críticos não apareceram. O sucesso ficou mais a dever-se aos leais frequentadores do Old Vic. Quando saiu, entraram para a companhia nomes que dariam muito que falar no futuro, Tyrone Guthrie, Charles Laughton, Flora Robson, James Mason.
Nos seus começos, John Gielgud não se considerava um bom actor de composição, um daqueles que, como ele dizia, representavam preferencialmente personagens histéricas e neuróticas Mas pensava que se representasse com verdade talvez isso fizesse dele, algum dia, um bom actor. Nos papéis de jovem, diz ele que a tendência era para o exibicionismo, e por algum tempo a ambição dele não passava de poder vestir em cena belos fatos e poder sentar-se nos belos sofás de uma comédia francesa. Foi no Old Vic que perdeu essa mania.
Viu-se sempre a si mesmo como actor um tipo frívolo, em comparação com outros dos seus colegas shakespeareanos. Sempre adorei o lado barato, vulgar, do teatro, as cartas dos admiradores, a adulação de certas pessoas para com o actor.
 
 
Pois, enquanto outros artistas da mesma estatura se preocupavam mais com a qualidade intrínseca de uma representação do que com o efeito que faziam no público, ele dizia com os seus botões: hoje está uma boa casa, eu estou a ir maravilhosamente no papel, já fiz uma quantidade de efeitos e tenho que me lembrar deles para os repetir amanhã à noite.
É melhor aprender as palavras do texto depois de se ter ensaiado as movimentações de cena e ter reconhecido os espaços e a relação com as outras personagens. Na opinião dele é isso que evita que o actor desate a papaguear pura e simplesmente o seu texto, com perfeiçâo, mas sempre com prejuízo da expressão.
 
 
Nunca lhe deu jeito trabalhar um papel em casa. Era dos que desenvolvia o trabalho nos ensaios com os colegas, entre críticas, sugestões, experimentações.
Ao estudar os textos, temeroso dos longos discursos das personagens shakespeareanas, optava por concentrar-se primeiro nas pontuações, vírgulas, pontos finais, de exclamação, de interrogação, assim estava já a respirar o texto.
Em 1929-30 faz Hamlet, papel em que ficaria como um dos máximos intérpretes de todos os tempos. Tinha 25 anos.
 
Esses anos 1929-1930 foram muito gratificantes . Era enfim o jovem actor que começava a voar pelas próprias asas, e nesse período começou a desenvolver grande interesse pela encenação.
Interessante, a propósito, a sua visão do trabalho dos encenadores. O genuino encenador dificilmente se poderá dizer que existe mesmo. Muitas das suas aparentemente originais ideias resultam de memórias e impressões de peças que viu. É difícil definir o que é de facto um encenador, para além de tentar criar um bom ambiente nos ensaios e de saber tecnicamente como dispor os actores em cena em cada momento.
Cá para mim, e agora falo eu, isto que Gielgud diz como sendo pouca coisa, já acho uma grande coisa, sobretudo o saber colocar os actores em cada cena…
 
 
Muitos dos melhores actores ingleses eram admiráveis encenadores. Pelo menos ele assim os considerava. E talvez porque muitos deles encenavam as peças em que também representavam. Mas a certa altura começou a voga dos encenadores que nunca tinham sido actores, Peter Brooks, Peter Hall, Komisarjevsk. Mas os actores em geral sentiam-se mais à vontade com encenadores que eram ou tinham sido actores. Porque esses compreendiam mais facilmente os problemas técnicos do actor.
O grande problema do actor-encenador é a tentação a que dificilmente resiste de impor ao elenco o seu próprio estilo de representar, enquanto um encenador outsider, por assim dizer, o que mais gosta é de fazer sobressair a individualidade de cada intérprete, e assim criar mais um contraste de personalidades artísticas do que uma unidade de estilo – o que não raras vezes produz resultados extraordinários.
 
                         

Quando lhe propuseram Hamlet, a maior peça de todos os tempos em que o protagonista é um jovem, pensou que arriscaria um fiasco e que não seria capaz de melhor do que uma má cópia de um qualquer dos Hamlets que tinha visto – uns doze. Começou a estudar o papel e a entrar na personagem de Hamlet como se estivesse a aprender a nadar. E depois compreendeu que o texto o agarraria e ele agarraria na personagem desde que procurasse nela a mais profunda verdade.
 
 
Pensava que muitos actores passavam por alto os aspectos desagradáveis de Hamlet; ou que as grandes estrelas de meia idade do teatro eduardiano romantizavam a personagem, incluindo nelas John Barrymore, que ele admirava, mas a quem reprovava o enfatizar da hipótese de Édipo do príncipe da Dinamarca.
Ir ao teatro e ver Hamlet representado por um actor de 25 anos era uma experiência nova para o público de então. Os actores da época nunca faziam Hamlet antes de chegarem aos 40. E a juvenilidade de Gielgud era um espanto novo, uma tensão nova logo nas cenas de abertura.
Em 1939 foi Hamlet no lugar devido, no pátio do castelo de Elsinore, na Dinamarca, num festival de teatro que Laurence Olivier havia inaugurado dois anos antes – a Ofelia era Vivien Leigh. A guerra tinha rebentado havia um mês. A tensão era considerável e juntava-se ao frio e à chuva, e pior ainda na noite em que um vasto grupo de marinheiros alemães de passagem pela Dinamarca ocupou as primeiras filas da plateia – um alarme que se provou falso; os marinheiros alemães deram mostras da maior civilidade.
 
Em 1944, no Haymarket Theatre, representa Hamlet pela última vez em Londres. Alguns espectadores tinham-no visto nos começos, aos 25 anos, tinham visto as suas primeiras récitas, e em 1944 viam as últimas, e consideravam que fora melhor no papel aos 25 anos.
O mais sensacional Hamlet da carreira de Gielgud, segundo o próprio, aconteceu em 1936, em Nova York. Nessa altura bateu o record da Broadway em número de espectáculos seguidos, 101, um record que pertencia a John Barrymore. E o record de Gielgud manteve-se até aos anos 60, quando foi batido por Richard Burton, e ainda assim numa encenação dele mesmo, Gielgud. Tinha tido sempre sorte em Nova York.
 
 
Sim, estava em Nova York como na sua segunda casa. Sempre fora feliz ali, fizera lá grandes amigos. Vira a cidade crescer e mudar desde a primeira vez que lá tinha posto os pés, em 1928. Para ele, a 5ª Avenida, da Catedral de St.Patrick até ao Plaza, era um das mais elegantes artérias do mundo; assim como as torres do Central Park West a cintilar ao sol eram para ele a visão mais mágica e romântica que se podia ter de uma cidade.
       Voltando a Hamlet, era de opinião de que Hamlet não é papel que um actor deva representar tantas vezes seguidas. Há demasiadas oportunidades nesse papel que encorajam um actor a experimentar todo o tipo de efeitos e de truques. É preciso ser dirigido por alguém com mão firme para manter o actor numa linha homogénea de representação. É um papel de uma violência física inaudita. Tanto que Burton lhe pediu que, como encenador, o ajudasse a definir as passagens onde podia descansar, uma vez que não queria apoiar a interpretação na neurose ou na histeria.
 
 
Hamlet é uma peça longa e muito conhecida (pelos públicos mais cultos, evidentemente), e a tentação de fazer dela uma sucessão de números de efeito, um show-off, em lugar de apresentar uma personagem e uma trama em progressão, é muito grande.
Quando decidiu dirigir Burton na Broadway pareceu-lhe impossível conseguir inventar qualquer coisa de novo, ou de interessante. Estava possuído pelos fantasmas, não os da peça, mas os dos tantos Hamlets que tinha feito e visto ao longo da vida. E como Richard Burton não se sentia bem em vestes isabelinas, foi resolvido que a peça seria encenada com guarda-roupa contemporâneo, as roupas do dia-a-dia, como se de mais um ensaio se tratasse.
 
 
Dessa vez, o problema com o resto da companhia de actores americanos foi a constante solicitação que esses actores, formados pelo Método do Actor’s Studio, lhe punham acerca das  motivações das suas personagens. Mas infelizmente -  diz Gielgud – o Método não funciona em Shakespeare. Não se trata de um drama intelectual, género Ibsen ou Strindberg; em Shakespeare, grande parte das personagens não são individualizadas, ou individualmente desenvolvidas.
       A título de curiosidade, diga-se que a última vez que Sir John Gielgud representou Hamlet foi na Òpera do Cairo, uma matiné para as escolas, o teatro estava à cunha de miudagem. Bem, pensou ele, é a última vez que farei este papel maravilhoso. Tenho 45 anos e está mesmo na hora de desistir dele.
Na primeira récita, e logo na cena de abertura, o actor que fazia de Horatio diz a frase, “meu senhor, julgo que o vi ontem à noite” (refere-se ao Espectro do pai de Hamlet, claro) e cai nos braços de Gielgud com um ataque epiléptico. O público saltou nas cadeiras e Gielgud gritou para os bastidores que descessem o pano. O actor que fazia de Horatio recuperou para o dia seguinte, mas Gielgud nunca mais se esqueceu do actor que lhe arruinou a última actuação em Hamlet.
 
 
Em Macbeth não se sentia pessoalmente com o estofo necessário de personalidade, voz e presença para sublinhar o lado guerreiro e gigantesco da personagem. E então tratou de lhe desenvolver o lado visionário, um tanto romântico, poético, e com ele alguma debilidade de carácter, essa debilidade de carácter que surge à superfície quando a mulher o manda matar o rei Duncan.
Gielgud levantava um Macbeth que, diz ele, era o oposto do Macbeth de Laurence Olivier, o qual ele considerava o Macbeth definitivo, com crime e assassínio no coração desde o momento em que entrava em cena.
 
 
Durante anos, já mais para a segunda metade da carreira, andou em tournée com um one man show intitulado The Ages of Man em que recitava Shakespeare. A estreia foi em Nova York e ele por uma unha negra não faltava a essa estreia por ter ido passar um fim de semana em Havana. Começara por estranhar o hotel em que se hospedara: estava praticamente vazio. E no dia seguinte percebeu: a revolução rebentara; Fidel Castro entrava em Havana. Passou  um dia inteiro no consulado americano à espera de um visto de saída. Chegou ao teatro novaiorquino duas horas antes da função.
 
 
Nunca se sentiu, todavia, muito seguro – ou só mais tarde se sentiu - a interpretar peças contemporâneas. E começou a ser solicitado para o teatro moderno em 1956. E assustou-se com a experiência. Em Shakespeare, um actor treina-se para projectar a voz e a personagem, enquanto em Tchekov se treina para uma representação intimista. Chegado a Albee, Osborne, Edward Bond, David Storey ou Harold Pinter, todos eles originais mas estranhos à sua escola, assustou-se.
Descobriu então que os modernos dramaturgos não gostavam de discutir as próprias obras, não estavam à vontade, evitavam o mais possível falar, enquanto ele estava sempre ansioso por se encontrar com eles e lhes pedir algumas luzes sobre a sua personagem.
 
 
Ressentia-se, ao fazer teatro moderno, da falta de uma estrutura convencional numa peça, das implicações grande parte das vezes abstractas, dos diálogos sem uma aparente sequência, das referências oblíquas, onde não havia climaxes nem óbvias entradas e saídas de cena.
Nunca tivera paciência para Brecht, para Beckett. Tinha dificuldade em lê-los, quanto mais em representá-los, e pensava que se não tinha o prazer de os ler, o público também não sentiria qualquer prazer em vê-lo a representá-los. Mas com o tempo acabou por se habituar e adaptar…
 
 
Gostava de fazer filmes, e até televisão, sem dúvida, mas… o teatro era a sua realidade, o teatro e a sensação de uma plateia subitamente silenciosa e concentrada, um público totalmente rendido às suas palavras, sem um murmúrio… eram esses os grandes momentos da sua vida.
Ao escrever o livro em que me baseio, An Actor and His Time, John Gielgud citava um actor seu contemporâneo que, de cada vez que um realizador o convidava para um papel, respondia: “qual dos meus cinco tipos de velho você quer?” Gielgud tinha um certo medo de se ouvir dizer as mesmas palavras. Mas enfim, era preciso andar para a frente e estar agradecido por continuar a ter a oportunidade de dar a escolher a um realizador entre os cinco tipos de velho que se tem em carteira.
Sir Arthur John Gielgud, nasceu a 14 de Abril de 1904 e morreu a 21 de Maio do ano 2000. Sempre teve um particular amor pelos animais e descendia de uma família de grandes tradições no teatro inglês. A avó, Kate Terry, grande actriz do seu tempo, felicitou-o calorosamente quando ele se iniciou na profissão de que na verdade gostava.
 

        
       “Mas não penses que vais ter um caminho atapetado de rosas, porque na vida de teatro, como em qualquer outra profissão, haverá sempre pedradas e flechas para te atingir. Sê simpático e afável com todos os teus colegas, mas, se possível, não cries intimidade com nenhum. É um conselho de meus pais que eu passo para ti, porque o acho muito avisado. A intimidade no teatro gera ciúmes mesquinhos, o que se torna muito incomodativo.”
Talvez um conselho que não tenha utilidade apenas para a gente da vida artística.



 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 17 de março de 2016


                OS AUTOS SECRETOS

 
                                         

 
É bem verdade que não li a biografia que a historiadora Irene Flunser Pimentel escreveu de um famoso inspector da PIDE chamado Fernando Gouveia, talvez não um dos mais falados, mas, pelo que dizem, um dos mais sádicos e eficazes caçadores de comunistas, o grande especialista dos assuntos do PCP.
Não li o livro, mas tenho até a ideia de ouvir dizer que foi (como seria de esperar) duramente criticado pelos ideólogos do aparelho do Partido Comunista.
 
 
Mas o acaso dos meus passeios de sábado pelos bouquinistes do Chiado fez-me dar de caras nem mais nem menos do que com o livro de memórias do mesmo inspector Fernando Gouveia. Que por sinal me deu certo prazer a ler por me ter ensinado algumas coisas menos óbvias sobre a PIDE – e sobre o PCP.
 
                                                       
 
Um livro que por outro lado me colocou embaraçosas questões de moral, isso sim, relativas à verdade possível e menos manipulada de alguns factos.

 

 
Devo dizer que nos dias 26, 27, 28, 29, 30 e por aí fora de Abril de 1974, devorei, é o termo, em jornais e revistas, e nalguns livros, os testemunhos de quem havia passado pelos calabouços da PIDE. E só li episódios de abnegação, sacrifício, vitimização e heroísmo. E acreditei piamente.
 
 

O tempo foi passando, a memória foi esfarelando, o sentimento foi espairecendo, a verdade sobre os também heroicos capitães de Abril foi-se revelando não tão heroica assim, e tudo isso sem prejuízo do que a memória desses dias de canções, solidariedade e esperança guardara de grande, e sendo que o que esses dias significam para mim é serem dos mais belos dias da minha vida.
 
                

        Sem embargo do que disse atrás, as coisas são o que são, até mesmo neste tempo crítico em que, volta e meia, elas até não parecem ser o que realmente são.
Por mais de uma vez, derrubados os regimes militares torcionários da América do Sul, por exemplo, tive ocasião de ver na televisão em entrevistas ou coisa parecida, algumas personalidades vítimas da tortura desses regimes e reparei que eles apresentavam, mais ou menos disfarçado, algum aleijão, um braço ou uma perna defeituosos, uma coluna rígida, uma cara marcada, isso em resultado das torturas de que foram vítimas.
E por mais do que uma vez, na televisão ou em pessoa, e de perto, observando algumas personalidades portuguesas vítimas das sevícias da PIDE, dei comigo a olhar para eles e a achá-los indivíduos sãos e escorreitos, corpos absolutamente normais, aspectos de quem vendia saúde.
 Sem querer com isto nem por sombras lavar a folha da PIDE, pensei eu que em crueldade e em desacato físico profundo as torturas da PIDE não teriam sido em nada semelhantes às dos regimes militares e sanguinários (por exemplo) da América Latina. O que não queria dizer que não tivessem sido torturas efectivas.

E é claro que também li bastantes depoimentos de ex-pides e todos são cinicamente concordes em dizer que torturas não as havia, que eram todos uns cavalheiros, que tinha sido tudo invenção da propaganda do Partido Comunista.
 
 
E a verdade é que as punições aos sanguinários torturadores da PIDE aplicadas pelo regime saído do 25 de Abril (revolucionário, não se esqueça) não foram (tanto quanto sei), nem de perto nem de longe, proporcionais à enormidade dos crimes que lhes eram, e são, imputados.
 

É evidente que ao ler os casuais depoimentos dos pides não estou à espera de ir ao encontro da verdade – ou pelo menos da verdade toda.
Da mesma forma que ao recordar, ou reler, os testemunhos dos que foram presos pela PIDE posso interpretá-los como declarações meramente políticas de um heroísmo exagerado e com objectivos propagandísticos definidos que pouco importa se passam ao lado da verdade, a histórica e a outra, porque logo nos dias que se seguiram à revolução era vital indispor a população contra o regime acabado de cair, e por outro lado enaltecer, quase canonizar, os resistentes.

E se ao ler os documentos do Partido Comunista relativos aos tempos do antifascismo não vou à procura da verdade absoluta, ainda menos terei eu procurado essa verdade nas memórias de um importante inspector torcionário da PIDE, que por acaso nem ao de leve fala de torturas.
Mentem (e omitem) os dois lados, possivelmente, e por diversas necessidades. Restaria saber o que nunca se saberá: quem mente e omite menos.
       Bom, mas a questão de moral que me toca prende-se com o heroísmo, o heroísmo do silêncio sob horrível tortura física. E claro que posso perceber como estas matérias são delicadas e susceptíveis. Fazem lembrar algum universo borgeano, o mito do cobarde e do herói, os limites postos a uns e a outros pelas organizações trans-humanas, os limiares da fatalidade ou da felicidade colectivas. Mas a "verdade" é que… 
       
         

Fernando Gouveia. Não sei se na personalidade dele poderemos aperceber os traços distintivos desse acidente civilizacional que foi o homem fascista.
Na realidade, era um polícia. Polícia que não queria apanhar ladrões nem assassinos mas normais cidadãos que pensavam as coisas da vida de uma maneira particular e que não descansavam enquanto não pusessem essas coisas da vida a funcionar de acordo com a sua maneira particular de pensar.
 
 
Fernando Gouveia apanhava algumas dessas pessoas e também não descansava enquanto não extraísse delas, a bem ou a mal, tudo o que faziam no seu dia-a-dia que contribuísse para que as coisas da vida passassem a funcionar como elas, na sua particular maneira de pensar, entendiam que deveriam funcionar.
 

                                                      
 
Resulta claro que não posso discretear sobre a personalidade de Fernando Gouveia. Isso terá feito a Dra. Irene Pimentel, não sei. O que posso é tentar perceber o que há de verdade na moral do heroísmo dos militantes apanhados pelo Gouveia.
Ou tentar perceber o que há de sordidez moral no conceito que o Gouveia fez desse heroísmo.
Tentar perceber, é certo, e continuar a não perceber nada.
Caracterização do PCP feita pelo Gouveia – transcrevo literalmente: estávamos em luta com uma organização secreta com determinação de um cumprimento rigoroso das regras conspirativas.
Pelas memórias do Gouveia desfilam perseguições rocambolescas, casas ilegais, casais ilegais, adultérios clandestinos, secretismos, vinganças, denúncias, algumas mortes violentas. Nem sombra de torturas.

 
Não havendo torturas não haverá heroísmos de silêncio. E logo aí o Gouveia desvaloriza a coragem e a determinação dos militantes comunistas que lhe caíram nas mãos, transferindo os eventuais heroísmos para os espertos e abnegados esbirros da PIDE, capazes de descobrir e desmantelar tentaculares redes de conspiradores contra a segurança do Estado e a sagrada integridade da nação.
 
                                                                         
 
Tortura? O Gouveia diz que os interrogatórios eram muito psicológicos. Ele mesmo procurava estudar a maneira de ser de cada detido que lhe caía nas mãos. Longas horas de conversa com ele sem se tocar no assunto pelo qual ele tinha sido preso. Se tinha família. Se era casado. Quantos filhos; idade dos filhos. Quanto ganhava. Quanto pagava de renda de casa. Como se divertia. Se gostava de futebol. De que clube era. Tudo natural. Dois amigos à mesa do café. Estudando a forma de responder do detido, o ouvido do polícia habituava-se ao timbre natural da voz dele, o que lhe permitiria detectar – quando o interrogatório já fosse a sério – as variações indiciantes de que ele podia estar a mentir. Nada de violências. Ingénuo, não?
 
 
A PIDE, se calhar como qualquer tipo de polícia, vivia de informações, de denúncias e outras canalhices vistas à luz de uma moral comportamental mais restritiva. A questão é que os dilemas que se colocavam aos homens destes tempos eram de vida ou de morte.

                 
 
Os revolucionários não hesitavam quanto aos meios para obter os fins, e os fins eram o triunfo da revolução socialista e a queda de um regime indigno, ditatorial, torcionário, apressadamente dito fascista – e se não o fosse na pureza das doutrinas andaria lá muito perto…  
 
                                                                          
 
Os defensores do regime, os salazaristas, os situacionistas, os corporativistas ou os fascistas, viam nos comunistas o grande inimigo a abater e entendiam que todos os meios eram bons e legítimos para atingir esse fim e prolongar a vida de um regime que consideravam bom, o melhor para o país. Era uma lógica de guerra o que movia uns e outros. E com a lógica de guerra vinha a moral de guerra.
Para muitos, o elemento mais sinistro da cadeia da actividade política extrema e clandestina era o informador.
 
 
Para a PIDE, havia o informador bem colocado socialmente, o que ouvia às portas mais importantes, o que tomava o pulso aos meios políticos e que era bem pago por isso. Essas informações eram filtradas pelos especialistas da PIDE, reduzidas a relatórios semanais e postas nas mesas de trabalho dos variados salazares.
Havia os informadores infiltrados nos meios da oposição ao regime, os que haviam ganho a confiança desses meios e que informavam a PIDE de tudo quanto viam e ouviam. Segundo o Gouveia, grande parte desse caudal informativo não passava de boatos, a maioria deles inventados pelo próprio informador. Pagavam-lhes pouco pelas informações.
 
 
E havia os informadores amadores. 250 paus por mês. O antipático vizinho de cima, o amigalhaço do café, o rival numa conquista amorosa, o barbeiro, o merceeiro. Os mais perigosos, esses, quanto a mim, por insuspeitos. Essas informações não valiam nada, diz o Gouveia. Essa gente andava a milhas do que verdadeiramente se passava nos bastidores da conspiração.
 
 
Assevera o Gouveia que o serviço de informações da PIDE era deficiente, e que tal explica o sucedido a 25 de Abril de 1974.
Pode ser que sim, digo eu: o Gouveia defende a sua corporação de qualquer espúrio comércio com o inimigo.
Por mim, prefiro a tese contrária: a PIDE sempre soube do que se andava a tramar, e à completa luz do dia, mas teria ordens para não chatear, porque não era bem uma revolução o que estaria para vir; e que no que estaria para vir, diferente de uma revolução, a PIDE teria ainda um papel a desempenhar – inclusive tendo nos seus quadros um categorizado inspector que fora condiscípulo no Colégio Militar do general que se apresentava como inspirador do golpe, António de Spínola.  
 
                                                          
 
Há um protagonista, alto dirigente do Partido, homem teso, um dos que participou com Álvaro Cunhal na épica evasão do Forte de Peniche, e ainda noutra, em Dezembro do ano seguinte, menos épica, talvez, do Forte de Caxias. Diz o Gouveia que esse foi o homem que sempre se permitiu críticas ao secretariado do comité central do Partido.
E que críticas! Que a agitação de massas propagandeada pelo Partido não existia, ou pouco existia. Que a força da repressão policial também era muito aumentada pela imprensa do Partido. Que era moralmente indispensável repor a verdade dos factos nas páginas do Avante porque maior imoralidade não havia do que enganar a classe operária.
 
 
Preso uma vez mais, encafuado no Aljube, o alto funcionário comunista pede na sua cela a presença de um padre. Padre com quem longamente conversa.
Está à vista que aquele homem se estava a desviar do aprisco e a tomar direcções espirituais perigosas para um proeminente quadro político comunista. E vai daí, ele estava mesmo a pedi-las, é expulso do Partido. E pior do que simplesmente expulso, é expulso enquanto está preso. Proscrito do Partido, vai viver anos nos calabouços de Caxias com os camaradas que o desprezaram ao ponto de o expulsar de uma causa que era a razão de ser da sua existência. Passa a ser um homem tragicamente só.
(Tratar-se-ia de Manuel Guedes? Não sei. Podia ser esse ou outro. Não foi caso único.)
 
 
Uma vez preso, um militante comunista, ou um revolucionário profissional, ainda que sob tortura, tinha a estricta obrigação de não falar. Julgo até que era das normas nem a verdadeira identidade revelar. O funcionário que falasse evidentemente que colocaria em risco a liberdade e a vida de outros seus camaradas e as operações clandestinas que o Partido teria em andamento.
Falar? E o que era falar? Era revelar contactos, nomes, moradas, casas clandestinas, tipografias clandestinas, encontros, objectivos políticos. Era comprometer redes clandestinas de acção. Era colaborar no desmantelamento dessas redes, atrasando as tarefas revolucionárias, dado o considerável tempo que levava a reorganizar o trabalho.
 
                                                        
 
Nos heroicos princípios morais dados ao manifesto pela literatura do Partido, um comunista não falava, um comunista era um herói do silêncio, um comunista não se abria nem denunciava camaradas seus.
Mas, segundo o testemunho do Gouveia, as coisas não se passariam – ou nem sempre se passariam - exactamente assim.
Se um casal de funcionários do Partido habitava uma casa clandestina e passava por um casal burguês convencional aos olhos da vizinhança, a realidade, podendo até ser parecida com essa, não era, ou podia não ser, precisamente essa. A companheira era atribuída ao funcionário pelo Partido para representar o papel de mulher dele. Na realidade, tanto podia ser como podia não ser.
 
 
Mas está-se mesmo a ver que quando homem e mulher habitam a mesma casa por longo tempo, e ainda por cima em condições precárias e perigosas, há laços que se estabelecem. Laços carnais, quero eu dizer. E esses casais acolhiam muitas vezes um terceiro elemento, o sobrinhito da terra para consumo da vizinhança, ou o primo solteiro que andava a estudar, geralmente um funcionário mais novo com outras tarefas definidas. E pronto. Dois homens com uma só mulher fechados na mesma casa ilegal, enfim…

 
Ocorriam de facto as traições de tipo passional, os adultérios. Boa parte da resistência comunista e clandestina ao fascismo passou por essas contingências, por esse imponderável factor humano.
E aconteceu - nas palavras do Gouveia – haver militantes destacados a quem outros militantes haviam roubado sexual e sentimentalmente, suponho, as companheiras, ou mesmo as legítimas mulheres.
 
                                                           
 
E acontecia o camarada cuja companheira lhe fora abarbatada por outro camarada vir a ser preso, e uma vez preso, traído, desiludido, humilhado, resolver vingar-se da companheira, do outro, do próprio Partido, das circunstãncias… e falar… e revelar os paradeiros, as casas, os encontros conspirativos, os contactos, os nomes.
 
 
Já se percebe que o Partido vinha a saber quem tinha falado (“prestado declarações”), desmantelava a rede de que o funcionário falador tinha conhecimento, reorganizava-se de outra forma, e expulsava o falador com base no seu mau comportamento perante a PIDE.
Naqueles tempos, qualquer cidadão podia denunciar à polícia política como perigoso agitador ou como membro do Partido Comunista qualquer outro cidadão. Bastava usar uma cabine telefónica. O próprio Partido o poderia fazer. Bastava usar o anonimato de uma cabine telefónica.
 
                                                                  
 
Sim, o próprio Partido podia denunciar à PIDE a entrada clandestina no país de militantes seus vindos de Moscovo e que por alguma razão, e sem sequer o suspeitarem, tivessem caído em desgraça perante o comité central.
 
 
Ninguém vai agora esperar que a actividade política use um código moral especialmente apertado. Ainda por cima quando as coisas se passam na clandestinidade, sob segredo, e num país censurado e vigiado policialmente.
 
                                                                        
 
Um outro caso – muito abreviado. Um funcionário do Partido, já membro suplente do comité central, sente-se cansado da vida conspirativa de clandestino sem eira nem beira, sempre em stress, sempre acossado, e fala. Produz uma confissão completa das suas actividades no Partido. Presta um serviço impagável à PIDE. Como contrapartida, a PIDE oferece-lhe uma ajuda pecuniária para ele refazer a sua vida à luz do dia e propõe-se deixá-lo em paz mediante o compromisso escrito de que procurará vida nova e não tornará a meter-se em actividades subversivas. Tempos depois, este ex-funcionário do Partido cai numa emboscada e é metralhado, fica muito malzinho, mas safa-se por milagre.
E está visto que o Gouveia aponta o dedo ao próprio Partido. O que é plausível. O homem traiu. As confissões dele devem ter levado à prisão de muitos outros camaradas. E além disso recebeu dinheiro do inimigo.
O grande problema do funcionário profissional do PCP ao ser apanhado – no ver do Gouveia, diga-se – era descair-se nos interrogatórios, vir a saber-se que tinha falado, ser expulso do Partido no tempo em que estava preso, cumprir a pena e sair para a liberdade como um homem só, sem pertencer a nada, sem ocupação, desesperado.
Muitos dos detidos tinham-se tornado agitadores profissionais e viviam dos fundos que o Partido lhes entregava. O Gouveia, ipsis verbis, explica melhor: a maior parte desses tinha já perdido os hábitos de trabalho, estavam acomodados à clandestinidade ou à prisão. Sempre havia alguém que os sustentava, ou o Partido, ou o Estado, quando estavam presos. O ideal para estes já não contava.
 
 
E é aqui que entra a questão dos autos - os reais (falseados, mesmo assim) e os secretos.
 
 
Alguns destes revolucionários queriam manter intacta uma aparência de lealdade ao Partido e aos camaradas. Pediam então aos torcionários que os deixassem ir à barra do tribunal com os autos negativos, por forma a que o Partido desconhecesse a realidade do seu comportamento fraco e delator perante a polícia. Confessavam tudo. Quase sempre. Aliás, segundo o Gouveia, na PIDE todos falavam alguma coisa. Do que o detido havia confessado era levantado um auto e ele assinava esse auto onde constavam as suas confissões. Só que esse auto não ia apenso ao processo-crime que o acompanharia ao tribunal plenário. O auto que o acompanharia era outro.
 
                                                                           
 
O auto em que o preso confessara seria o guião para próximas investigações e detenções e interrogatórios aos elementos da célula a que a PIDE ainda conseguisse deitar a luva.
Do auto que se juntava ao processo-crime para efeitos de julgamento público só constavam as acusações e os documentos apreendidos que fundamentavam essas acusações de actividade subversiva. O que lá estava como resposta às perguntas dos interrogadores era: recusou responder. Ou: recusa reconhecer o documento apresentado.
E o auto fechava com um convite à assinatura do detido. E o detido, que assinara o primeiro e verdadeiro auto, recusava assinar o segundo, o que iria com ele a tribunal, e onde era exarado: recusa-se a assinar o presente auto. Mas já tinha assinado o outro…
 
 
O Gouveia afiança que a PIDE sempre se mostrou compreensiva a respeito dos problemas de cada um. E como se vê, até oferecia a salvação, poupando ao Nada existencial a consciência de todo o comunista de carácter mais delicado. O detido aparecia em tribunal e fazia o seu papel de heroico anti-fascista, era condenado, cumpria a pena, não perdia a confiança do Partido e ficava bem visto perante os outros camaradas.
E isto era para os funcionários profissionais na clandestinidade. Mas havia os militantes em situação legal que também podiam ser presos.
 
 
Os legais, uma vez presos, podiam confirmar todas as ligações, identificar outros militantes legais infiltrados nas instituições, e disso era levantado um auto que era assinado por eles.
E era lavrado um outro auto, que era junto ao processo, e onde as acusações eram negadas e era declarado que por absoluta falta de provas de actividades subversivas o acusado era solto.
Sardonicamente, o Gouveia acrescenta: era solto e vinha risonhamente juntar-se aos seus amigos que o admiravam pela atitude firme e desassombrada com que tinha enfrentado a polícia.
 
 
Mas havia alguém – ou passou a haver a partir de certa altura, não percebi bem – infiltrado nos tribunais a detectar a marosca. A PIDE descobriu isso. Como?
Descobriu quando nas casas ilegais de membros do comité central eram encontradas e apreendidas cópias dos autos mais importantes de processos-crime já julgados ou a aguardar julgamento; ou quando na imprensa clandestina se dava notícia da expulsão de funcionários ainda presos e considerados com mau comportamento na PIDE. E a PIDE chegou a conclusões sobre um certo advogado muito conhecido, e já falecido, que não interessa agora identificar.
 
                                                               
 
E é claro que no memorial do Fernando Gouveia nem tudo é a completa e mais pura das verdades.
E é claro que na propaganda heroico-épica do Partido Comunista também nem tudo é a mais completa e pura das verdades.
 
E é claro que em certas matérias a História oficial se escreve com base na menos completa e menos pura das verdades factuais.
 
                                                     
 
E também é claro que nada disto empana o lustro da actividade anti-fascista militante e activíssima do Partido Comunista, e até porque nenhuma outra organização em qualquer tempo a teve comparável, nem de perto nem de longe.
 
 
Mais umas poucas de histórias incorrectas, interessantes e dramáticas há na narrativa de Fernando Gouveia, que ficarão para outra oportunidade, se ficarem, se oportunidade tiverem.
 
 
E é claro que tudo isto é mentira, e que este é um post politicamente incorrecto, e que incorrecção política por incorrecção política já bem basta o que basta.