quarta-feira, 28 de outubro de 2015


         A AUSTERIDADE NÃO É CANCERÍGENA

      É o que nos vale. A austeridade trata-nos da saúde, inibe-nos a gula, afasta de nós os meios de chegarmos aos sangrentos bifes, às capitosas chispalhadas, aos gulosos churrascos, às patas mais negras de um presunto.
 
                                                         
 
       E a OMS é mais um elemento desestabilizador da nossa vidinha. A OMS lançou o pânico sobre os devoradores de tornedós, sobre os indefectíveis do cozido à portuguesa, e até sobre os que, tocados pela austeridade, não podem almoçar todos os dias muito mais do que uma desenxabida sandes de fiambre.
 
 
       A OMS veio informar-nos de que, para o caso do cancro, era igual fumar um cigarro ou degustar uns ovos com bacon. Dá cancro na mesma.
Os restaurantes proíbem os fumadores por causa do cancro do pulmão, porque escolheram colaborar com o cancro do cólon e fornecem bifes. E se à volta de 80% de tudo o que comemos faz mal e pode matar (pelo menos na opinião da OMS), os restaurantes estão a cumprir o seu papel.
 
                                                             
 
E melhor estariam se se criassem compartimentos em que cada cliente pudesse escolher o cancro da sua simpatia: de um lado os tabagistas agarrados ao cigarro e a tratar do cancro do seu pulmão de volta de uma cabeça de pescada; do outro os anti-tabagistas limpos de fumo e a convocar o seu cancro colo-retal retalhando um alto bife da vazia.
 
 
Pois foi mau, e foi desmoralizante, o comunicado da OMS, para os que andam há anos e anos a querer evitar o cigarro continuando a almoçar secretos, pianos e bochechas de porco. Uma desilusão para os que, em prol da salvação da sua alma e do seu corpo, se privaram do seu whiskyzito dos fins de tarde (porque o álcool dá cirrose) mas continuaram a enfardar salsichas enroladas em couve-lombarda. Já não bastava a proibição das alheiras por mor do botulismo. Para se promover uma vida ainda mais insípida tinha que se chegar ao cachorro quente.
O cancro está escrito no volumoso livro da nossa vida. Não há escapatória.
Ou há, claro que sim. A fome. Neste estádio empolgante do progresso civilizacional a fome passa a ser o mais saudável dos exercícios físicos. Não engorda e pode evitar o cancro. Assim como, por decorrência, a austeridade é factor de boa saúde enquanto indutora da fome.
 
                                                          
 
Numa vida de austeridade o perigo do cancro é muitíssimo atenuado. A austeridade é entidade anti-cancerígena por excelência nesta vida de sanitarismo e de correcções incansáveis que levamos (correcção política e correcção alimentar).
 
Quem foi condenado ao desemprego e não conseguiu emigrar para paragens mais alimentícias pode estar livre do cancro. Se não tem dinheiro para tabaco salva-se do cancro do pulmão, do badagaio vascular e dos enfartes (de feijoadas ou de miocárdios). E se já estava livre do cancro do fígado por falta de verba para as copofonias, também pode ficar a salvo do cancro intestinal por falta de dinheiro para as bifalhadas.
 
                                                      
 
Mal estão os alemães, os ingleses, os franceses ou os belgas, ou outros dos prósperos, dos assisados de orçamento, suecos, dinamarqueses. Têm dinheiro que chegue para lidar com bifes, chouriços e presuntos, é certo, mas pela letra da OMS estão condenados ao cancro. Não tenho muita pena deles. O parecer da OMS é a vingança dos pobretanas que foram comendo carnes até à insustentabilidade da sua dívida pública, a qual finalmente os veio a inibir de festins pantagruélicos.
Por isso recomendo: bebamos à saúde da troika. Emborquemos o nosso último copo, fumemos o nosso último charuto, comamos o nosso último bife de novilho: a troika e a sua austeridade não-cancerígena está a salvar-nos a vida.  
 
 

sábado, 24 de outubro de 2015


        ALGO AMEAÇADORAMENTE ESTRANHO

                          O HOMEM DA AREIA

 


            Freud analisou o caso do estudante Nathanael.
         Ainda criança, Nathanael perdera o pai e nunca conseguira esquecer as circunstâncias aterradoras que rodearam a morte do pai.
         À noite, a mãe de Nathanael mandava as crianças para cama cedo. Em face da normal renitência infantil, avisava os filhos de que o homem da areia estava a chegar.
Uma noite, Nathanael afoitou-se e pôs-se à escuta do que se passava na casa depois do recolher das crianças. O que ouviu foi uns passos pesados que iam da porta de entrada ao escritório do pai.
“Mãe, quem é o homem da areia?”. Não era nada, era só um modo de falar sem correspondência concreta.
 
                                                                            
 
É a ama das crianças que revela o real sentido da expressão “homem da areia”. Um homem mau que que visita os meninos quando eles tardam em ir para a cama e lhes atira punhados de areia para os olhos, fazendo-os saltar das órbitas a sangrar, pegando depois nesses olhos, deitando-os para um saco (o homem do saco da minha infância!), esperando até ao próximo quarto crescente da lua, e nessa altura dando-os a comer aos filhos, que têm bicos recurvos e estão num ninho.        
 
Nathanael ouve a tremenda história com algum cepticismo, e resolve dedicar-se à tarefa de descobrir que aspecto poderia ter esse malvado homem da areia.
Consegue esconder-se no escritório do pai. Era uma das noites em que o pai esperava a visita do homem. Quando o visitante entra, Nathanael reconhece-o. É o advogado Copelius, figura grotesca e repelente que infundia medo às crianças da cidade.
 
 
Copelius e o pai sentam-se junto do fogão a falar e a mexer as brasas incandescentes. Nathanel ouve o advogado a reclamar olhos, quero olhos, quero olhos. Nathanael grita. Copelius descobre-o escondido no reposteiro, agarra-o, leva-o até ao fogão e faz menção de lhe atirar as brasas para os olhos. O pai roja-se aos pés de Copelius e implora-lhe que poupe os olhos do filho. Nathanael desmaia.

Nathanael passa muito tempo doente, de cama.
Certa noite, passado um ano, Copelius torna a visitar o pai de Nathanael, há uma violenta explosão no escritório, o pai morre e Copelius desaparece.
Mais uns quantos anos volvidos e Nathanael anda a estudar. Deambula pela cidade universitária  e nota no meio do movimento uma figura que lhe recorda o advogado Copelius.
 
   
 
Trata-se de um oculista ambulante italiano chamado Giuseppe Coppola. Aproxima-se dele. O oculista oferece-lhe barómetros, higrómetros. O estudante não precisa de barómetros e higrómetros para nada. “Não quer barómetros? Não quer higrómetros? Mas também tenho olhos, olhos de óptima qualidade”.

 

                                                              
 
Nathanael fica petrificado de horror. O outro apresenta-lhe uns olhos e então o estudante recompõe-se. Não eram olhos, eram óculos, banais óculos. E fica-lhe com um par de binóculos.
 

 
Esses binóculos usa-os Nathanael para espiar a casa fronteira onde mora o professor Spalanzani, cuja bela filha, Olympia, ele admira. No decurso das observações, o estudante nota que Olympia não se mexe e não fala. O que não impede que Nathanael esqueça a rapariga com quem está para casar e se apaixone por Olympia.
 
 
Nathanael descobre que Olympia afinal não é ninguém.
Olympia é um autómato a quem Giuseppe Coppola colocou uns olhos. Logo, Coppola é o homem da areia da infância do estudante. Quando um dia ele entra na casa de Spalanzani assiste a uma bruta discussão entre o físico e o oculista. É então que Coppola agarra na boneca, agora sem olhos, e leva-a com ele, enquanto Spalanzani apanha do chão uns olhos ensanguentados e os atira ao peito do estudante, afirmando que aqueles olhos que foram postos em Olympia são os olhos do próprio Nathanael roubados pelo oculista. Nathanael tem um acesso de loucura pelas reminiscências que tem da morte do pai, atira-se ao professor a gritar “gira, gira, oh, oh, círculo de fogo, gira, gira, depressa, depressa, boneca de pau, gira gira!”.
 
 
Torna a cair doente. Perde e recobra consciência várias vezes. Um dia volta a si, lúcido, e os médicos dão-no como curado. Agora sim, poderá casar-se com Clara, a noiva que nunca o abandonou.
 
                                                                                              
 
 
O tempo passa. Nathanael, Clara e o irmão desta dão agradáveis passeios. Vão atravessar a praça do mercado onde se projectam as altas torres da câmara municipal. Clara sugere uma subida lá acima, ao alto das torres. E assim fazem. Os noivos sobem à torre e o irmão de Clara fica cá em baixo.
 
 
Clara olha do alto da torre e qualquer coisa lhe chama a atenção lá em baixo, na praça. Nathanael saca dos binóculos em tempos vendidos pelo oculista italiano que levava no bolso, assesta-os, e é novamente acometido por um ataque de loucura. “Boneca de pau, gira, gira, boneca de pau, círculo de fogo, gira, gira!”. Tenta empurrar Clara para o vazio. Clara grita por socorro. O irmão ouve-lhe os gritos, sobe a correr até ao alto da torre, salva-a e desce com ela. Quando chegam à praça olham para o alto e vêem Nathanael a correr de um lado para o outro da plataforma, aos gritos, ”gira, gira, círculo de fogo, gira, gira, boneca de pau, gira, gira!”. Junta-se povo na praça. Todos olham para cima. No meio do povo uma figura se destaca, o advogado Copelius.
 
 
Um grupo de homens quer subir à torre para dominar o estudante. Copelius solta uma gargalhada, “esperem, ele já vem para baixo pelos seus próprios meios”.
Nathanael deve ter dado pela presença de Copelius entre a multidão, porque de súbito fica quieto, imóvel, “sim, sim, óptimos olhos, olhos de óptima qualidade, óptimos olhos!”, lança-se no espaço, despenha-se no meio da praça, cabeça esmagada. Copelius desaparece no meio da confusão.
Já se percebeu que estamos num conto fantástico do genial E.T.A. Hoffmann, Der Sandeman, ilustração do tema freudiano a que chamou “aquele sentimento de algo ameaçadoramente estranho” que paira sobre nós.
A incerteza, é o que o escritor pretende transmitir-nos, algo estranho, algo ameaçador, o quê? O mundo dos espíritos, o mundo dos fantasmas (Shakespeare: Hamlet, Macbeth). E deixamo-nos levar por ele e aceitamos como real o mundo dele, a convenção ficcional. De outro modo quebra-se o sortilégio da ficção que nos leva ao romance, ao teatro, ao filme.
 
 
A experiência psicanalítica do Dr. Freud diz-lhe que a eventualidade de magoar os olhos, ou de os perder, constitui um medo infantil e instintivo dos mais terríveis. Medo que deriva para a angústia com a entrada na idade adulta em que nenhuma outra probabilidade de lesão se manifesta tão como os olhos. É a “menina-dos-olhos dele”, costuma dizer-se.
Ora a angústia da perda da vista vem freudianamente associada a uma angústia de castração; ou é, ou pode ser, uma angústia substituta da angústia da probabilidade de castração. Édipo (tinha que aparecer) “o mito criminoso”, vazando os próprios olhos, atenua o castigo da castração que correspondia (pena de Talião) à enormidade do crime que cometera.
 
 
Freud admite que a perspectiva de perda do membro viril para um homem adulto, obviamente, seja um sentimento forte e obscuro, quando a hipótese de perda de algum dos outros órgãos é o eco, só, desse obscuro sentimento. É o que resulta da análise que Freud fez de neuróticos e da importância do complexo de castração na respectiva vida psíquica.
No conto de Hoffmann, o terror do estudante Nathanael ante a perspectiva da perda dos olhos associa-se intimamente à morte do pai. O homem da areia surge no imaginário do estudante enquanto elemento perturbador de uma ligação afectiva, o pai, Olympia (a boneca), Clara (a noiva), o irmão de Clara (o melhor amigo). O homem da areia é o elemento desestabilizador que o separa dos objectos do seu afecto, até ao ponto de o forçar ao suicídio, e logo nas felizes vésperas do seu casamento com Clara.
 
                                                                
 
Se recusarmos a relação entre a perda dos olhos e a castração nada fará sentido. E tudo fará sentido se Freud entender substituir o terror do medonho homem da areia pelo temor do pai, categoria que no mundo de Freud equivale para uma criança ao instintivo receio da castração.
O sentimento de algo ameaçadoramente estranho ocorre por ocasião de uma incerteza intelectual quanto ao caso de alguém ou alguma coisa ser ou não animado (dotado de uma alma), quando um objecto sem vida (sem alma) impõe à nossa consciência demasiadas semelhanças com alguma coisa viva. As bonecas e bonecos, no caso do mundo infantil. A criança começa a brincar com bonecos sem distinguir completamente o que tem vida e o que não tem, dedicando-se com evidente prazer (e afecto) aos bonecos que manipula como se de seres animados se tratasse.
 
 
Certo paciente do Dr. Freud conta que pelos seus oito anos ainda estava convencido de que se olhasse de certa maneira para os seus bonecos eles poderiam ganhar uma vida própria.
 
                                                  
 
Mas no que se reporta ao conto de Hoffmann, a ocorrência de um medo infantil não se relaciona com o caso da boneca Olympia, e porque a criança não tem medo da hipótese de vida dos seus bonecos, e pelo contrário, até gostaria que tal acontecesse. Não se trata portanto de um caso de medo infantil, é antes um desejo infantil.
E, inevitavelmente, cá vêm as jongleries intelectuais freudianas que nos podem parecer manipulações arbitrárias dos dados da história.
No mundo do estudante Nathanael enquanto criança as figuras do pai e do advogado Copelius consubstanciaram-se numa imagem decomposta do pai, uma ambivalência: um pai mau ameaça ferir-lhe os olhos (castração), outro, o pai bom, faz tudo para lhe salvar os olhos. Há, recalcado, o desejo de morte do pai mau, que vem a representar-se na morte do pai bom e enviando a responsabilidade dessa morte a Copelius, o pai mau.

       Um duplo de pais que na idade madura de Nathanael vem a assentar na dupla professor Spalanzani/oculista Giuseppe Coppola, sendo Spalanzani identificado como categoria parental e sendo Coppola a representação do advogado Copelius. E como Spalanzani trabalhava com Coppola na construção da boneca Olympia ocorre a reminiscência infantil do trabalho ao fogão do pai com o advogado.
Mas o físico Spalanzani também é pai da boneca Olympia. Um desdobramento de uma imagem de pai, então, resultando daí que Spalanzani e o oculista Coppola revestam para o Nathanael já adulto a ameaçadoramente estranha qualidade de pais tanto de Olympia como dele próprio.
De acordo com a interpretação de Freud, a boneca mecânica significaria uma materialização da atitude feminina de Nathanael face ao pai nos tempos da mais tenra infância, com Spalanzani e Coppola, pais de Olympia, a funcionar como reencarnações do par real dos pais do estudante.
Olympia viria a ser um complexo de Nathanael. Tal complexo exerce sobre ele um domínio traduzido pelo amor obsessivo e absurdo dele pela boneca. Um amor narcísico.
Freud aceita como psicologicamente correcto que um jovem fixado na figura do pai, dado o evidente complexo de castração, não se mostre capaz de amar uma mulher, o que está para além do meu entendimento, mas enfim, é Freud quem o diz. Diz e comprova-o pela sua experiência de análise de pacientes reais, de vidas menos fantásticas mas com histórias clínicas comparáveis à do estudante Nathanael saída da imaginação de E.T.A.Hoffmann.
 
 
(Hoffmann nasceu de um casamento muito infeliz. Pelos seus três anos o pai abandonou a casa e a família e nunca mais foi visto, sendo a relação dele com a imagem do pai – a fazer fé nos biógrafos – um dos pontos capitais da sua vida sentimental.) 
E como sentimento de algo ameaçadoramente estranho nas nossas vidas ainda há a questão do duplo, o nosso duplo. Veremos isso a seguir.

                


 

         ALGO AMEAÇADORAMENTE ESTRANHO

                               O DUPLO

      O duplo. O espelho.
 
 
         Posso contar um episódio. Ia num comboio, estava sentado num compartimento com couchette, quando, na sequência de um violento solavanco do comboio, se abriu a porta da casa de banho contígua e um senhor de idade, em roupão e com um boné de viagem, entrou no meu compartimento. Supus que ao deixar a casa de banho, situada entre os dois compartimentos, se tinha enganado e entrado no meu compartimento; ergui-me, mas reconheci, perplexo, que o intruso era a minha própria imagem reflectida no espelho da porta de comunicação. Assim, em vez de nos assustarmos face ao nosso duplo, pura e simplesmente não o reconhecemos – escreveu Freud.
 
 
         Todos nós já vivemos experiências parecidas.
         Noutro episódio, um fulano assusta-se muito quando reconhece na cara de alguém que subia para um autocarro a sua própria cara, comentando “mas que mestre-escola com um ar tão miserável”. Uma reacção que Freud designa de arcaica: a visão do nosso duplo é sentida como algo de ameaçadoramente estranho.
 
 
         Se houve contista especialmente hábil na comunicação desse algo de ameaçadoramente estranho foi E.T.A. Hoffmann. E um dos elementos mais em evidência na criação deste efeito literário é a introdução na narrativa do duplo, personagens que pela aparência semelhante passam por idênticas e em que uma compartilha com a outra sentimentos, pensamentos e experiências, o que perturba o sentimento que se tem do próprio ego quando para o interior desse ego se desloca um ego alheio, com repetição de traços fisionómicos, de carácter, iguais desígnios de vida e inclusive actos criminosos. E assim no decorrer de gerações sucessivas.
 
 
         Um clássico das histórias fantásticas alemãs (não de Hoffmann, de Ewers) é a do Estudante de Praga, que vai para um duelo e promete à namorada não matar o antagonista. Porém, a caminho do local do duelo encontra o seu duplo, que acaba de matar o seu rival.
 
 
         Uma alma imortal pode ser o duplo de um corpo.
 
 
Toda a vida da criança é marcada por um narcisismo primário. Superada essa fase, aquilo que a noção de duplo anunciava modifica-se, o duplo torna-se ameaçador, promete a morte.
O sentido de algo de ameaçadoramente estranho relacionado com o duplo decorre da circunstância de este duplo ser uma construção própria da fase primitiva do psiquismo, uma fase ultrapassada. Mas o ego regressa à época em que ainda não se separar do mundo exterior, dos outros.
 
 
A sensação da existência de algo de ameaçadoramente estranho é o factor mais vulgar a concorrer para uma superstição, e uma das forças mais ameaçadoramente estranhas da superstição é o medo do “mau-olhado”. Quem é possuidor de uma coisa valiosa, e todavia perecível, receia a inveja alheia. Uma inveja que o sujeito projecta sobre outrem, na certeza de que sentiria essa inveja no caso de se inverterem os papéis. E essas são emoções que se podem revelar pelo olhar, independentemente de alguma expressão verbal. Tem-se medo da intenção oculta do outro em nos prejudicar, e para esse medo somente nos baseamos em breves indícios.
O espelho. O duplo.
 
 
O nosso duplo começa a viver pela nossa imagem reflectida no espelho, pela sombra que projectamos. Mais adiante aparecem os espíritos protectores, depois vêm as teorias da alma, e por último o terror da morte.
É de crer que emprestamos o carácter de algo ameaçadoramente estranho a essas impressões que pretendem confirmar a omnipotência do pensamento e a forma de pensar animista, ao mesmo tempo que já atingimos um estádio de pensamento que delas nos afasta. (Totem und Tabu).
Mas a mitologia do duplo servia originariamente de protecção contra a destruição do ego, um ”desmentido ao poder da morte”. Representações que decorrem de um ilimitado amor por si próprio, do tal narcisismo primitivo que ocupa inteiramente a psique da criança, como também dos povos mais primitivos. E se o duplo é um protector na fase primitiva, pode em seguida ultrapassar essa fase e tornar-se uma ameaça, um pregão de morte próxima.
 
 
O senso moral.
Se o narcisismo primário se esvai no correr da nossa vida psíquica, ocorrerá um instinto de autoanálise, ou de autocrítica, uma censura psíquica a que se pode chamar de senso moral.
 
 
Dado o caso de o sujeito ser capaz de uma auto-observação, a questão do duplo pode adquirir novos sentidos, sendo um deles a superação dessa fase primitiva do narcisismo.
O duplo pode ainda representar aas possibilidades não concretizadas de um destino, o que instiga no sujeito o forte desejo de realização das ambições do ego, das acções da vontade que vinham sendo reprimidas. Uma ilusão de livre-arbítrio.
 
 
Também os antigos deuses (Heine) no decair do prestígio das religiões se transmutaram em demónios.
 
 
Em certa tarde de verão, numa pequena cidade italiana, Freud resolve dar uma volta pelas ruas desconhecidas e desertas. Chega a uma praça e vê às janelas das pequenas casas um certo número de mulheres muito pintadas. Fica incomodado e imediatamente acelera o passo e vira a esquina mais próxima. Caminha mais um tempo sem destino e desemboca de súbito na mesma praça das mulheres muito pintadas – que então começam a atentar na figura dele. Afasta-se, caminha e caminha por mais algum tempo, dá voltas e voltas, e de novo se acha, pela terceira vez, na mesma praça. A sensação que experimenta, claro, é a de algo ameaçadoramente estranho.
O regresso não intencional ao mesmo ponto é outro dos assustadores indícios de que algo de ameaçadoramente estranho se está a passar.
 
 
É o factor da repetição involuntária que torna ameaçadoramente estranho o que ate então fora irrelevante, inofensivo, e nos segreda a ideia de que alguma coisa má, inevitável, está, ou estará, para acontecer.
 
 
        Outro aspecto da questão é o caso do homem que põe o sobretudo no vestiário do teatro, recebe uma chapa com um número – arbitrariamente, suponho eu, Freud optou pelo 62 – e vem a descobrir que o camarote que lhe foi indicado também tem o número 62. Mas o pior é quando ainda nesse dia, ou nos dias que imediatamente se seguem, o mesmo homem repara que tudo o que lhe é facultado e implica classificação numérica, porta de rua, carruagem de comboio, quarto de hotel, tem o número 62.
          Algo de ameaçadoramente estranho.
E depois há os que conferem um sentido oculto à repetição do número 62 – ou outro, evidentemente. Será um sinal que talvez se reporte ao tempo de vida que reste ao sujeito.
Também esse algo de ameaçadoramente estranho que é o regresso do que é semelhante tem ligação à vida psíquica infantil – é o que diz o Freud.
 
 
Compulsão à repetição. Pode ser manifestação intensa. Tão intensa que pode muito bem sobrepor-se ao soberano princípio do prazer. É o que pode acrescentar o carácter demoníaco a alguns lances da nossa vida psíquica. Manifesta-se nas aspirações da criança. Segundo Freud, domina a evolução da análise dos neuróticos.
 
 
Noutra história clínica, Freud fala do neurótico obsessivo que foi para umas termas e que nessas termas experimentou melhoras consideráveis. Para o neurótico, no entanto, não terá sido a força curativa da água das termas a responsável pelas melhoras. Terá sido, isso sim, a localização do quarto onde ficou, por acaso paredes meias com as instalações de uma apetecível enfermeira. Tanto que, quando voltou às mesmas termas, exigiu ficar no mesmo quarto. Impossível. O quarto estava ocupado por um cavalheiro de idade. Danado, o neurótico diz para o funcionário da recepção: “ah sim, pois Deus queira que esse cavalheiro de idade tenha uma apoplexia.”
Passadas duas semanas, o cavalheiro de idade tem uma apoplexia.
O neurótico tem conhecimento do caso e fica com a sensação de que algo ameaçadoramente estranho pairava no ar.
 
 
         Todos os neuróticos obsessivos analisados por Freud podiam com a maior das facilidades contar casos parecidos - algo de ameaçadoramente estranho, diria eu, para o próprio Freud.
         Também nenhum esses neuróticos obsessivos se surpreenderia ao encontrar na rua uma pessoa que há anos não viam e na qual tinham, por acaso, pensado nesse mesmo dia – já me aconteceu, e mais do que uma vez, de maneira que o meu diagnóstico deve estar feito: sou um neurótico obsessivo, não tenho saída.
         E á noite os neuróticos obsessivos comentam com a família os tantos anos passados sem terem notícias de certa pessoa, mas sempre esperando receber carta dessa pessoa na manhã seguinte. Algo de ameaçadoramente estranho.
 
 
         No geral, o que nos parece ameaçadoramente estranho é alguma coisa que se possa associar à morte. À morte, aos cadáveres, ao regresso dos mortos, aos espíritos, aos fantasmas. E porque o que reputamos de ameaçadoramente estranho o relacionamos com o que é assustador, um assustador que precisamente se oculta no que é ameaçadoramente estranho. Pensamentos e sentimentos nossos que se modificam muito pouco e do que preservámos do antigo ficou a nossa relação com a morte a sobrepujar tudo o resto.
         Á Biologia do tempo freudiano custava decidir se a morte era uma fatalidade necessária reservada a todos os seres vivos, ou se não passava muito de um acaso regular que fazia parte da vida – aliás, um acaso talvez evitável.
 
 
         Restam as religiões para contestar a inevitabilidade da morte individual, e por isso mesmo defendem o prolongamento de uma existência para lá do fim da vida.
         Para os ameaçadoramente estranhos poderes políticos a coisa fia mais fino, e muito sabiamente pensam que seria tragicamente impossível manter a ordem moral entre os vivos se deixassem de tentar melhorar a vida terrena com as promessas e expectativas de uma vida melhor no Além.

 
         O homem que sonha passa, enquanto sonha, por certo lugar e, sempre em sonhos, diz: “conheço este sítio; tenho a certeza de que já aqui estive”. Na interpretação de Freud é o conteúdo do sonho, a visão do lugar, a identificação, a reminiscência que substitui o lugar familiar e agradável onde se pensa que já se esteve pelo corpo da mãe, pelos órgãos genitais da mãe (onde efectivamente já se esteve). Porque o sentimento de algo de ameaçadoramente estranho também pode ser adquirido pela memória daquilo que em tempos foi familiar, foi acolhedor.