terça-feira, 23 de junho de 2015


                            O MUNDO SOU EU!

Proclamou-o o romancista francês Rémy de Gourmont no limiar do século XX.

 
O mundo sou eu, o mundo deve-me a sua existência, eu criei-o com os meus sentidos; o mundo é meu escravo e mais ninguém tem poder sobre ele.
Era um livro intitulado Sixtine – Romance da Vida Cerebral.
 
                                                                            

Foi um imaginário pardo e adoentado o que assolou as mentes europeias mais brilhantes na transição do século XIX para o século XX. Um chamado fin de siécle que muito previsivelmente teve Paris como cenário, teve Paris como força intelectual difusora das novas ideias, das novas formas de expressão artística, dos diferentes parâmetros estéticos, e igualmente, e por isso mesmo, das mais tristes expectativas para a vida do espirito, e até para o homem comum.

 
O simbolismo decadente impõe a moda artística, em especial na literatura, na poesia, mas igualmente noutras expressões. Que o digam os que o pintaram, ou que o teorizaram, ou que o tocaram, Moreau, Redon, Munch, Satie, Puvis de Chavannes, Huyssmans, Debussy, Paul Bourget ou Richard Strauss. Na música, e a meu ver exageradamente, há mesmo quem diga ser Wagner já um produto desse mal-estar existencial. Mas talvez eu acrescentasse com mais propriedade, e pelas febris composições ainda no domínio da música, outro nome grande, Gustav Mahler.

 
Decadência. Pessimismo. Tédio de vida.
 
 
O Homem em conflito com o seu meio, horizontes existenciais a abarrotar de incógnitas dolorosas. Tudo isso desabou sobre a expressão artística. Tudo isso instituiu uma nova moral estética, e ética, claro, a que muitos dos criadores não puderam fugir.
                                                                                         
E de Paris a moda do tédio e do desespero alastrou Europa fora, desencadeou transformações civilizacionais e específicas linguagens, como a contestação do tipo anarquista-nihilista nas rússias, como o pessimismo alemão, como a neurose do sul. Neurose decadentista que Nietzsche já distingue como raiz da obra de Wagner em 1888.
     
Uma técnica complexa de decomposição de linguagens, um estilhaçar das unidades formais conceituadas, como diria Paul Bourget – segundo leio – uma independência da página escrita; uma decomposição dessa página a conferir autonomia à frase; um estilhaçamento formal da frase a abrir a via à soberania da palavra.
Ou, caminhando em inverso sentido, a palavra a exceder a frase, a frase a obnubilar a expressão da página, a página a impor-se, subalternizando a unidade do todo.
Em suma, um exercício de liberdade; ou uma exigência universal de direitos. Outra moral.
                                                                                       
É nesta época da vida intelectual que nasce na literatura – ou talvez também na vida – o herói por assim dizer negativo, o herói decadente. É Huysmans quem o faz nascer como protagonista do romance A Rebours - ao contrário, ao invés, às avessas.
Des Esseintes, chamava-se a personagem, esse herói decadente, esse homem crepuscular, essa figuração de uma crise moral abrangente e a braços com a complicada adequação aos valores emergentes.

 
Os valores emergentes decorriam da evolução do conhecimento científico e tecnológico. Os valores emergentes eram a alteração das coordenadas estáveis de um conceito de tempo e de História. Uma aceleração de vidas. Um saltar de etapas do quotidiano. Uma tecnologia que estendia tentáculos inevitáveis à sociedade, à vida comunitária e que deixava os homens em dúvida na própria área política.

 
Claro que esta escola decadentista e sensível à perda de um mundo mitificado opunha-se à intelectualidade que, a rebours, pelo contrário, mitificava os dias a vir, aplaudia entusiástica as novas oportunidades que o próximo século traria para oferecer ao Homem. Zola era um progressista, logo, um expoente desses artistas da nova ciência. Zola e o romance social, o romance que sobrevoava o exterior das existências, os passos rigorosos, os gestos exactos e convenientes e científicos, a razão, digamos, mais pura, mais desataviada do doentismo cinzento dos simbolistas profetas de uma desgraça futura.

 

Para os decadentes, ou decadentistas (por melhor dizer), a Arte revestia fumos de uma religião da qual eles frequentavam com unção os altares. Os decadentistas teimavam que era à vida que cabia em sorte e destino a imitação da Arte, da grande Arte. Viver seria uma manifestação de grande estilo; seria idealmente um acto estético.
Para os naturalistas apaniguados das novas esperanças, dos admiráveis e científicos e racionais mundos novos a trazer pelo novo século, competia à Arte perseguir a vida verdadeira, ou mesmo servi-la; competia à Arte não se divorciar do real circundante, nem que fosse preciso a obra da imaginação, que seria o romance, transformar-se em dissertação sociológica.
Uma questão de moral e peras…

 
Populistas e aristocratas, se assim podemos dizer. Isto é: duas atitudes comunicacionais na apreciação do fluir imparável do tempo. Os socialistas e os esteticistas – se assim também pudermos dizer. Ou ainda mais simplesmente: aristocratas e burgueses.   

                                                                                   
Era à vida burguesa, pragmática, positiva, sujeita ao discurso das realidades que Zola e companheiros apelavam; era a um triunfo da tecnologia que tornaria a vida mais prática e menos contemplativa e o viver mais acessível a todos, com os bens de consumo, antes privilégio de poucos, ao dispor da maioria. Era à democratização da vida, enfim, iniciada por uma atitude cultural, que os positivistas adeptos do novo século aspiravam.


 
Os decadentistas, os tais que, como Rémy de Gourmont encaravam o mundo como criação sua – a criação que lhes fugia, que os abandonava, que os traía - refugiavam-se na subjectividade. O sonho. O ideal místico impalpável, imensurável. A invenção de uma realidade interior. A simbologia que as coisas encerravam.

 
O herói de crise, o campeão decadente, é um solipsista. É um egocêntrico. É ele o inventor do mundo. E é ele a sua própria invenção. É ele o mundo. E o mundo que é ele, e que se pode libertar do sonho dele, começa pelo fim do século XIX a causar-lhe mal-estar, náuseas – Sartre, acho eu, vem muito mais tarde a revisitar, noutros pressupostos, bem entendido, estas mesmas paragens existenciais.
 


O herói de crise é mórbido, porque cultiva a morte como saída estética, ou como hipótese moral de redenção.
O herói de crise, o decadente, pela sua posição filosófica face à novidade do mundo, ou ao irreconhecimento de um mundo já não moldado ao seu parecer, toma atitudes de mundano blasé.
Ao herói romanesco da crise de fim de século repugna (tal como repugna hoje a muitos de nós) o utilitarismo burguês, o mercantilismo comandante de uma vida que se tornaria – e tornou - feia de morrer.

                                                                                                   
E se a natureza, redescoberta pela ciência e pela tecnologia, determina pensamentos pequenos e gestos rotineiros e desengraçados, então que se lhe contraponha o artificialismo das paisagens e das figuras ideais. Que se lhe oponha a magia. Que essa natureza tão natural seja confrontada com a fantasia que habita o ego em desesperos de causa. Que se combata a ditadura do natural pelo misticismo simbólico que fará da arte uma actividade salvífica e redentora dessa vida burguesa e tediosa.
Porém, inegável será a herança recebida pelos aristocráticos decadentistas. E essa herança receberam-na eles das consciências futuristas, positivistas, naturalistas, que começavam por detectar na vizinhança do novo século as causas do seu mal-estar.

 
Foi o conhecimento, ou uma pré-consciência do que estaria para vir, que provocou a reacção simbolista-decadentista aos intelectuais que então se reclamavam da vanguarda, e que, ao aperceberem-se das fanfarras que saudavam o novo século, gritaram que é lá isso!, que querem vocês fazer do mundo?, como é possível estarem tão contentes com o que aí vem?, não se deram conta de que o mundo sou eu, é cada um de nós, que não há forma de o mundo existir senão por nós, em nós?

 
Foram os Zolas que abriram caminho ao conhecimento social, artístico e mental dos simbolistas-decadentistas. Foram eles que, anunciando o novo século, alertaram para as patologias num mundo que já era dos outros.
Foram os naturalistas a abrir os olhos para os condicionalismos do meio ambiente no comportamento dos homens outrora donos do mundo, para o factor hereditário que a ciência acabara ontem mesmo de descobrir, e isso e mais umas botas instauraram como realidade a ter em conta no próximo século.

 
Representação fiel da realidade feita por uns, que induz aos descontentes com tal representação fiel a invenção de outra realidade – ou uma conservação da realidade nos limites secularmente conhecidos.
A essa representação fiel da realidade haveria que contrapor outra atitude que talvez, com o andar dos tempos, afeiçoasse e repusesse a realidade em pés de mais compensador humanismo. E essa atitude consistia em criar uma ficção. Uma ficção que se opusesse com eficácia à realidade fiel que outros representavam. O momento era de passear por oníricos e artificiais paraísos de forma a que o mundo se conformasse sob a cenografia do Eu, e sendo o Eu o estádio perfeito do humano. Não era novidade absoluta. Ia-se ao Schopenhauer e ficava a saber-se que o mundo não passava de representação de um Eu que lhe era prévio e ao mesmo tempo atávico, dispersando o Outro pelos recantos menos devassados, quase inóspitos desse mundo que era o Eu.


 
Verlaine escreve: je suis l’empire a la fin de la décadence.
O que era a sociedade para os decadentistas senão uma concessão generosa, e por vezes bela, do Eu? O que era o Outro senão uma construção episódica do Eu?

                                                                                             
Mallarmé escreve: ouí, c’est pour moi que je fleuri, déserte !
O mundo, que tenderia a ser os outros, o Outro, abrandava convicções sagradas.
O mundo manobrado pelos que acabavam de o descobrir como afloramento da realidade transformara-se para os dandies decadentistas numa neurose. Só o Deus que parecia alheado do mundo e da vida sabia o que estaria ainda para acontecer.
Os novíssimos psicologistas ajudaram um tanto os decadentistas ao estabelecerem na sua ciência uma relação directa entre genialidade e doença mental. Wagner era então chamado, também ele, à conversa.

 
Promover a ritualização até dos próprios objectos.
Reapreciar culturalmente as épocas que a História estipulara como decadentes.
Explorar artisticamente o Eu e descobrir, e aceitar torturadamente, a ambiguidade do desejo sexual.
Como vingança de um Eu ofendido, explorar perversamente o erotismo.

 
Enfim, reagir. E reagir pode ser exprimir o até então inexprimível. O vazio. Exprimir o vazio pela infinidade de estados de alma que o preenchem e que assim o tornarão ainda mais vazio. Ultrapassar a realidade esquerda pela direita do artificial, do místico, do voluptuoso.
O Outro era o bárbaro. O Eu habitava uma ilha. Não, melhor, o Eu era a ilha. E a ilha do Eu era a única realidade que sendo falsa era inquestionável.


 
O mundo sou eu, o mundo deve-me a sua existência, eu criei-o com os meus sentidos; o mundo é meu escravo e mais ninguém tem poder sobre ele.

                                                                                               
 
A espiritualidade impõe-se. Necessariamente. Se os valores da matéria soçobram, então que lhes sucedam os valores do espírito. E o espírito é vasto, e é belo, e é vário, como o mundo que ele mesmo configurou.
O mundo é belo, vasto e vário, e de tal ordem o é que suscita uma quantidade de manifestações que nem por serem ideológica e visceralmente opostas deixam de ser espírito, do catolicismo ao budismo; do rosa-crucianismo ao satanismo. Magia. Cabalística. Astrologia. Espiritismo. Manifestações renovadas do profundo e feroz pessimismo que a crise mental do fim do meu mundo e da próxima inauguração do mundo dos outros despertou.
Sem dúvida que a esse espiritualismo desenfreado de recusa de um mundo materialista e tecnológico correspondeu a espiritualização a rebours, ao invés, às avessas: uma espiritualização do progresso.

 
Nessa espiritualização do progresso contava um tópico historicista: a entrada do século tecnológico, o XX, seria uma revisitação do Século das Luzes; constituiria a herança cultural dessas Luzes. E até porque a introdução em França das teses de Schopenhauer tinha acontecido tardiamente, não preparara os espíritos para um desenvolvimento filosófico disposto a acolher os cientifismos figurados na emergência do século XX.
Péladan, iniciadão rosacruciano, inaugura nos salões da própria ordem exposições de pintura, e avisa: o salão da Rosa-Cruz será doravante um templo dedicado a uma Arte-Deus, que terá como dogma a Obra-Prima, que terá por santos todos aqueles que tiverem Génio.
Estava a acabar o mundo.
 

 
Nos anos 90 do século XIX estava a acabar o mundo, esse mesmo mundo que tantas vezes na História já tinha acabado, que continuou a acabar nestes nossos dias com a revolução informática, que continua a acabar para todo aquele que de hoje para amanhã vá desta para melhor.
Sim senhor, estava a acabar o mundo e os verdadeiramente optimistas eram os burgueses desligados das visões espiritualistas, assediados por essas consciências despertas e maçadoras que eram os visionários da arte pela arte, os estetas, os anarquistas sem esperança, os militantes promotores do caos, em busca da nova ordem que ainda, e por enquanto, não sabem exactamente qual seja, mas cuja busca em si mesma lhes confere já um sentido à vida.

 
E nestes desavergonhados tempos parisienses de que falo, por cá, em Portugal, anunciava-se para breve o fim da pátria, o pessoal à nora com questões mais triviais.
                                                                                      
                                                                                                     
       
Antero, um desencantado decadentista, tinha escrito uma carta a Osório de Castro com os seguintes dizeres: em Portugal não pode haver revolução que mereça esse nome (…) revolução pressupõe propósitos, firmeza e força moral. O que aqui não há. Portugal é um país eunuco que só vive de uma vida inferior para a vileza dos interesses materiais e pra a intriga cobarde
E mais, e mais tocante e revelador, na sequência do berbicacho concreto que foi o Ultimatum inglês que nos marca a fogo a profunda crise da viragem do século: sob o insulto imprevisto esta nação parece agora acordar. Mas o nosso maior inimigo não é o inglês. Somos nós mesmos.


 
E em idêntico contexto pode preferir-se a Antero um outro, António Nobre:
                              Nada me importa, país.
       Seja meu amo o Carlos ou o Zé da Teresa… amigos
          Que desgraça nascer em Portugal 

Não havia país, por atavicamente atrasado, dependente, paroquial e senhorial onde a crise finissecular francesa do decadentismo encontrasse melhores imitadores. Em Portugal, sim, estava para ser o fim do mundo.

                                                                                                
 
A crise chega à intelectualidade da chamada geração de 90. E chega através do dito romance de Huysmans, A Rebours. Sempre imitativos, os intelectuais portugueses adoptam a cartilha da nova escola literária acabadinha de chegar de Paris e constituem-se em manifesto. Os Nefelibatas.
 

 
Eça estava então cônsul em Paris, e é claro que as finas antenas dele apanham a mensagem. E até nem destoava ele da reacção simbolista ao que avisadamente entendia como um excesso de materialidade o que vinha na esteira da ortodoxa moda cientista. Mas nem por isso ficou cliente dos decadentismos parisienses
É Antero que propõe uma idealização do espiritualismo como trajecto a seguir, contra o que chamou de gélido fatalismo soprado pela ciência ao coração dos homens. Enquanto para outros equilibrados espíritos o optimismo dos próceres do novo século científico só seria aceitável se fundamentado numa raiz metafísica.

 
O aristocrata Eugénio de Castro não fazia concessões e é ele o arauto que inaugura nas nossas letras a voga simbolista: julguei que se tinha levantado um obelisco místico no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.

                                                                                                       
Ou o estimado Raúl Brandão, na sequência das crises nacionais, muitas, dos anos 90 do século XIX, escrevendo nas suas Memórias: a vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível, porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu e do futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruínas, à espera.

segunda-feira, 8 de junho de 2015


                 O PARADIGMA, A CEREJA, O BOLO,   

         A ESTRATÉGIA, A FILOSOFIA, A ESTRUTURA

 

         Nas tintas para o programa da coligação, às urtigas com a convenção do PS. O que importa é o futebol. E já nem tanto pelo jogo em si, mais pelos enredos    que circunstancializam o jogo em si, o que não é desporto, o que pode muito bem, e muitas vezes, ser até anti desporto. Ou mero acto de gestão burocrática.
 
 
Claro. Jorge Jesus é o nome. Jorge Jesus é a figura nacional, qual Costa, qual Sócrates, qual Coelho, qual Cavaco!
Jorge Jesus é o vilão e a vítima.
 
O vilão falou com aquele e não falou com o outro. O vilão é um traste que andava em comércios com o inimigo quando ainda vivia para cá das muralhas. O vilão foi autista, egoísta, egolátrico, insultou jogadores e equipa técnica. O vilão nem sequer telefonou ao pobre colega cujo lugar, pela calada da noite, iria invadir. O Jorge Jesus não traiu o Benfica mas traiu alguém, a estrutura; o Jorge Jesus resolveu deixar de pôr cerejas no topo dos bolos benfiquistas; o Jorge Jesus mudou o paradigma profissional dele mesmo e, indirectamente, o do Benfica; o Jorge Jesus aplicou a sua pessoal filosofia, montou a sua estratégia e seguiu-a.
Ora bolas! Além das qualidades profissionais exigiram-lhe qualidades humanas. Não queriam mais nada?
A vítima foi ele igualmente, porque sendo o treinador mais titulado do Benfica, tendo imposto um futebol sedutor e atacante que deu brado, tendo conquistado para o Benfica o que não se conquistava ia para mais de trinta anos, o bi-campeonato, viu-se proibido de entrar nas instalações, viu a sua figura apagada do retrato do 34º título de campeão do Benfica. Foi mais uma vítima do estalinismo, quando se julgava que o mundo não conheceria mais vítimas dessas.
As rancorosas vindictas do futebol metem nojo às gentes de bem e, hoje por hoje, dos clubes e da generalidade dos cargos decisórios, é mais do que óbvio que essa gente de bem desertou. Vence o fanatismo, o oportunismo, o calculismo. E é assim mesmo!
Jorge Jesus, o bipolar. Jorge Jesus, o treinador visceral e colérico; Jorge Jesus, o homem de negócios calculista e dissimulado.
 
 
O futebol, seja como for, ocupa crescentemente (na próxima época ainda mais) a ordem do dia nacional, suplantando de largo a política, mesmo em véspera de eleições. Porque será?
A dar gás à supremacia acéfala do futebol sobre qualquer outro capítulo da vida da polis (salvo a especulação económico-financeira) está a voga (e a vaga) inesgotável dos comentadores. Diria eu: dos inúteis comentadores, que a cada momento sobrecarregam de óbvio os seus comentários, que ganham bom dinheiro para contarem ao adepto aquilo que ele está careca de saber e de ver.
 
 
Dos comentadores irrita-me o médico (nunca me passaria pela cabeça que um médico, ainda para mais afamado, pudesse ser estúpido, e mesmo parvo, quando fala de assuntos de fora da sua especialidade), e porque me custa compreender, insisto, que uma estação televisiva pague (e pague perfumadamente) a alguém para exibir urbi et orbi a sua ignorância sobre determinada matéria, que neste caso é futebol, a matéria de que todos nós julgamos entender, mas a quem a televisão não paga os dislates que também nós seriamos capazes de debitar.
Irrita-me o nortenho, um tipo inteligente pago para exibir ao mundo as suas capacidades de boçalidade bimba e de arruaça primária.
Irrita-me o senhor doutor, professor, ou não sei quê, meio scholar, meio autarca, que se desfaz em informação privilegiada e em filosofadas que desembocam em nada.
Irrita-me o gordo, irrita-me o careca, irrita-me o músico, irrita-me o locutor que em duas penadas de paleio descodifica todas as tácticas.
 
                                                              
 
Irritam-me sobremaneira os advogados, o desordeiro casca-grossa das barbas patriarcais, sempre pronto a andar à batatada com quem o contrarie; o da voz abaritonada ao serviço da oratória operática e verde; o do cego e rubro rancor clubista que alguém acusou injustamente de ter sido ministro; o da sonolenta e azul irrelevância burocrático-estrutural-saloia. São esses que à mais pequena provocação da subjectiva realidade, e ao mais ínfimo pretexto de controvérsia regulamentar, transferem durante horas o debate futebolístico para a gratuita exibição de perícias jurídicas.
 
 
E o que mais me faz rir e irritar, ao mesmo tempo, são as longas horas de emissão passadas na antevisão do que irá ser a jornada do campeonato ou o derby que se avizinha. Pode vir a ser assim como pode a vir a ser o contrário do assim, quer dizer, o assado. Se acontecer assim, é porque não acontece assado. Se acontecer assado é porque não acontece assim. Se acontecer assim, as consequências são frito; se acontecer assado, as consequências são cozido. Mas afinal o que é que vai acontecer, assim ou assado?, é o que espero que me digam os comentadores da antevisão.
 
                                                                 
 
Melhor do que isto só as flash-interviews. O jogador acaba de levar cinco, seis, ou sete a zero e responde invariavelmente “agora o que é preciso é levantar a cabeça e continuar a trabalhar”.
O futebol ainda é o mais espampanante museu nacional do analfabetismo atávico.
Sou do tempo saudável em que o futebol era quase só um jogo de bola (hoje também é um jogo, mas de milhões de dólares) em que os grandes comentadores e locutores ou não tinham simpatias clubistas arreigadas e fatais, ou as escondiam por escrúpulo profissional – toda a gente sabia que o Artur Agostinho era um convicto sportinguista, e toda a gente podia apreciar-lhe o entusiástico profissionalismo ao gritar os golos do Benfica: um exemplo entre tantos.
 
 
Num quadro de comentadores, sempre que alguma coisa deixa de ser o que foi num clube é porque foi o paradigma que mudou. O que conta para a contratação de um treinador é a filosofia de jogo que ele vai implementar – implementar: outra. A mera táctica passou por tudo e por nada a ser estratégia. As cerejas a toda a hora se encavalitam no topo de todos os bolos. E, última invenção para ganhar jogos, e sobretudo campeonatos, a estrutura…
Em televisão valem evidentemente as imagens sobre as palavras – evidentemente?, no futebol não sei. Os advogados, os médicos e os monstros observam as imagens do off-side que todos nós observamos também e que passam no écran uma centena seguida de vezes, as vezes que forem precisas para que, pela retórica e pela fundamentação do advogado-comentador que se bate pelo clube que marcou o golo (off-side), o off-side que toda a gente viu que era mesmo off-side deixe de ser off-side; enquanto o off-side cem vezes revisto continua a ser off-side para o advogado comentador cujo clube sofreu o golo (off-side). E vice-versa. O mesmo com a mão – mão na bola ou bola na mão, cem repetições até percebermos o que não vemos, que a bola bateu na mão, ou que a mão bateu na bola, conforme. O penalty, o mesmo, cem vezes repetido, o advogado que queria penalty olha para as imagens e vê o que mais ninguém vê, que o adversário rasteirou o seu homem. O outro advogado não viu rasteira nenhuma, apenas um contacto sem consequências, porque o futebol é um jogo de contacto, e o homem adversário fez teatro, e do bom – pois é, há que contar com a arte de Talma também na bola.
 
 
Ora tudo isto – e mais umas botas – prova que mesmo uma actividade que movimente planetariamente milhões e mais milhões pode não ser um assunto sério, pode viver do erro, da manigância, do teatro, do subjectivo, do virtual, da opinião. Da paixão. Se assim não fosse, esses planetários milhões nunca seriam movimentados.
Gosto de ouvir os comentadores, esses sim, que jogaram futebol a sério, que treinaram a sério. Esses têm ao menos a decência de não palpitar publicamente, antever ou vaticinar sobre matérias que não dominam e de que sabem alguma coisa só por ouvir dizer, porque ninguém lhes oferece tempo (demasiado) de antena para palpitar sobre a culpa ou a inocência do Sócrates, para vaticinar sobre candidatos presidenciais ou para antever o que vai ser da Segurança Social.
Ainda assim, e a despeito de todos os cambalachos óbvios ou escondidos, apetece-me acreditar que o futebol é (ou pelo menos foi) actividade mais sã do que a política. Bem sei que no futebol, como na política, o que é mais decisivo se pode passar longe dos olhos do adepto embrutecido pela sua cor, esse que se está marimbando para a mudança de paradigma do seu clube (de resto, sempre assinalado pelos comentadores só a posteriori), para o movimento de administradores, dactilógrafas, contabilistas, olheiros e roupeiros que fazem parte da tal estrutura, para a filosofia (neo-platónica ou tomista) do treinador, para a estratégia empresarial do presidente. O adepto embrutecido de vermelho, verde ou azul quer ser campeão e ponto final.
Futebol e política? Provar de novo o que está há muito provado, que política é tudo e que tudo é política, e que o que nos resta nesta vida é termos que nos haver com a política, digo com os comentadores, com os advogados e com os outros, os mais perigosos, os economistas, os da estrutura?
 
                                                                       
 
O Jorge Jesus ordinarote, mal alfabetizado, visceral e calculista até ao tutano; o Marco Silva bom rapazito e educado; o outro, o basco, de ridícula arrogância imperialista; e mais o resto, a dezena e meia dos treinadores irrelevantes, são quem dá voltas à cabeça do povaréu, quem gera muitos dos conflitos graves na via pública, quem mobiliza e conclama para a rua milhares e milhares, quem dinamiza a economia, a do futebol e a outra, qualquer outra, ou seja, a mesma, a das roulottes dos coiratos e das cervejolas, a dos cachecóis, dos bonés, das bandeiras, das camisolas, das camionetas, dos artefactos incendiários, dos bastões e dos escudos da polícia.
O futebol parece sobrepor-se à vida mesma por tanto e tão ruidosamente fazer parte dela. E porque quem sabe de futebol sabe da vida, e quem sabe da vida sabe de futebol, dos alcatruzes dela, vida, das mós, das de cima e das de baixo, dos bestiais e das bestas.
 
 
Para voltar ao homem do momento. Seis anos passados, três campeonatos a quem padecia longa fome deles, e mais não sei quantas taças, levaram finalmente os benfiquistas a olharem para Jorge Jesus com olhos de ver. De ver que o homem incensado, endeusado (“Amo-te, Jesus!”), era afinal um badameco que só ganhou o que ganhou porque estava no Benfica – até pode ser verdade. Ou ainda: ganhou o que ganhou quando podia, tinha a obrigação, de ter ganho o dobro. Ou mais: que só ganhou o que ganhou por obra da estrutura abstracta que lhe ofereceu os meios concretos para ele ganhar seis campeonatos seguidos, todas as taças, ir à final da Champions, ganhar as duas ligas Europa que perdeu.
 
 
Quem ganhou tudo o que ganhou o Benfica não foi afinal Jorge Jesus. Nem em absoluto os jogadores que marcam golos e fazem defesas, formalidades aliás pouco relevantes. Quem ganhou o que Jorge Jesus ganhou foi a estrutura, o aparelho burocrático – que se revela estalinista. A estrutura gloriosa que muda paradigmas. A estrutura excelsa que perfilha filosofias. A estrutura sublime que adopta estratégias. A estrutura inefável que é o bolo onde se põem todas as cerejas – pois foi o que Jorge Jesus se limitou a fazer, pôr três cerejas em cima do grande bolo.
 
 
Ou teremos que pensar que em seis anos de Benfica a Jorge Jesus coube o destino pouco glorioso de ter sido ele mesmo cereja, ornamento posto sobre o que era realmente essencial, o bolo: a estrutura, o poder político transfigurador de paradigmas, criador de filosofias, congeminador de estratégias, aparelho reprodutor de si mesmo?
Perigosa inversão dos valores em jogo, dir-se-á; ou dos valores do jogo mais simples e mais belo e emocionante que se inventou, e que assim pode deixar o estatuto de desporto e divertimento para se afirmar como mero acto de gestão.