sexta-feira, 3 de abril de 2015

      

     
      QUANDO O IMPOSSÍVEL AC0NTECE…


    
      E acontece. Pois acontece. Não é frequente, mas acontece. Quantas vezes! Ainda ontem. A morte impossível do Manuel de Oliveira. Já não se esperava que acontecesse. Mas aconteceu.
       Exagero, eu? Sim, mas pouco. Tenho a certeza de que já muita gente se convencera de que Oliveira se tinha “da lei da morte” libertado. Por ser um obsessivo. Sim, pelo trabalho, por uma ideia de cinema que era a dele. E porque o Oliveira não podia morrer, pronto, acabou-se. Porque a morte dele era inconcebível, não cabia na cabeça de ninguém. E logo na Páscoa, ele que era um homem religioso – mais sobre o místico do que sobre o ortodoxo, mas mesmo assim…
       E é uma perda.


Oh, quanto me irrita que os notáveis lamentem a perda irreparável de outros notáveis deste país. Perda é um fulano prometedor nalguma coisa morrer num estúpido desastre de automóvel aos quarenta anos – eu sei, não há desastres inteligentes. Mas isso sim, é uma perda. Agora um homem de 106 anos, ainda que excelso artista, há muito que está perdido no imponderável espaço entre vida e morte, quando a morte se disfarça de vida e quando os vestígios de vida parecem inconclusivos. Com 106 anos há muito que o perdemos e que ele nos perdeu a nós.


       Manuel de Oliveira faz falta. Mais aos detractores do que aos admiradores. Oliveira era um bombo de festa cultural indispensável ao vulgo cinéfilo que se alinhou esteticamente pelo cânone cinematográfico americano e sem lograr conceber a validade de outro. E Oliveira dava garantias de poder continuar a fazer aqueles filmes literários, elaborados, lentos e palavrosos que o vulgo cinéfilo não via e detestava – oh, sim, detestar sem conhecer: inapagável traço do carácter português…


       Lembro-me dele. Uma prova de guarda-roupa:
       - Ah, você fuma…
       - Fumo.
       - Eu não fumo.
       - Mas fumou.
       - É verdade, fumei…
       - Tenho ideia de o ver na Canção de Lisboa a puxar por um cigarro numa cena com o Vasco Santana…
       - Mas depois descobri que fumando não se produzia em mim nenhuma alteração que valesse a pena…
       - Como assim?
     - Se estou alegre e fumo um cigarro, fico na mesma alegre; se estou triste e fumo um cigarro, triste fico. O cigarro era uma inutilidade.


       Lembro-me de um elemento da equipa dele:
      - Nunca lhe chames senhor Oliveira. E muito menos senhor Manuel…
       - Então?
       - Manuel.
       - Só?
       - Só.


       Apresento-me a ele num primeiro ensaio:
       - Como quer que faça? Assim… para o espectador ver que isto é mesmo uma ópera e que eu estou mesmo a cantar o papel, com esta expressão facial enfática de quem está mesmo a cantar ópera?
       - Sim, sim, está muito bem, gosto disso.
     - Ou, uma vez que o canto foi previamente gravado, prefere que eu articule sobriamente, como quem está normalmente a falar e não a cantar… assim?
       - Sim, sim, está muito bem, gosto disso.


Lembro-me dele. Num restaurante. Um intervalo de filmagens para almoço:
- Não tenho nada que vos dirigir. Vocês é que sabem o que têm a fazer com a personagem. Vocês é que dão o corpo, vocês é que dão a cara.


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