quarta-feira, 22 de abril de 2015

          A MÃE, 
        E A CHEGADA  
        DOS NOVOS DEUSES

A certa altura da tormentosa jornada, os argonautas – os da nau Argos capitaneada por Jasão, que demandava a Cólquida em busca do Velo de Ouro – foram dar à ilha de Lemnos.


E depois? Que tinha esta ilha de especial?
Tinha. Tinha que era uma ilha onde só viviam mulheres; mulheres que se tinham revoltado contra os homens e os tinham pura e simplesmente exterminado.
Mas essas mulheres violentas, fundamentalistas, ainda assim trataram menos mal os navegantes. Deram-lhes de comer, de beber, de vestir…
Mais confortados,  os argonautas foram seguidamente dar ao país das mulheres guerreiras. Que se chamavam amazonas. E que contraditoriamente eram filhas da pacifica ninfa Harmonia, tendo contudo por pai o deus da guerra, Ares.


Conhecedores da violência das amazonas, os argonautas não quiseram nada com elas, passaram de largo e seguiram o seu heróico caminho sem fundear.
Muito bem. Toda a gente sabe que existiram na História da Humanidade as soluções patrilineares e matrilineares - sem falar das bilineares - como organização de vida e de poderes dentro das famílias. Era conforme a sucessão na chefia e nos direitos patrimoniais fosse feita, pela linha paterna, materna, ou pelas duas. E cada uma dessas modalidades se foi definindo História fora, em função dos hábitos de cada comunidade, em poligamia ou monogamia. O que determinava os diferentes  sistemas de repúdio, ou de divórcio, postos em vigor.


E as amazonas entram aqui por isto: houve entendidos nesta matéria que interpretaram as relações nas sociedades primitivas como promiscuas, circunstância que pode ter unido as mulheres no processo de vincular os homens ao casamento monogâmico. E quem se viria agigantar na defesa das pretensões das mulheres? Pois quem havia de ser, as amazonas. Que impunham pela força das armas os seus pontos de vista e os interesses  sociais e comunitários do seu sexo.

                                                                   

E agora, a mãe. A figura. A instituição. A mãe, talvez a mais poderosa instituição familiar.
Olhem o caso da primitiva família israelita. A autoridade da mãe aumentava na razão do universo dos filhos que concebia. Na Assíria, na Babilónia, sim, a mãe detinha os mais alargados poderes. E até competia à mãe a chefia da família na ausência do pai, a dar-se o caso de o filho mais velho ser ainda menor de idade.
Nos tempos idos do matriarcado só a descendência materna tinha valor. Os filhos eram pertença da mãe e da tríbu da mãe. A autoridade masculina reconhecida era a do tio materno mais velho. O homem, quer dizer, o pai dos filhos, o marido, ficava em casa, e cumpria as tarefas que aos nossos contemporâneos e ocidentalizados olhos normalmente são atribuíveis às mulheres. A este sistema também se chamou de ginecocracia.


(Só um parêntesis. Posso dizer que eu mesmo, nos acidentes da minha vida pessoal, tive ocasião de testemunhar situação semelhante no interior da profunda África Austral, em que as mulheres executavam os mais duros quefazeres, como, por exemplo, colher a mandioca nas lavras mais distantes, mesmo em situação de guerra; fazer cargas e descargas; fazer obras nas palhotas. E quando se lhes perguntava pelas actividades dos homens – que talvez caçassem ou pescassem qualquer coisita – elas logo respondiam de olho reluzente que o homem pouca serventia tinha, o homem, a bem dizer, só servia para o amor.)

                                              

Na organização matriarcal proibia-se o casamento entre os da mesma linhagem, a exogamia. Enquanto, pelo contrário, nas organizações em que a endogamia era prevalecente permitia-se o casamento no seio do mesmo clã


Mas foi esta uma questão sempre ponto de controvérsia entre os antropólogos. E sendo que, segundo alguns, o matriarcado passou por ser o primeiro tipo de organização social.

                                                

Quando Dioniso (ou Baco) organizava as suas tão faladas  bacanais, diz-se que o que ele teria  pretendido com essas festas não seria mais do a regressão aos estados de promiscuidade original, funcionando essas bacanais como afronta ao poder dominante das mulheres.


E levou a dele ávante, o malandrão. Porque entretanto chegavam ao firmamento helénico os novos deuses. E isso foi quando Apolo instituíu o primado da paternidade na vida social. O que, aliás, salvou Orestes, condenado pela ordem matriarcal à tortura das erínias por ter matado a mãe, e a seguir absolvido pelo tal advento dos novos deuses e da nova ordem que instituía o patriarcado.


Em geral, nos regimes de matriarcado, tocava às mulheres o condão de serem possuidoras de poderes iniciáticos, mágicos, e porque grandes descobridoras de plantas elas eram. Eram iniciadas nas sapiências relativas à natureza. A agricultura, um exemplo, era coisa de mulheres, já que eram elas quem detinha a posse da terra e quem dominava social e economicamente as comunidades. E eram, evidentemente, sacerdotizas. E praticavam tanto a feitiçaria como a medicina, actividades que nesta idade da vida humana (não sei se ainda hoje) pouco se diferençavam. Nos seus ritos cultuavam elas os crâneos masculinos. É verdade. Mas não me perguntem porquê. E davam-se à dança das máscaras. E até nem eram muito biqueiras, visto que não desprezavam o seu petiscozito nas cenas de canibalismo ritual.

                                                                

Os filhos.  Uma das mais polémicas teorias do século XIX, a do Jus Maternum, estabelecia que os humanos viviam originalmente na tal promiscuidade, daqui decorrendo o desconhecimento da paternidade das crianças dadas à luz, e assim também a única certeza biológica inequívoca de descendência: a mãe. E daqui o prestígio inigualável das mulheres nestas sociedades.
Porque na velha Grécia as mulheres estavam mais ou menos como os escravos: tinham  perdido os direitos políticos. As mulheres casadas não saíam de casa e as solteira ficavam-se pelo gineceu, fora da vista dos homens, mesmo os da família, embora Esparta fosse mais tolerante nesse particular das mulheres.


Também se contavam maravilhas (ainda hoje parece-me que se contam) da escola da ilha de Lesbos, administrada por Safo. E em Esparta, acreditando no relato de Eurípedes, as raparigas trajavam de curto, faziam (quem sabe) muita aeróbica e dança jazz. Mostravam as coxas…
De qualquer das maneiras, a família grega era uma organização de tipo etico e religioso, e ênfase bastante era posto nos ritos. Héstia (Vesta) era a divindade evocada para o fogo do lar. Mas também se honravam, é claro, outros deuses em caso de nascimento, maioridade ou morte.
Nessa velha Grécia, a educação dos filhos competia, nos primeiros anos, à mãe. Depois, as crianças era passadas aos escravos instrutores, e daqui aos mestres, e por último ao pai.


Vamos lá a ver. Assim, a modos mais sistematizados, o estudo da família terá começado por volta dos anos 60 do século XIX. E terá – notem: digo “e terá” pois é natural que os antropólogos divirjam alguma coisa nestas precisões. Dizia eu… que terá começado este estudo mais cientificamente com a publicação do livro do sociólogo suíço Bachoffen, Das Mutterecht  (O Direito Materno). Esta obra (a que se seguiram as do americano Lewis Morgan) será uma das primeiras onde se estudaram as várias formas e fases por que passou a organização familiar, a promiscuidade, a ginecocracia, a monogamia, e por aí fora – onde se estudaram, é como quem diz, onde se estudaram, ou onde, com mais propriedade e menor margem de erro ou plausibilidade, se especulou sobre estas matérias já de si tão dificultosas de sistematizar.

                                                                       

Segundo o tal Bachoffen, é entre os gregos que se processa a revolucionária passagem do Direito Materno ao Direito Paterno.
E o que terá levado a isso? Que circunstâncias, que condições concretas se acumularam até proporcionarem essa viragem?
Condições de ordem económica, arrisca Lewis Morgan. Evolução de meios de produção e de propriedade privada. O que aproximou das teses do americano os mais famosos materialistas dialécticos europeus, com Friedrich Engels à cabeça.


Há quem se incline também para a tese religiosa. Como já anteriormente sugeri, imperativos religiosos terão levado a tão magna mudança nas relações humanas, um dos mais largos saltos qualitativos operados na moral e nas regras de convivência dos habitantes deste mundo. A entronização dos novos deuses (tal como se passa hoje, em que já pouca coisa é como há 30 anos)  viria a subalternizar o culto que se prestava aos velhos e tradicionais deuses, e tendo os novos deuses implantado (como o que se passa hoje) as formas novas de preponderância – masculina designadamente.


Todas as épocas, e o espírito delas, conhecem os seus novos tempos.
Novos tempos, de resto, que a sucessão dos séculos virá muitas das vezes a irrelevar, engendrando então os novíssimos tempos, e sempre que a gloriosa insatisfação inerente ao pensar do Homem acha que o centro de todas as questões é o renovar incessante das coordenadas mentais desse mesmo Homem.
Alguns outros entendidos nestas coisas diriam que as condições concretas que teriam levado à instituição do Direito Materno seriam ainda muito anteriores a qualquer conceito de consanguinidade, e por conseguinte a qualquer conceito de incesto que o Homem pudesse ter criado no afã sisífico de inventar novas coisas.

                                                                       

Uma tirada de Medeia que, parecendo que vem,  não vem nada a despropósito:
A noite leva o pássaro para o ramo da árvore, a ovelha para o curral e a criança para a mãe. Não devemos saber as causas. Pensar demasiado enlouquece.  


Também poderá ter acontecido algo parecido com isto: entre os primitivos selvagens dava-se o caso de se matarem as crianças do sexo feminino logo à nascença, daqui resultando um muito considerável excedente de homens por tríbu e o uso da mulher por vários homens. E já se sabe, com as coisas nesse pé, apenas a mãe de uma criança era identificável, nunca o pai. Daqui se seguindo a contagem da ascendência pela linha materna.

                                                     

E uma coisa mais que ficamos a saber de caminho: em algumas sociedades tradicionais era hábito as crianças recém-nascidas serem objecto de protecção especial. Eram seres débeis e indefesos, muito sujeitos aos ataques dos feiticeiros e dos espíritos malignos. Os bébés podiam passar dias e noites  guardados à vista por um homem armado. A criança das sociedades antigas, na sua primeira infância, ainda era considerada um ser do outro mundo, com o condão de trazer muitos favores do céu…


O dito Bachoffen até negava ao homem a qualidade de chefe de família por determinação natural – o que era escandaloso para a época em que ele escreve o livro, e para mais quando desviava do homem atributos de superioridade natural sobre a mulher e a condição de máximo pilar da ordem humana.


O lugar central; o lugar onde céu e terra se acham primordialmente em causa; o ponto de cruzamento de sinergias; a emanação da realidade. Segundo o Prof. Mircea Eliade, ”nada pode começar ou fazer-se sem uma prévia orientação, e toda a orientação implica a aquisição de um ponto fixo. E para o homem religioso o que mais importa situar é o ‘centro do mundo’, porque para viver no mundo é necessário fundá-lo. Nenhum mundo nasce do caos que é a homogeneidade, e a projecção de cada ‘ponto fixo’ significa a criação do mundo.”


Isto para dizer que a estatura e a dignificação da mãe como educadora, como formadora, e como guardiã por excelência da identidade familiar, só começa a desenvolver-se no século XVII. Só nessa altura é que a mãe emerge das espessas sombras institucionais onde estava e assume na economia e na filosofia da família um papel central. O ponto fixo.



O centro. O centro do mundo. Ou a unidade dos contrários. Ou o ponto de ruptura. Ou a convergência de céu e terra. A mãe.

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