terça-feira, 26 de maio de 2015


                 FADO, FUTEBOL E FÁTIMA, SEMPRE

 


         Claro. Sempre. Como sempre. Ou como no tempo do Salazar, que é o tempo que corresponde ao nosso sempre, o tempo da depressão. Tópico identitário. No tempo de Salazar como neste nosso tempo da informática, da comunicação global, da mundialização do capital.
Fado, futebol e Fátima, não pode deixar de ser. Os valores cimeiros da depressão nacional.
 
 
         Fado, futebol e Fátima é quando o pessoal chega à conclusão de que mais nada vale a pena, e que só vale a pena aquilo que não vale mesmo a pena.
 
 
         Fado, futebol e Fátima serão sempre os ícones do progresso português, quer dizer, do desvario ou das lágrimas do nosso desenvolvimento cultural, nulo, pífio, irrelevante, em Salazar como em Cavaco Silva – entre os dois, a enorme diferença está no quadro conjuntural e histórico de vida e de poderes que um e outro disfrutaram.
         Fado futebol e Fátima quando as gentes chegam à conclusão fatal de que não podem confiar nos seus representantes institucionais, não podem confiar nos seus homens políticos. Ou pior ainda: quando, não podendo confiar nos homens, não pode confiar na política mesma como forma de acorrer às suas carências atávicas.
 
                                                     
 
         Fado, futebol e Fátima quando a política e os políticos, em lugar de servirem interesses e anseios de quem os elege, têm por missão piorar, se possível, a vida de quem os elege em privilégio da protecção a quem lhes pagou para serem políticos – e nesse ponto, digam o que disserem e pensem o que pensarem, Salazar era melhor.

 
         Fado, futebol e Fátima: quem ligava ao futebol nos dias seguintes ao advento do 25 de Abril? Quem foi o campeão nacional de 1974, 1975, e por aí adiante, até aos anos 80? Assim, de repente, já poucos se lembram. E muito menos se lembram das vicissitudes desses campeonatos. Que árbitros prejudicaram o Sporting (clube cujo capitulo principal da sua História são os prejuízos causados pelos árbitros), que árbitros beneficiaram o Benfica (clube que fez a sua gloriosa História à custa do benefício das arbitragens), de que metal eram feitos os apitos dos árbitros que actuaram nos jogos do F.C. Porto (clube cuja história futebolística até aos anos 80 não era nenhuma)? Ninguém se lembra. Ou poucos se lembram. (Ah, o Eusébio!) O futebol só voltará a incendiar corações pelos anos 80, extinta a revolução, desvanecida a esperança.
 
 
         Fado, futebol e Fátima. Nos primeiros alentos do 25 de Abril que novos fadistas estavam em voga? Não sei. Não me lembro. Lembro-me dos de sempre, então vilipendiados por sinistras associações ao regime. Amália, ainda, então, e ferozmente atacada como fascista. Carlos do Carmo, em boa hora revelado como corajoso e indefectível homem de esquerda. E mais uns quantos.
 
                                                                
         Fado, futebol e Fátima. Nos primeiros tempos do 25 de Abril quem ia a pé a Fátima?
         Fado, futebol e Fátima, hoje. Obras de restauro na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, novos fadistas que brotam como cogumelos, jovens jogadores acabados de sair da formação que valem milhões no mercado internacional.
Quantos diários desportivos com preponderância dada ao futebol? Quantas horas semanais de televisão dedicadas ao futebol? Número de peregrinos e cobertura mediática das cerimónias de Fátima tendencialmente em crescendo – não comparável todavia em mediatismo ao futebol (o rei dos media) e ao fado (o vice-rei), é preciso que se diga.
Quantos Carminho, Camané, Ana Moura, Gisela João, Ricardo Ribeiro, Zambujo, Aldina Duarte, Cuca Roseta, Carla Pires, Ana Lains, Joana Amendoeira, Helder Moutinho, e mais umas boas dezenas deles em plena carreira ou em rápida ascensão?
         Fado, futebol e Fátima, ou a miséria das convicções cívicas e racionais de um país. Ou triunfo da fé.
 
 
Fé nas plangências guitarrais e nos trinados vocais como som de identidade nacional, e dos inerentes conformismo e desistência.
Fé no Jorge Jesus, no Pinto da Costa, no Nani para a vitória do clube da "nossa fé", emplastro Leão indicado para as mais profundas dores da existência portuguesa.
Fé na Nossa Senhora, que em 1917 começou por nos avisar dos perigos do comunismo, mas que nos alvores da crise financeira nada teve para nos dizer.
Fé na Nossa Senhora como última entidade em condições de aliviar a miséria das famílias, a penúria dos reformados, a depressão dos desempregados. Fé na Nossa Senhora que se apresenta hoje a Portugal como a instituição que se avantaja em prestígio e confiança aos partidos, aos políticos, e por uma só razão, quero crer: a sua inexistência.
 
 
 
 

segunda-feira, 11 de maio de 2015


KANE

 
                                        
                                   


Por falta de inspiração e querendo prestar homenagem aos cem anos de Orson Welles, apanhei em qualquer lado (uma amarelada edição da Vida Mundial) um texto de Gregg Tolland (de 1941), o celebrado director de fotografia de Citizen Kane. Trata-se da questão inovadora e genial dos tectos. É capaz de ser muito técnico e de não interessar a ninguém. Ou talvez sim. Sabe-se lá. O título é DO REAL AO ARTIFICIAL, e reza como segue:


       
           Citizen Kane em nada é um filme convencional e vulgar. É, antes de tudo, um filme realista. Desde a sua preparação, Orson Welles e eu quisemo-lo assim. Queríamos que, ao vê-lo, o público tivesse, tanto quanto possível, a impressão de estar a ver não um filme, mas sim cenas tiradas da realidade.
        Porém, a esta concepção juntavam-se dois problemas técnicos complicados.

       
        Em primeiro lugar, os cenários do filme tinham um papel importante a desempenhar na história: um papel tão importante como o dos actores. Não eram simples cenários, eles ajudavam a descrever a ascensão e o declínio do herói.

       
        Em segundo lugar, e igualmente importante, existia a ideia que Welles tinha acerca da progressão visual da história. Ele havia instintivamente compreendido aquilo que realizadores muito mais experientes nunca tinham chegado a admitir: que as cenas e as sequências devem ter uma progressão tão suave que o público se não aperceba da técnica de construção. Ainda que anteriormente tivesse sido um homem de rádio e de teatro, ele tinha perfeita consciência das imensas possibilidades da câmara na tradução de ideias dramáticas sem recurso às palavras. É por isso que, a partir do momento em que a planificação foi estabelecida, tudo estava previsto tendo em conta a edição da imagem.


   
     Quisemos, tanto quanto possível, evitar a montagem cut (raccord de dois planos sem a intervenção de fondus ou de outras trucagens). Quisemos, pelo contrário, prever uma acção que permitisse à câmara panorâmicas ou travellings de um ângulo a outro do cenário, sempre que o desejássemos. Noutras cenas, tínhamos previsto os ângulos de tomada de vista e a composição da imagem de modo que a acção, normalmente mostrada em vários planos, era mostrada numa só cena, mais longa. Frequentemente, numa cena, desenrolavam-se simultaneamente várias acções importantes em pontos muito distantes, inteiramente em primeiro e em último plano.

        
        Estes métodos não convencionais, ou sem quebras, impõem dificuldades insuperáveis no campo de trabalho com a câmara. Digamos para ser mais brutal, que eles não podem ser realizados utilizando métodos convencionais. Mas eles faziam parte intrínseca de Citizen Kane e era necessário aí chegar.

                                                     
       
        A primeira etapa foi a elaboração dos cenários. Era necessário que eles dessem a impressão de realidade. Numa sala verdadeira, estamos sempre mais ou menos conscientes do tecto. Na maior parte dos filmes, no entanto, vemos os tectos apenas em planos muito afastados ou, mais frequentemente, eles aparecem em transparência. Nos planos mais aproximados, a câmara raramente mostra um tecto, ou algo que sugira um tecto.
        A iluminação convencional para cenas de interior provém, pelo contrário, de fontes luminosas vindas de praticáveis que se encontram debaixo do plateau e, portanto, em ângulos que seriam impossíveis de realizar em verdadeiras salas com tecto.

       
        É por isso que a quase totalidade dos cenários de Citizen Kane foram construídos com tecto. Eram tectos muito baixos, por vezes mais baixos do que o que seriam na realidade. Além disso, a maior parte dos nossos ângulos de tomada de vista previam que as câmaras fossem colocadas muito em baixo, para que a tomada de vista pudesse ser efectuada de baixo para cima, o que daria maior realidade a esses tectos. Certos cenários foram mesmo construídos de tal modo que se podia retirar o chão e colocar a objectiva ao nível dele. Isto, bem entendido, levantou imediatamente um interessante problema da iluminação. Uma vez que os cenários tinham tecto, nenhum dos 110 cenários tinha iluminação vertical. À excepção de alguns raros planos onde podíamos levantar uma pequena parte dos tectos para usar um pequeno projectos onde fosse realmente necessário; tudo neste filme era iluminado do chão.


       
       Tendo os cenários uma certa profundidade, isso obrigava-nos a utilizar luzes muito penetrantes. Encontrámo-las em projectores-difusores de arco duplo, os quais são usados no technicolor. Essas lâmpadas eram o essencial da nossa iluminação, com alguns juniors, seniors e 170.

       
       A propósito, mencionemos que esta utilização de cenários com tecto nos trazia outra vantagem: eliminava essa praga dos cineastas: a sombra do microfone. Os tectos eram de musselina e os engenheiros de som não tinham problema algum em colocar os seus microfones sobre esses tectos permeáveis ao som. Eles estavam sempre fora de campo, forçosamente, e, como não havia iluminação vertical, não projectavam sombra. E como os tectos eram muito baixos, os microfones estavam numa óptima posição para captar o som. Devo admitir que, depois de ter trabalhado assim durante 18 ou 19 semanas, é árduo voltar às condições habituais de iluminação, em que é preciso velar sem descanso para que o microfone e a sua sombra permaneçam fora de campo.

                                                         
       
           Um outro problema consistia em obter a definição e a profundidade de campo que correspondessem à concepão que Welles tinha do filme. Se bem que o olho humano não seja realmente um instrumento óptico de foco universal, a sua profundidade de campo é tão grande e as suas capacidades de ajustamento tão automáticas que se pode considerar o olho como a objectiva ideal.  

domingo, 10 de maio de 2015


             O MAIO DE 68 E A QUESTÃO SEXUAL

 


         Não sei, mas julgo que pouca gente saberá que o pontapé de saída (ou um deles) para os acontecimentos de Maio de 68 foi dado em Janeiro desse ano, quando o ministro francês da Juventude e Desportos visitou em Nanterre um centro desportivo, onde, como lhe competia, quis saber das condições de aquecimento, de ventilação, de purificação de águas.

                           
 
Quando saiu, tinha meia centena de estudantes a vaiá-lo. Irrepreensível democrata, o ministro condescendeu em dialogar. É quando lhe aparece um ruivo a pedir-lhe um debate sobre a questão sexual.



Eu não estive lá para ver, mas posso facilmente imaginar o ministro a querer conter o riso, a pensar que aquele ruivo a quem chamavam Dani Le Rouge, estava a entrar com ele. Mas o ruivo insistiu:
          - A construção de um centro desportivo é uma medida hitleriana!
          - Mais pourquoi, monsieur?
          - Porque quer distrair a juventude com o desporto e desviá-la dos reais problemas da sociedade.
          - Mais non!
          - Mas sim. A questão essencial neste momento era governo tratar do equilíbrio sexual do estudante!
Depois, foi o que se seguiu. Naturalmente, devido ao desequilíbrio sexual dos estudantes.
 
 
Não estou a brincar. Isto foi objecto de um relatório secreto da polícia francesa, e para o provar teria que vos mandar ler a Vida Mundial na edição de Maio de 98 que relatou os acontecimentos, mas vistos pelo lado da polícia.