quinta-feira, 23 de julho de 2015


               OIKONOMIKÉ

Atenas. Porto do Pireu. Século IV.
 
 
O pai do poeta Hesíodo está no Pireu pronto para se fazer ao mar em “negro barco”, à procura do lucro aleatório em Acra, remédio único para escapar “às dívidas e à amarga fome”, navegando cinquenta dias no pleno verão quando se apanha um mar menos perigoso.
Os gregos começam a competir nas trocas comerciais do Mediterrâneo.
 
 
Chegam até nós, graças à importância da nossa cidade, os produtos de toda terra, e os bens produzidos por nós já não são só nossos mas também do resto do mundo – disse Péricles (citado por Tucidides).
As atividades do porto do Pireu desenvolvem-se. A cidade começa a dedicar mais atenção à vida comercial, até então ferida de indignidades, agilizando as vias de comunicação e exportação, assim como a organização fiscal e o aumento dos impostos a cobrar aos mais ricos, se quer gerar receitas que permitam o bom funcionamento das instituições.
 
 
Só os atenienses podem ter nas suas mãos as riquezas dos gregos e dos bárbaros. Se um Estado é rico em madeira para a construção dos barcos, onde a venderá se não se entender com o povo que é senhor do mar? (Idem.)
Inicia-se a ação da magistratura financeira. Chamam-se os técnicos, o mais notável deles Licurgo, o grande administrador da cidade que leva a tribunal os imprudentes e desonestos concessionários das minas.
 
 
Os cidadãos ricos começam a desinteressar-se dos assuntos da cidade em benefício dos seus negócios privados e são por isso censurados pelos oradores do areópago, tanto quanto o são os mais pobres que depois da perda do império perderam soldos, despojos de guerra e concessões de terras e vivem agora dos subsídios provenientes das representações dramáticas.
 
 
O nosso país é o que oferece mais prazeres e mais lucros aos comerciantes, porque possui os refúgios mais cómodos e mais seguros para os navios, que uma vez ancorados podem descansar sem receio do mau tempo – disse Xenofonte.
Quando começou a colonização, os gregos começaram a emigrar e a falta de terras obrigava-os a fazer-se ao mar em busca de terras novas.
A posse da terra era fonte de preocupações e conflitos. Os gregos viviam na cidade, que significava a forma superior da organização humana, mas era a terra que garantia ao grego os meios de subsistência e era a agricultura a atividade principal da comunidade.
 
                                                     
 
O bom funcionamento da cidade exigia dos membros da comunidade que fossem proprietários rurais, e sendo esses os únicos a considerar como cidadãos; e sendo também que, para fechar o círculo dos dilemas, só poderia ser proprietário aquele que fosse cidadão.
A questão é que a terra helénica não era fértil, com exceção das terras produtivas do Peloponeso, e os cereais tinham que vir do Egipto ou da Cirenáica.
 
 
Em Atenas, os proprietários trabalhavam pessoalmente as terras “ricas em abelhas, ovelhas, bagaço de azeitona, a cheirar a vinho novo, a lã, aos caniços para o queijo, a abundância”, e os pequenos e médios proprietários eram a massa da população.

 
Foi a guerra do Peloponeso a dar cabo da relativa prosperidade desses pequenos e médios proprietários rurais, obrigados a abandonar as terras e as casas.
 
 
Aristófanes, o comediógrafo, dedica-se ao assunto numa peça em que põe uma personagem a vaticinar a hipótese de entregar o poder às mulheres, o que implicaria o risco de coletivização dos bens, única maneira de acorrer aos que nem um palmo de terra tinham para serem sepultados.
 
                                                                             
 
É essa miséria e fome dos camponeses que se vestem de andrajos e se alimentam das “folhas de nabo raquítico” a dar azo às reivindicações revolucionárias que pretendem a divisão das terras e o perdão das dívidas.
O proprietário também podia entregar o cultivo da terra aos escravos de confiança. Acabada a colheita, os escravos entregavam-na ao proprietário. Porém, a pobreza podia obrigar os homens livres a fazer trabalho de escravo.
 
 
No século IV a agricultura era fonte de rendimentos elevados quando se vendia a madeira e o vinho e se especulava nos preços. A cidade apoiava-se nos proprietários rurais, e por aí se compreende as lutas que rebentavam no sentido da repartição mais justa da posse das terras.
 
 
Derivadas do movimento cívico do século VII, que tinha como motivo justamente a desigual repartição da propriedade fundiária, surgem as tiranias. E daí Aristóteles propor como modelo mais próximo da cidade ideal uma república de camponeses.
 
                     
 
Também Esparta era uma cidade de proprietários de terras, todavia não sendo esses de considerar como camponeses. Na Lacónia viviam os camponeses escravizados, os hilotas, um perigo para os espartanos pelas constantes revoltas que armavam.
Quem não tinha estatuto eram os artesãos. É Xenofonte quem o diz: os ofícios chamados artesanais estão desacreditados e são desprezados nas cidades.
 
 
Porque o trabalho artesanal arruinava a vida dos operários, obrigava-os a uma vida caseira, sempre sentados nas oficinas, junto do fogo, sem tempo livre para os amigos e para a vida da cidade.
 
 
Quem exerce tais ofícios é um indivíduo mesquinho, tanto nas relações com os amigos como na ajuda à pátria.
E nas cidades guerreiras (Esparta) proibiam-se terminantemente os cidadãos de se dedicarem ao artesanato.
 
                                                                              
 
Em Atenas, entretanto, e sob a tirania dos Pisístratos, com os cidadãos cheios de dívidas e desprovidos de terras para cultivar, o artesanato desenvolve-se rapidamente. Os tiranos estimulavam as construções públicas, cunhavam as primeiras moedas de que há notícia como consequência da exploração de minas de chumbo, assim ativando uma política de expansão marítima, que Temístocles e Péricles vêm a desenvolver no século seguinte.
 
 
É o segundo quartel do século VI que marca a aparição da cerâmica das figuras negras, a que se segue a das figuras vermelhas. É a cerâmica ática a vai destronar a cerâmica coríntia.
 
 
Aristóteles, no Livro I da Política liga a invenção da moeda às necessidades das trocas comerciais. A moeda era um instrumento de medida de valor dos bens trocados, mantendo as reciprocidades na comunidade cívica.
       
                                                  
 
E é quando Atenas começa a cunhar moeda que a exploração mineira regista um maior incremento, meados do século VI. As minas eram propriedade do Estado, que as concedia de exploração a privados, naturalmente contra o pagamento de uma renda.
O tratamento dos minerais desenvolve a cidade e muito em função dos impostos, além de ocupar os cidadãos mais ricos, ao contrário do que podia acontecer com a atividade artesanal.
Além das minas, a cidade fomenta a construção naval, que serve de escoamento profissional para os pequenos artesãos livres, a trabalhar nela em conjunto com os escravos.
 
 
Instituição e atividade muito antiga e que implicava muito capital de matéria-prima e mão-de-obra de cidadãos e de pessoal das colónias era a indústria das armas.
 
                                                                            
 
O grande Demóstenes era proprietário de uma dessas fábricas, onde tinha 30 escravos a trabalhar e lhe dava de rendimentos 300 dracmas/ano. Tinha herdado do pai provisões de marfim e ferro que o incentivaram a dedicar-se à indústria.
Claro que essa indústria ateniense de armas poderia hoje chamar-se indústria de defesa nacional. Produzia os previsíveis e cortantes instrumentos, espadas e lanças, mas não só isso, também escudos, elmos, capacetes e penachos.
 
 
A propósito, Aristóteles não conferia ao artesão estatuto de cidadão da cidade ideal. No entanto, ainda aceitava o caso de artesãos cidadãos numa cidade onde reinasse a oligarquia, e por estes artesãos fabricantes de armas serem homens muito ricos – entre os 5.000 cidadãos a quem a certa altura tinha sido retirada a cidadania por não serem proprietários de terras, havia uma quantidade considerável de homens ricos, que vieram a assumir o poder nos fins do século V.
 

                  
 
Também os curtidores eram homens ricos, os sapateiros, os que trabalhavam o couro bruto
E o oleiro e o pintor eram homens livres com direito a assinarem os seus trabalhos.
 
 
- Quem é essa gentalha que te intimida? – pergunta Sócrates ao jovem Cármides. - São sapateiros, carpinteiros, ferreiros, traficantes que vendem por muito o que compraram por pouco. É essa a gente que constitui a assembleia do povo.
 
                                                            
 
Exacto: no seio da democracia ateniense, artesãos e comerciantes juntavam-se aos camponeses no poder de decisão das assembleias do povo.
 
 
Mas o comércio era ocupação para marginais. Era ocupação de camponeses endividados, de filhos mais novos atirados para fora da herança de família e dos rendimentos, e que por isso largamente se endividavam também.
 
 
E para tanta dívida, a salvação estava ali no porto do Pireu, estava no mar. Estava no lucro chorudo do que quer que vendessem, desde que o tivessem comprado por baixo preço.
 
 
As dívidas, questão grega muito antiga.

                                                  
 

domingo, 5 de julho de 2015

     SALVÉ, ESCRAVOS DA DEUSA DE METAL


 

A entrada do novo século, ainda, o XX, quando as doutrinas científicas pareciam de natureza tão essencialmente dinâmica que repeliam uma aspiração de absoluto. Foi um castigo primeiro que se reconhecesse à observação uma preponderância sobre a imaginação como condição do especular científico. Mas as interpretações erradas fariam descambar a vera ciência para a banal acumulação de incoerências, todavia, embora parcialmente, exactas.

 

                                                                                    

 

O positivismo marcava o novo século, como já estava a marcar os sopros finais do velho século. Barómetros hipersensíveis, os intelectuais acusaram o golpe, assustaram-se. Se se deixasse de pensar em Deus como instância espiritual de apelo e se se passasse a viver e a pensar subordinado ao real objectivo, desvalorizando a imaginação e o sonho, bom, era caso para um poeta se suicidar

 
Um homem pensante e atento, e francês, é claro, definiria uma lei de vida. A lei dos três estados. Três estados teóricos, distintos, determinavam o âmbito de um novo conhecimento. Esse homem chamava-se Auguste Comte.
Um estado a que se chamava de teológico – a que se poderia acrescentar o qualificativo de fictício.
Outro estado a que se chamava de metafísico, mas que também podia ser dito de abstracto.
 
                                                                 
 
Finalmente, o estado científico, que era o positivo.
Três métodos de pensar. Três sistemas conceptuais. Três formas de abordar os fenómenos da vida. E três sistemas que entre si tinham a virtualidade de se eliminar. E se o primeiro, o teológico, era fonte de onde dimanara a inteligência, e o segundo um patamar de transições, o terceiro, o científico, determinava o limite da cogitação humana. Era um fim. Impossível avançar, inconveniente regressar a qualquer dos outros sistemas depois de obtida a prova científica.

 
No primeiro estado, ou sistema, o que acontecia era definir-se como objectos a natureza mais intrínseca e íntima de todos os seres e indagar da causa primeira de todos os efeitos, um conhecimento do absoluto, a convicção de que todo o fenómeno decorria em suas causas e efeitos da acção do sobrenatural, e por aí se explicando até as aberrações universais.

                                                              
 
A metafísica conformava o estado teológico-fictício com ligeiras nuances. Não se deitavam iniciativas ou responsabilidades directamente ao sobrenatural mas contava-se com a acção de agentes desconhecidos, abstractos, cada um com poderes sobre, digamos, o seu ramo de especialização. Podia não ser já Deus o supremo mestre criador; poderiam ser deuses a dividir entre si os poderes.
 
 
Chegado ao científico, ou ao positivo, o espírito humano reconhecia por fim as suas incapacidades, a impossibilidade de chegar às noções absolutas. E reconhecendo-o, desistia, renunciava. Renunciava a quê? A partir em busca das causas e das finalidades do universo e seus magníficos, temerosos e misteriosos fenómenos. Optava antes o espírito humano por indagar das leis e das relações de sucessão e semelhança que regiam esses fenómenos. Os factos apreciavam-se pelos seus contornos reais e entreteciam-se fios de ligação entre os casos particulares e os casos gerais.
 
                                                            
 
E por falar nisto ocorre um nome que já por esta época se interrogava acerca do valor prático de uma verdade, William James: admitida como certa uma ideia, ou uma crença, que diferença concreta resultará dela para a vida que vivemos? Como é que esta verdade se efectivará? Que experiências resultarão dela, em lugar das obtidas a partir de uma crença falsa? Qual, em termos de experiência, o valor prático da verdade?
 
 

É que a verdade de uma ideia, no dizer do mesmo William James, não lhe é propriedade inerente. Nem inerte. A verdade acontece. E acontece numa ideia. E esta ideia faz-se verdade; ou fazem-na verdadeira certos factos. A ideia verifica-se a si mesma, e tem por finalidade e resultado a sua própria verificação.

 

                                                                                    

 

De regresso a Augusto Comte, vamos dizer que um facto, seja ele particular, seja ele geral, não contém em si nenhum sentido inteligível, real. Um facto consistirá, sobretudo, antes de tudo o mais e mais do que tudo, no seu puro enunciado.


 
Adeus para sempre à pura imaginação e ao seu império mental na descoberta do mundo. À imaginação não resta alternativa outra do que sujeitar-se à observação, por forma à obtenção de um estado lógico das coisas e das vidas. Nada é possível conhecer em cada efeito para além das relações que esse efeito mantenha ou não com outros efeitos, nunca quanto ao mistério da sua produção.
Aos positivistas interessava saber o que era, o que é, porque se sabiam impotentes para descortinar a causa primeira tanto quanto o destino final daquilo que era. O absoluto era então alvo fora do alcance e fora do combate das ideias, erigindo-se em seu lugar o relativo.
E depois, seria bom que se percebesse que os fenómenos humanos individuais não eram estrictamente individuais apenas por resultarem de uma evolução colectiva e contínua de elementos conexos entre si, donde os fenómenos individuais passarem a ser entendidos como fenómenos sociais.
 
                                                                      
 
A especulação lógica ater-se-ia sempre às condições de uma existência individual, as quais, em última análise, reflectiríam as condições do progresso social verificado, sem absoluto nem permanência. E isto punha os cabelos em pé aos metafísicos.
Era o novo espírito científico, o novo espírito positivo a distanciar-se do misticismo e do empirismo que tanto tinham estigmatizado os pensares antigos. O positivismo reservava-se severamente o direito de navegar nessas águas, criticando as ilusões criadas pela procura do absoluto.

 
Os hábitos de absoluto estavam no entanto bem enquistados na mente humana. E desse absoluto ninguém quisera investigar as origens. Como se de noções milenares, nascidas com o primeiro homem se tratasse. Mas não, não eram atávicas – garantiam os positivistas. Eram noções induzidas de fora do indivíduo, de fora da colectividade dos indivíduos. E eram induções insidiosas, nocturnas, a dar lugar às ilusões teológico-metafísicas.
                                                                       
                                                             
 
Os intelectuais da tradição, do instinto, da intuição, do golpe de asa, da imaginação, insurgiram-se, violentados, o seu mundo ruía em desditosos pedaços, não podiam aceitar as baias que lhes queriam pôr à consciência de uma realidade, custava-lhes terem de se cingir ao facto em si e por si como limite do seu labor criativo.
O mundo apertava-se, tornara-se demasiado pequeno para eles. E da crise do empirismo, do espírito religioso e do misticismo, arrancava a crise do próprio positivismo, a rebelião.

 
Por exemplo, em Portugal. E porque em Portugal a entrada do positivismo fora impetuosa e devastadora. E de forma a dar alentos intelectuais às ideias republicanas, quando tomou os seus aspectos sociológicos.
Mas tanto quanto se impunha o positivismo nos meios literários e académicos portugueses, assim ia sendo contestado. Antero e Oliveira Martins estavam na primeira barricada dessa contestação. O conhecimento científico não poderia abarcar a explicação das coisas. À ciência o que eram os fenómenos; à filosofia e à metafísica o que era a reflexão sobre o absoluto.
 
                                                                                 
 
E afinal de contas, o positivismo, nas suas fronteiras acanhadinhas também se traduzia num dogmatismo, e porque ilusórias eram também, ou poderiam ser, as conclusões da ciência. Não era possível, e nem sequer aconselhável, pensar manietado pelas cadeias únicas da experiência. Experiência que não fornecia leis para a indução, e sendo que as leis do espírito são inerentes ao espírito, não derivam da experiência.
 
 
Sampaio Bruno, Oliveira Martins, Raúl Proença, António Sérgio, Antero, Leonardo Coimbra, e, para mim o mais interessante e criativo, Teixeira de Pascoaes. Todos eles de uma forma ou de outra críticos do positivismo.
 
                                                                  
 
Pascoaes embebia-se do sonho religioso e messiânico da raça. E assim entendia ele combater o estrangeirismo que invadira o pensar português, e do qual se levantavam como expoentes maiores o positivismo e o constitucionalismo franceses. Estava em acção o movimento Renascença Portuguesa.
 
 
Pascoaes. Não se pense que ele não era republicano. A implantação da república fora mesmo para ele o inaugurar de uma nova idade para a identidade nacional.
O homem português de Pascoaes era um homem integral. Ser físico e ser metafísico. Inteligência dedutiva e inteligência intuitiva. Consciência poética, vamos lá, sem desprezo de uma consciência científica. Em suma, o homem português, pronto ao enfrentamento das duas facetas do universo, uma formal e outra substancial.
 
                                                            
 
Para Pascoaes o 5 de Outubro pode ter sido uma festa. Aliviava-nos a influência de Roma, é certo, e era bom. Para ele, que se queria panteísta e que entendia o povo português como uma comunidade religiosa, sem dúvida, todavia não católica.
Mas se a chegada da república extinguira o que ele chamava de lâmpadas de Roma, por outro lado acendera o que era urgente apagar, e que ele dizia serem os fachos de Paris.

 
Teríamos de nos guiar pela nossa própria candeia, alimentada com o azeite das nossas oliveiras.
Teríamos de aspirar a uma república, sim, a uma democracia, claro, mas uma democracia religiosa, rural e corporativa.
O que existe é uma aspiração esparsa, latente, em nebulosa – uma atmosfera, um sentimento de mal estar que é condição de movimento e desejo de alguma coisa – não se sabe bem o quê. Que nos incite, que nos impulsione, que nos una, que nos salve. Sente-se de mais para carecer de demonstrações.
 
                                                                             
 
Sentimento, ou sentimentalismo, português, e sempre e sempre necessidade de salvação colectiva, nas palavras que acabaram de se ouvir, de Raúl Proença, crítico do materialismo e do determinismo e crente num realismo idealista.
 
 
Proença pretendia ver Portugal como parceiro de parte inteira da civilização mundial. A Europa seria para Portugal um espelho. Portugal confrontar-se-ia a cada passo com esse espelho e o que esse espelho lhe devolvia era uma imagem de subalternidade, de menoridade que deprimiam a vidinha. 
 
                                             
 
Sérgio queria-se idealista, porém racionalista e crítico. Não morria de amores pela preponderância do facto, ou da experiência, porque o conhecimento seria engendrado na física, na matemática, na geometria, na ultrapassagem do sensível pelo inteligível.
 
 
Leonardo Coimbra não queria nada com os factos nem com a experiência. A dialéctica do pensamento humano não estaria nas coisas, estaria nas representações ou nas noções dessas coisas – a sensação. A sensação não era um dado. Era uma categoria psicológica. Portanto, não seria uma realidade estável, seria um passo no processo dialéctico a desembocar em realidade, em sentido.
Mas gosto do pensar de Pascoaes. Pela plástica. Pelo recorte poético superior e impreciso e imponderável que encerra, ou em que se encerra, mais então pela forma literária do que pelos rigorosos valores filosóficos. E quanto ao valor filosófico do que escrevia, e porque o seu pensamento não passava de um afloramento de sentimentalidade, a seu ver, um pensamento cujas coordenadas lhe pediam uma forma artística de expressão, deixava a avaliação dele, segundo disse, aos críticos, às cabras e a outros roedores. O importante era o ensejo de apresentar a sua filosofia ao leitor.
 
                                                                 
 
A ciência? Pff! Um jogo de forças repetido, ou lentamente modificado, gestos insubstanciais, formas ocas, casca de um fruto proibido.
A ciência, para ele, era o que desenhava a onda, mas era a poesia que a enchia de água.
O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas.
Havia nele, Pascoaes, um paradoxo filosofante muito complexo nos seus termos: a razão era irracional; Deus era humano; a natureza era sobrenatural.
 
 
Um poema:
vede o homem sonhando;
e pelo sonho remindo as ermas cousas transitórias, concluindo a imperfeita criação que Deus iniciou 
Quem era o Homem na fronteira do século XX, engasgado entre o facto e o não facto, a imaginação e a realidade, o empirismo e a observação, o sonho e a experiência? Seria o mesmo Homem que o mundo conhecera dos séculos atrasados ou sofreria nas suas noites outros e mais aterradores sonhos?
 
 
Pergunto e Pascoaes replica-me: o sonho do homem actual é ser um esqueleto antecipado, com asas de alumínio, sobre um planeta roído até ao caroço. Ao homem mitológico, escravo dos deuses sucedeu o homem metafísico, escravo de um Deus; e a este o industrial, escravo de uma deusa de metal, aquela mulher eléctrica, numa barraca de feira, estendendo a varinha mágica aos labregos espantados.
 
                                                                 
 
Pode não haver mais perfeita alegoria já não digo do Homem industrial mas até mesmo do labrego informático, cada dia mais labrego e cada dia mais informático, que vive a fronteira do outro século, este, o XXI.
Ao Homem, ao labrego espantado com a varinha mágica do cientismo e da industrialização, tocaria tomar para si os padecimentos do universo, ser companheiro de Deus na dor de si mesmo.

 
Porque Deus criara o universo por desfastio, ou distracção, e ficara banzado com o que fizera, e passara a andar roído de saudades de si mesmo, do seu ser que não era ainda criador, uma vez que enxergava no mundo por si criado o seu próprio fim.
Ao Homem de Pascoaes restava ser uma consciência do seu próprio criador. Deus sofre. A sua divindade é uma doença. Escreveu ele. E porque também o Homem penava. Por ser ele mesmo, em si mesmo – homem.
 
                                                                   
 
As coisas são lágrimas de Deus, imagens arrefecidas, já serenas, da sua dor. Deus sofre. Eis a razão de tudo.
Em Deus estaria a origem de todo o mal. Em Deus estaria o originalíssimo pecado. Terá sido para expiar esse pecado que se fez homem. E também para se aperfeiçoar, porque a finalidade última do Homem seria ser ele a consciência do universo, e assim em penosa ascensão a caminho, justamente, de Deus.
Não seria pela particularidade do universo mental de Teixeira de Pascoaes que o positivismo francês medraria no pensamento português. Por causa das certezas ou das renúncias especulativas que esse positivismo comportava. Estava-se perante um conflito aberto: de um lado, a certeza científica; do outro a sensibilidade religiosa de onde brotava a poesia. E conflito porque uma e outra visariam um escopo político. Ou seja, um domínio. Como diz Pascoaes: de um lado temos o Cristo-Rei, e de outro um anti-Cristo presidente. E ainda havia a saudade. Essa palavra saudade…
 
 
 
O Homem é criador, não é criatura coisa nenhuma.
o seu gesto era olhar, isto é, criar,
converter em humano sentimento
a espiritualidade azul do ar.
E a saudade era uma deusa. Nascida do sonho. Redenção do universo. Redenção de Portugal. Santidade cósmica aparecida dos esponsais entre a maternal neblina e o duro torrão, Jesus e Pã. Na alma portuguesa achava Pascoaes uma via de consensos entre paganismo e cristianismo.
E em Leonardo Coimbra achava Pascoaes a expressão filosófica de quanto ele próprio pensara, a quanto ele próprio não pudera emprestar expressão que não fosse poética.
                                                                 
 
Vede a que sublime altura filosófica Leonardo Coimbra elevou a alma da sua raça que é a saudade, e, por conseguinte, a matéria e o espírito cósmicos fundidos num perpétuo abraço amoroso e criador. Leonardo representa a ideia fundamental de um povo, o móbil psíquico de uma raça a construir um novo mundo.
A saudade como lusitano modo de criar.
 
 
Religião não podia ser imposição dogmática – isto para Leonardo Coimbra. Porque religião era pensamento. O pensamento científico, através da consonância das consciências levou à pessoa humana, logo, essa pessoa reclamará para si a liberdade de uma criação essencial, e moral, na arte, na filosofia ou na religião. E pela religião a humanidade acederá ao cosmos, alargará perspectivas solidárias. Caberia então ao Homem ser entidade onde se representaria o Todo.
 
                                                              
 
       Quem cria, afinal, o universo, senão o pensamento humano?
 

 
É aliás por esse processo criador do universo que o Homem pode ascender. Ascender aonde? A quem? A Deus. Um Deus transcendente, porque nada está criado de um só fôlego e de uma vez por todas.
 
                                                                  
 
Compreender é unir; compreender é amar.
Qual é o princípio de uma identidade cultural portuguesa, onde está, desde o momento em que essa identidade aproveita tanto quer a tradição escolástica quer a do pensamento positivista?
É um princípio, segundo Leonardo Coimbra, só encontrável na nossa literatura – ou na nossa poesia. Ou, enfim, na linguagem, no falar e no inventar. Tudo em Portugal – e designadamente a questão política – se imbricaria num problema de pedagogia, e sendo este problema pedagógico decorrente de uma questão filosófica. Uma ideia, acho eu, cheia de actualidade.
 
 
A mais relevante identidade cultural portuguesa estaria então oculta, e oculta na linguagem, porque o talento peculiar de cada povo é o que inunda as palavras de sentidos secretos e mais profundos.
O intérprete de um trecho literário só poderá entender a linguagem numa acepção simbólica, cifrada, remetendo o sentido derradeiro do discurso para territórios mais recuados da consciência.
 
                                                 
 
Já mestre Unamuno dizia que a filosofia espanhola estava difusa na literatura, na vida, na acção e na mística, e nunca patente e claríssima em fosse qual fosse o sistema filosófico.
 
 
Campo de interpretações seria a filosofia portuguesa, porque a nossa racionalidade se vocacionou para integrar o irracional, ou porque o pensamento resvala para o obscuro, para noções enigmáticas que significam a sombra e a noite da alma dos nossos seres, os naturais e os sobrenaturais.