sábado, 25 de abril de 2015

                        OS AVISOS DO FUTURO

        O 25 de Abril morreu, deixemo-nos de fantasias. E o futuro é amigo e avisa-nos.
        Como ? Quem? Salazar? Caetano? Como? Exame prévio?
        Pois é. É o futuro que nos avisa da sua chegada.
    Como se não bastasse o que bastava sabermos quanto à reles qualidade da nossa elite política, dos nossos deputados – os deputados que os votantes compulsivos elegeram -, ficamos a saber que os do dito “arco da governação” carpinteiraram um projecto de proposta de lei para valer no período eleitoral (proibia as más palavras, os conceitos negativos sobre partidos ou agentes políticos) que sujeitava a exame prévio (visto prévio) de uma comissão qualquer os materiais a difundir por jornais, rádios e estações de televisão. Uma coisa proposta pelos deputados do PSD, CDS e PS, que aparece a público justamente  (e significativamente) ontem, 24 de Abril.

                                                     

        Coincidências? Em política? Quem acredita ainda nelas?
        Não, nada de coincidências. Avisos quanto ao futuro. Avisos sobre o desenvolvimento futuro das democracias geridas pelos partidos tradicionais quando em assustadora (para eles) queda de prestígio e credibilidade.             

        Mas daí a bocado aparece o chefe do PS, António Costa, e diz que está contra o projecto de proposta de lei. Está contra os deputados do seu próprio partido, portanto. Daí a mais um bocado aparece o chefe do CDS, Paulo Portas, e diz o mesmo, está contra a proposta de lei, é a favor da liberdade de imprensa, logo, está contra os deputados do seu próprio partido. O chefe do PSD, e 1º ministro, não diz que sim ao projecto, mas também não diz que não.
        Então, batendo com a cabeça na parede, pergunta o homem da rua que sustenta a nossa inqualificável elite política, quem é que teve a ideia, quem é que pariu o projecto de lei. Veio pelo ar? Trouxe-o um vento mau? Caiu do céu aos trambolhões? Ninguém o pensou, ninguém o fez, ninguém o escreveu?
        Se o grupo parlamentar do PS ajudou à festa do parto do projecto de proposta de lei e o chefe do partido está contra, como explicar isto? Que anda António Costa a fazer? 
     O mesmo para o CDS: se o grupo parlamentar avançou com a proposta, ou  deu os améns ao exame prévio à comunicação social, e o Portas, chefe incensado e incontestado do partido, é pela liberdade de imprensa, que anda ele a fazer lá pelo Largo do Caldas? Estava na casa de banho e nem bateram à porta a avisá-lo?
Nem Costa nem Portas têm mão nos seus homens?
Serão Costa e Portas uns badamecos politicos?
Ou a hipocrisia política reinante no tal “arco da governação” atingiu os paroxismos do impensável?
Que haverá verdadeiramente por detrás desta notícia que explode ns vésperas da comemoração do que chamaram dia da liberdade?
Equívoco. Erro. Precipitação. Foi o que clamaram os comprometidos no desmando, os homens dos três grupos parlamentares que fazem as leis que nos dão cabo da vidinha. Quem se equivocou, quem errou, quem se precipitou? Nunca saberemos. Evidentemente. Porque nunca sabemos o que na verdade se passa nas nossas costas e legitimado pelo nosso voto.
Os homens da comunicação social cantaram o unisonante coro do repúdio. Aquilo passaria as marcas da manipulação suportável e costumeira. Aqui del-rei que os partidos andam malucos e já confundem propaganda com informação, e já nem a encapotada propaganda que a comunicação social faz para consumo dos votantes (e pagantes) lhes chega.
O 25 de Abril morreu, deixemo-nos de fitas piedosas. E se o 25 de Abril morreu aí estão os avisos do futuro.


O sistema e a nauseante classe política portuguesa que o arquitectou estão em pânico. As próximas eleições podem relegá-los para o terrenos do ridículo da representatividade – mesmo apesar do conformismo atávico e analfabeto do povo eleitor. O sistema partidário vigente, enquistado no privilégio, alapado, corruptível, não tem condições para aguentar mais tempo de liberdade política. Têm a consciência pesada pelo que fizeram e pelo que não fizeram e podiam ter feito. E vêem as barbas dos vizinhos (gregos, espanhóis, franceses) a arder. Deixaram de ter a mão que tinham no poder judicial – se é que deixaram – e temem pelo que ainda possa estar escondido e possa vir a lume, a dar-se o caso de os editores da comunicação social entenderem poder aumentar as tiragens e as audiências quando finalmente publicarem tudo o que sabem.
     
                       
Vamos todos votar? Em quem? Em quem nos andou a matar aos poucos o 25 de Abril? E para quê? Ora para quê… para contribuir com a nossa parte no aumento dos vencimentos dos deputados que nos cortam os salários e por isso têm medo do futuro e intentam repristinar o exame prévio de Marcelo Caetano.
Não sei como ainda há quem encare sem indignação as clownescas caras que  nos entram todos os dias pela casa dentro através da televisão.


        Não tenhamos ilusões. O 25 de Abril está morto. É tudo mentira. Não ouviram o discurso do impagável presidente da república? Muita atenção aos avisos do futuro.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

          A MÃE, 
        E A CHEGADA  
        DOS NOVOS DEUSES

A certa altura da tormentosa jornada, os argonautas – os da nau Argos capitaneada por Jasão, que demandava a Cólquida em busca do Velo de Ouro – foram dar à ilha de Lemnos.


E depois? Que tinha esta ilha de especial?
Tinha. Tinha que era uma ilha onde só viviam mulheres; mulheres que se tinham revoltado contra os homens e os tinham pura e simplesmente exterminado.
Mas essas mulheres violentas, fundamentalistas, ainda assim trataram menos mal os navegantes. Deram-lhes de comer, de beber, de vestir…
Mais confortados,  os argonautas foram seguidamente dar ao país das mulheres guerreiras. Que se chamavam amazonas. E que contraditoriamente eram filhas da pacifica ninfa Harmonia, tendo contudo por pai o deus da guerra, Ares.


Conhecedores da violência das amazonas, os argonautas não quiseram nada com elas, passaram de largo e seguiram o seu heróico caminho sem fundear.
Muito bem. Toda a gente sabe que existiram na História da Humanidade as soluções patrilineares e matrilineares - sem falar das bilineares - como organização de vida e de poderes dentro das famílias. Era conforme a sucessão na chefia e nos direitos patrimoniais fosse feita, pela linha paterna, materna, ou pelas duas. E cada uma dessas modalidades se foi definindo História fora, em função dos hábitos de cada comunidade, em poligamia ou monogamia. O que determinava os diferentes  sistemas de repúdio, ou de divórcio, postos em vigor.


E as amazonas entram aqui por isto: houve entendidos nesta matéria que interpretaram as relações nas sociedades primitivas como promiscuas, circunstância que pode ter unido as mulheres no processo de vincular os homens ao casamento monogâmico. E quem se viria agigantar na defesa das pretensões das mulheres? Pois quem havia de ser, as amazonas. Que impunham pela força das armas os seus pontos de vista e os interesses  sociais e comunitários do seu sexo.

                                                                   

E agora, a mãe. A figura. A instituição. A mãe, talvez a mais poderosa instituição familiar.
Olhem o caso da primitiva família israelita. A autoridade da mãe aumentava na razão do universo dos filhos que concebia. Na Assíria, na Babilónia, sim, a mãe detinha os mais alargados poderes. E até competia à mãe a chefia da família na ausência do pai, a dar-se o caso de o filho mais velho ser ainda menor de idade.
Nos tempos idos do matriarcado só a descendência materna tinha valor. Os filhos eram pertença da mãe e da tríbu da mãe. A autoridade masculina reconhecida era a do tio materno mais velho. O homem, quer dizer, o pai dos filhos, o marido, ficava em casa, e cumpria as tarefas que aos nossos contemporâneos e ocidentalizados olhos normalmente são atribuíveis às mulheres. A este sistema também se chamou de ginecocracia.


(Só um parêntesis. Posso dizer que eu mesmo, nos acidentes da minha vida pessoal, tive ocasião de testemunhar situação semelhante no interior da profunda África Austral, em que as mulheres executavam os mais duros quefazeres, como, por exemplo, colher a mandioca nas lavras mais distantes, mesmo em situação de guerra; fazer cargas e descargas; fazer obras nas palhotas. E quando se lhes perguntava pelas actividades dos homens – que talvez caçassem ou pescassem qualquer coisita – elas logo respondiam de olho reluzente que o homem pouca serventia tinha, o homem, a bem dizer, só servia para o amor.)

                                              

Na organização matriarcal proibia-se o casamento entre os da mesma linhagem, a exogamia. Enquanto, pelo contrário, nas organizações em que a endogamia era prevalecente permitia-se o casamento no seio do mesmo clã


Mas foi esta uma questão sempre ponto de controvérsia entre os antropólogos. E sendo que, segundo alguns, o matriarcado passou por ser o primeiro tipo de organização social.

                                                

Quando Dioniso (ou Baco) organizava as suas tão faladas  bacanais, diz-se que o que ele teria  pretendido com essas festas não seria mais do a regressão aos estados de promiscuidade original, funcionando essas bacanais como afronta ao poder dominante das mulheres.


E levou a dele ávante, o malandrão. Porque entretanto chegavam ao firmamento helénico os novos deuses. E isso foi quando Apolo instituíu o primado da paternidade na vida social. O que, aliás, salvou Orestes, condenado pela ordem matriarcal à tortura das erínias por ter matado a mãe, e a seguir absolvido pelo tal advento dos novos deuses e da nova ordem que instituía o patriarcado.


Em geral, nos regimes de matriarcado, tocava às mulheres o condão de serem possuidoras de poderes iniciáticos, mágicos, e porque grandes descobridoras de plantas elas eram. Eram iniciadas nas sapiências relativas à natureza. A agricultura, um exemplo, era coisa de mulheres, já que eram elas quem detinha a posse da terra e quem dominava social e economicamente as comunidades. E eram, evidentemente, sacerdotizas. E praticavam tanto a feitiçaria como a medicina, actividades que nesta idade da vida humana (não sei se ainda hoje) pouco se diferençavam. Nos seus ritos cultuavam elas os crâneos masculinos. É verdade. Mas não me perguntem porquê. E davam-se à dança das máscaras. E até nem eram muito biqueiras, visto que não desprezavam o seu petiscozito nas cenas de canibalismo ritual.

                                                                

Os filhos.  Uma das mais polémicas teorias do século XIX, a do Jus Maternum, estabelecia que os humanos viviam originalmente na tal promiscuidade, daqui decorrendo o desconhecimento da paternidade das crianças dadas à luz, e assim também a única certeza biológica inequívoca de descendência: a mãe. E daqui o prestígio inigualável das mulheres nestas sociedades.
Porque na velha Grécia as mulheres estavam mais ou menos como os escravos: tinham  perdido os direitos políticos. As mulheres casadas não saíam de casa e as solteira ficavam-se pelo gineceu, fora da vista dos homens, mesmo os da família, embora Esparta fosse mais tolerante nesse particular das mulheres.


Também se contavam maravilhas (ainda hoje parece-me que se contam) da escola da ilha de Lesbos, administrada por Safo. E em Esparta, acreditando no relato de Eurípedes, as raparigas trajavam de curto, faziam (quem sabe) muita aeróbica e dança jazz. Mostravam as coxas…
De qualquer das maneiras, a família grega era uma organização de tipo etico e religioso, e ênfase bastante era posto nos ritos. Héstia (Vesta) era a divindade evocada para o fogo do lar. Mas também se honravam, é claro, outros deuses em caso de nascimento, maioridade ou morte.
Nessa velha Grécia, a educação dos filhos competia, nos primeiros anos, à mãe. Depois, as crianças era passadas aos escravos instrutores, e daqui aos mestres, e por último ao pai.


Vamos lá a ver. Assim, a modos mais sistematizados, o estudo da família terá começado por volta dos anos 60 do século XIX. E terá – notem: digo “e terá” pois é natural que os antropólogos divirjam alguma coisa nestas precisões. Dizia eu… que terá começado este estudo mais cientificamente com a publicação do livro do sociólogo suíço Bachoffen, Das Mutterecht  (O Direito Materno). Esta obra (a que se seguiram as do americano Lewis Morgan) será uma das primeiras onde se estudaram as várias formas e fases por que passou a organização familiar, a promiscuidade, a ginecocracia, a monogamia, e por aí fora – onde se estudaram, é como quem diz, onde se estudaram, ou onde, com mais propriedade e menor margem de erro ou plausibilidade, se especulou sobre estas matérias já de si tão dificultosas de sistematizar.

                                                                       

Segundo o tal Bachoffen, é entre os gregos que se processa a revolucionária passagem do Direito Materno ao Direito Paterno.
E o que terá levado a isso? Que circunstâncias, que condições concretas se acumularam até proporcionarem essa viragem?
Condições de ordem económica, arrisca Lewis Morgan. Evolução de meios de produção e de propriedade privada. O que aproximou das teses do americano os mais famosos materialistas dialécticos europeus, com Friedrich Engels à cabeça.


Há quem se incline também para a tese religiosa. Como já anteriormente sugeri, imperativos religiosos terão levado a tão magna mudança nas relações humanas, um dos mais largos saltos qualitativos operados na moral e nas regras de convivência dos habitantes deste mundo. A entronização dos novos deuses (tal como se passa hoje, em que já pouca coisa é como há 30 anos)  viria a subalternizar o culto que se prestava aos velhos e tradicionais deuses, e tendo os novos deuses implantado (como o que se passa hoje) as formas novas de preponderância – masculina designadamente.


Todas as épocas, e o espírito delas, conhecem os seus novos tempos.
Novos tempos, de resto, que a sucessão dos séculos virá muitas das vezes a irrelevar, engendrando então os novíssimos tempos, e sempre que a gloriosa insatisfação inerente ao pensar do Homem acha que o centro de todas as questões é o renovar incessante das coordenadas mentais desse mesmo Homem.
Alguns outros entendidos nestas coisas diriam que as condições concretas que teriam levado à instituição do Direito Materno seriam ainda muito anteriores a qualquer conceito de consanguinidade, e por conseguinte a qualquer conceito de incesto que o Homem pudesse ter criado no afã sisífico de inventar novas coisas.

                                                                       

Uma tirada de Medeia que, parecendo que vem,  não vem nada a despropósito:
A noite leva o pássaro para o ramo da árvore, a ovelha para o curral e a criança para a mãe. Não devemos saber as causas. Pensar demasiado enlouquece.  


Também poderá ter acontecido algo parecido com isto: entre os primitivos selvagens dava-se o caso de se matarem as crianças do sexo feminino logo à nascença, daqui resultando um muito considerável excedente de homens por tríbu e o uso da mulher por vários homens. E já se sabe, com as coisas nesse pé, apenas a mãe de uma criança era identificável, nunca o pai. Daqui se seguindo a contagem da ascendência pela linha materna.

                                                     

E uma coisa mais que ficamos a saber de caminho: em algumas sociedades tradicionais era hábito as crianças recém-nascidas serem objecto de protecção especial. Eram seres débeis e indefesos, muito sujeitos aos ataques dos feiticeiros e dos espíritos malignos. Os bébés podiam passar dias e noites  guardados à vista por um homem armado. A criança das sociedades antigas, na sua primeira infância, ainda era considerada um ser do outro mundo, com o condão de trazer muitos favores do céu…


O dito Bachoffen até negava ao homem a qualidade de chefe de família por determinação natural – o que era escandaloso para a época em que ele escreve o livro, e para mais quando desviava do homem atributos de superioridade natural sobre a mulher e a condição de máximo pilar da ordem humana.


O lugar central; o lugar onde céu e terra se acham primordialmente em causa; o ponto de cruzamento de sinergias; a emanação da realidade. Segundo o Prof. Mircea Eliade, ”nada pode começar ou fazer-se sem uma prévia orientação, e toda a orientação implica a aquisição de um ponto fixo. E para o homem religioso o que mais importa situar é o ‘centro do mundo’, porque para viver no mundo é necessário fundá-lo. Nenhum mundo nasce do caos que é a homogeneidade, e a projecção de cada ‘ponto fixo’ significa a criação do mundo.”


Isto para dizer que a estatura e a dignificação da mãe como educadora, como formadora, e como guardiã por excelência da identidade familiar, só começa a desenvolver-se no século XVII. Só nessa altura é que a mãe emerge das espessas sombras institucionais onde estava e assume na economia e na filosofia da família um papel central. O ponto fixo.



O centro. O centro do mundo. Ou a unidade dos contrários. Ou o ponto de ruptura. Ou a convergência de céu e terra. A mãe.

domingo, 12 de abril de 2015

            AS SOMBRAS QUE NOS GOVERNAM

No dia 20 de Maio de 1981 a notícia saiu nos telejornais italianos: o conselho de ministros resolvera tornar pública a lista de membros da Loja P2 – Propaganda 2 – sociedade secreta dirigida pelo Venerável Mestre Licio Gelli. Toda a Itália treme.


Há tempos que se falava naquela misteriosa loja sem contudo ser possível atribuir-lhe um nome e um rosto. A Itália tremia à evidência de um governo fantasma, de um poder paralelo e subterrâneo que se apoderara das principais alavancas do Estado. Da lista de nomes constam 4 ministros, 44 parlamentares, todos os chefes dos serviços secretos,o comandante da Guardia di Finanza, altas patentes das Forças Armadas, magistrados, empresários, banqueiros, directores de jornais e jornalistas.

                                                                      

Para lá disso, foi notória a pertença à Loja P2 de muitos dos membros da Junta Militar Argentina, incluindo o general Videla e Lopez Rega, o tristemente afamado ministro de Estrellita Perón.


Os sombrios territórios da vida política.

                                                     

Territórios sombrios, ou mesmo ocultos e insuspeitos, que traçam as coordenadas da política real, e de tal ordem que só os patetas,os desprevenidos ou os mal intencionados ainda hoje acreditam que quem realmente os governa são os ministros de serviço, e quando na obscura realidade o poder verdadeiro e efectivo está mais nas mãos do chefe dos serviços secretos de um país – aquele que colhe, trata, controla, confunde e difunde a informação estratégica como melhor lhe parece -, do que nas mãos de qualquer primeiro ministro, rei, ou presidente da república.


         Na sequência das notícias vindas a lume nos telejornais desse dia 20 de Maio de 1981, o governo nomeia uma comissão parlamentar de inquérito à Loja P2. É nessa altura aprovada uma lei que proíbe as sociedades secretas e dissolve a Loja P2. Suspeita-se de uma conspiração contra as instituições da República.


Licio Gelli, o Venerável Mestre da P2, entrara para o Grande Oriente Romagnosi, de Roma, em Dezembro de 1965, naturalmente como aprendiz. É contudo um maçon atípico e sobe de grau e de importância no Grande Oriente, apoiado pelos membros da mais alta hierarquia, visto que trouxe com ele, em carteira, uma quantidade apreciável de possíveis futuros membros, gente extremamente qualificada, segundo diz.

                                                     

Gelli é um ex-fascista da República de Saló e combatera antes disso na Guerra de Espanha com os camisas negras


É amigo de Giulio Andreotti e tem altos contactos no Vaticano, nos serviços secretos e nas Forças Armadas.

                                                             

Um ano depois da admissão é ele o chefe de outra loja, a chamada HOD, mais conhecida como P2, a mais secreta e importante loja do Grande Oriente italiano.


Não se sabe, como é óbvio, a data da fundação da Loja P2. Dizem que essa data se perde nos tempos. Vem pelo menos do século XIX, sabe-se. Diz-se que acolhia elementos notáveis do tempo em que a Maçonaria tinha papel decisivo na vida institucional italiana – lembremo-nos do próprio Garibaldi. A P2 terá sido revitalizada a seguir à II Guerra com a ajuda das maçonarias dos EUA, e transferindo-se para ela os maçons mais proeminentes e cuja filiação deveria permanecer secreta. Era de facto uma loja encoberta, com as respectivas prerrogativas na organização maçónica, e cuja gestão estava envolta em mistério.


Houve quem dissesse não se poder atribuir à maçonaria um qualificativo de sociedade secreta, senão de uma sociedade com segredos. Era diferente. E fica aqui dito só de passagem, porque  não é por este respeitável caminho que vamos.
Licio Gelli, às vezes conhecido nos meios políticos como eng. Luciani, era um homem duplo. Fora um agente duplo da Resistência. Espiava para os serviços secretos de Mussolini, tinha contactos com os partiggiani e por conta da República fantoche de Saló fizera a ligação com a secreta militar do Reich. A seguir à guerra trabalha para os ingleses e para os americanos.

                                             

Fora também, como outros ex-fascistas e ex-nazis, soldado do chamado exército invisível, organizado pelos Aliados para fazer frente ao avanço comunista na Europa. Mas da fama não se livrou de continuar a gostar de jogos duplos; da fama não se livrou de trabalhar tanto para a CIA como para o KGB.
Gelli tinha tido um papel na abortada tentativa de golpe de Estado em Itália do príncipe neo-fascista Valerio Borghese, o dito príncipe negro, em 1970, e um papel nada secundário, uma vez que lhe estava cometida a tarefa de, no Quirinale, dar voz de prisão ao próprio presidente da república, Giuseppe Saragat.


Rumores sobre a acção na vida italiana de uma poderosa organização secreta e conspirativa, havia-os, e muitos, já nos anos 70. Instauram-se dois complicados inquéritos judiciais, um sobre o assassínio de um advogado de Milão encarregado de liquidar as contas do Banco Ambrosiano; e outro sobre o misterioso rapto de Michele Sindona. Ninguém sonhava que tais inquéritos pudessem levar as autoridades a uma loja maçónica.
Estávamos nos anos 70, à entrada dos anos 80. A actividade nos circuitos subversivos de extrema direita era febril. Proliferavam os grupos secretos, as operações ocultas, os golpes, as acções negras, as infiltrações e contra-infiltrações, as campanhas de propaganda, os financiamentos secretos, os serviços privados de espionagem.


Cria-se a rede secreta Gladio, uma estrutura NATO financiada pela CIA para contrariar a influência comunista na política italiana, formada por muitos ex-nazis, e com uma organização militar preparada para acções de guerrilha.
Numa entrevista da RAI a um ex-agente da CIA, as ligações e  financiamentos da CIA à Loja P2, incluindo tráficos internacionais de divisas e de armas, vêm à luz do dia. O bastante para, por forte influência do presidente da República de então, Francesco Cossiga, provocar a demissão do director do telejornal e de um jornalista: não era admissível que os serviços de segurança de um país amigo fossem atacados na televisão pública italiana.
A Loja P2 parecia nesses tempos revestir a forma de um serviço secreto atlântico, além de ponto de encontro das estruturas paralelas que na realidade governavam a Itália.


Na lista mais tarde encontrada numa das residências de Licio Gelli avultavam os nomes de agentes secretos e funcionários dos mesmos serviços secretos, tanto retirados como ainda no activo. Um deles, um conhecido general, tinha orientado o longo processo de fichagem de cidadãos como primeiro passo de um possível futuro golpe de Estado.
Nos anos 70, os organismos de informação italianos e suas redes ocultas muito se tinham afadigado em manobras de protecção dos activistas de direita suspeitos de atentados. Para tanto, não hesitaram em empreender negociações com as máfias, a ‘Ndranghetta e a Camorra. 

                                                   

Era preciso libertar um tal Cirillo e despistar os juízes encarregados dos inquéritos ao atentado da estação de Bolonha, além de várias outras actividades, peculato, nomeadamente, e também difusão de notícias caluniosas pela imprensa secretamente financiada.
                 

Dia 2 de Agosto de 1980, 10.25 da manhã. Uma bomba escondida numa mala na sala de espera faz explodir a estação ferroviária de Bolonha. 85 mortos. Mais de 200 feridos. Fala-se de atentado. As atenções viram-se para as Brigadas Vermelhas. As investigações são obstruídas e despistadas. Prendem-se uns quantos activistas de extrema direita e criminosos de delito comum, mas os mandantes continuam até hoje na sombra. Terá sido parte da estratégia da tensão e do escândalo defendida pela Loja P2.


Os serviços secretos italianos organizaram em poucos anos 157.000 processos de cidadãos com vista a poderem ser usados como instrumento de chantagem sobre políticos, militares, padres, jornalistas, figuras da cultura e até cidadãos comuns, se fosse preciso.
Ao chefe dos serviços secretos fora conferido o encargo de organizar o exército clandestino, a força Gladio. Já em 62, os serviços secretos, em associação com a estação da CIA em Roma, tinham criado esquadrões de assalto para atentados às sedes do Partido da Democracia Cristã e de alguns jornais. Atentados que posteriormente seriam atribuídos à esquerda. Contemporaneamente, actuariam grupos de pressão política para exigir ao governo e ao presidente da república (Antonio Segni ao tempo, 1962), medidas de excepção em face de tais atentados.
A Loja P2 não parava naqueles anos 70. Desenvolviam actividades de lobby, envolviam-se em negócios, petróleo, banca, jornais. Crimes  e escândalos. A sociedade italiana vivia sob tensão. E os cadáveres foram aparecendo. Roberto Calvi... 

  

O advogado milanês Ambrosoli...

                                              


Aldo Moro...

 

                                                       

 Michele Sindona...

 

 Mino Pecorelli, jornalista... 

        

Tráfico de armas e de droga. Lavagem de dinheiros. Escândalos variados, o da magistratura, o escândalo Rizzoli. Fuga de segredos de Estado…
Um dos homens de mão da P2 era um simples porteiro de hotel - aliás, um simples porteiro não seria, era o chefe dos porteiros. E nem o seria de um hotel qualquer, era-o do maravilhoso Excelsior da Via Veneto, o hotel da dolce vita romana de duas décadas atrás, porque era de uma suite do Excelsior que Licio Gelli comandava todas as operações da P2 e altas individualidades da vida italiana faziam bicha nas antecâmaras do Excelsior para serem recebidas por ele. Eram políticos de primeira linha, militares, banqueiros, príncipes, jornalistas. Eram Andreotti e Cossiga e Bettino Craxi e Fanfani, presidentes ou ex-primeiros ministros, os deuses ex-machina, as grandes estrelas da política italiana do momento.


Gelli recebia igualmente bombistas e terroristas de extrema direita. Bombistas e terroristas que podiam encontrar-se na suite de Gelli com o general Vito de Miceli, o chefe da polícia secreta, o homem que era suposto vir a prendê-los. E que não os prendia, claro está.
Um certo deputado democrata-cristão, Gaetano Stammati, acaba de se inscrever na Loja P2 e é imediatamente nomeado ministro do Comércio Externo do governo de Giulo Andreotti.

                                                                              

Em Junho de 79 há eleições gerais. Toca a Francesco Cossiga  encargo de formar governo. Cossiga promete o lugar de ministro do Comèrcio Externo a um certo Altissimo, do Partido Liberal. Mas acaba por confiar a pasta ao Gaetano Stammati, que vinha do anterior governo presidido por Andreotti. Ante os protestos do Partido Liberal, o 1º ministro indigitado, Cossiga, responde:
- De facto, eu queria dar o cargo a Altissimo, mas não o pude fazer depois das fortíssimas pressões que recebi.
Era o governo das sombras que tinha nas mãos o destino da nação italiana.
A influência da Loja P2 cortava transversalmente todos os partidos, todos os institutos públicos e instituições italianas.
Recolheram-se provas quanto a um conjunto de acções concertadas que visavam o reagrupamento de toda a extrema direita italiana, incluindo os declaradamente neo-fascistas da Ordem Nova, não obstante ter sido já aprovado o decreto de dissolução deste grupo.
Declarava falência o poderoso Banco Ambrosiano, o maior banco privado do país, descapitalizado devido às manobras financeiras de Roberto Calvi – chamado o banqueiro de Deus e homem da P2 - e o homem do Vaticano, o famoso monsenhor Marcinkus. Descobriu-se-lhe um buraco de 1,3 milhares de milhões de dólares.


Michele Sindona, outro homem da P2 e com profundas ligações à Mafia, é acusado nos EUA por falência de bancos e sociedades financeiras. Foge para a Sicília em 79. Diz-se que chantageava Andreotti. Hospeda-se em casa de um médico maçon, especialista em rituais esotéricos e cirurgia plástica. Na Sicilia, aparecem assassinados um juiz e um comissário de polícia. Sindona reaparece na América e é raptado. O médico esotérico e cirurgião plástico dispara-lhe um tiro cirúrgico numa perna. Não era um ferimento incapacitante, todavia era um ferimento credível no apoio à versão do rapto.
Vem a saber-se que o rapto de Sindona, apesar do tiro na perna, fora, claro, um falso rapto.
Sindona é deportado para Itália. O médico vai encontrar-se com Gelli para tratar do destino de Sindona.
Julgado, Michele Sindona vem a ser condenado pelo assassínio do advogado Ambrosoli, entre outras coisas. Vai preso.
Na prisão de Voghera é vigiado dia e noite. Mas é assassinado na prisão. Para temperar o café, alguém lhe deitou cianeto na chávena.


Tinha sido Roberto Calvi a pôr o Banco Ambrosiano nas mãos da Loja P2. A descapitalização do grande banco é devida aos milhares de milhões que a P2 movimentava em trafico de armas para a guerra das Malvinas, financiamentos ao ditador Somoza da Nicarágua e ao movimento sindical polaco Solidariedade. Milhares de milhões e movimentação de capitais que desembocaram na bancarrota.
Roberto Calvi aparece pendurado pelo pescoço na Blackfriars Bridge, a Ponte dos Frades Negros, em Londres.


Um jornalista da P2, Mino Pecorelli sabia demasiado sobre o caso Aldo Moro e aparece crivado de balas dentro do seu carro, a 20 de Março de 1979.


O papa João Paulo I? Pois, há quem diga que sim...

                                                                       

Os objectivos operacionais prioritários da P2 dividiam-se em três pontos principais. Assim: fracturar a unidade sindical; dominar os media; subordinar a magistratura ao poder executivo.
Berlusconi vem à baila. 


Gelli acusa-lo-à de, no seu programa de governo, ter copiado o programa político de renascimento democrático da P2. O Plano R. O texto desse plano veio a ser apreendido no aeroporto de Fiumicino. Estava no fundo falso de uma das malas de Maria Grazia Gelli, filha de Licio Gelli,o Venerável Mestre.
Podemos rir-nos à vontade, mas o objectivo declarado da P2 era fazer renascer a democracia, transformando a Itália num país organizado segundo critérios de mérito e hierarquia e para exclusivo bem do povo, segundo declarações posteriores do próprio Licio Gelli.
Não foi assim há tanto tempo...
Do programa desse renascimento democrático constavam, entre outras coisas, directivas no sentido de usar instrumentos financeiros para a criação rápida de dois movimentos, um de esquerda e outro de direita, os quais seriam patrocinados por dois clubes político-financeiros promotores. Com cerca de 10 milhares de milhões de liras seria possível uma infiltração nos ficheiros do Partido da Democracia-Cristã e tendo por objectivo tomar posse do partido por dentro. E com mais 5 ou 10 milhares de milhões poderiam provocar-se cisões, com o consequente nascimento de uma confederação sindical única e livre.
(Não foi assim há tanto tempo...)
Os media eram um dos alvos mais apetecidos da P2. Evidente. 


Seria de nomear secretamente dois ou três elementos de cada órgão de informação, mas isso feito de maneira a que uns nada soubessem dos outros. Aos elementos recrutados era conferida a obrigação de simpatizar com os notáveis e as políticas que lhes fossem superiormente indicados.
Também era preciso adquirir semanários, por assim dizer, de combate.
Era preciso coordenar a imprensa regional e local por meio de uma agência centralizadora.
Era preciso coordenar as televisões por cabo.
Era preciso dissolver a RAI estatal em nome da liberdade de antena e de expressão e implantar uma rede de televisão por cabo que contribuísse para controlar a opinião pública mais mediana do país.

Através do enfraquecimento dos sindicatos, do controlo dos media e dos políticos dos partidos de governo, e com a destruição da RAI, visava-se a transformação qualitativa da república italiana num sentido presidencialista, corroendo a oposição de esquerda e minorando a essa esquerda as esperanças de algum dia poder chegar a ser governo. 
Quando tudo é descoberto, Licio Gelli é expulso da maçonaria e foge para a Suiça.
Em Genebra, tenta sacar os milhões depositados nos bancos suíços.
É preso. 


Foge da prisão.
Vai para a América do Sul.
Numa busca a uma das residências do Venerável, as autoridades italianas aprendem 2 milhões de dólares em lingotes de ouro.

                                                 
Volta a aparecer em Itália e começa a escrever poesia.

                                                 

Parece que é readmitido na Maçonaria. Reclama-se das suas mãos sempre limpas. Mãos que, segundo alega em entrevistas, nunca conheceram nem o ouro nem o sangue.
Entre os membros da P2 estavam, como se disse, variadíssimas individualidades cujos nomes nada nos diriam hoje. Mas um ou dois nomes talvez nos dissessem alguma coisa.


Vittorio Emanuelle, príncipe de Saboia, herdeiro do trono de Itália, filho do deposto rei Umberto que viveu ali para os lados de Cascais – ficha nº 1621 da Loja P2. Afirmava não se dedicar à política, mas não podia entrar em Itália. Tinha porém negócios em Itália. De armas, nomeadamente. Negócios que eram feitos por intermédio de companhias estrangeiras. Mas o príncipe queria poder regressar a Itália em definitiva. Membro da P2, era mediador de negócios no estrangeiro, inclusive por conta do Estado italiano, Estado no qual não podia pôr o pé. Mas em breve alguém o faria regressar.
 
                                                                              

Silvio Berlusconi. 


O príncipe dizia que era Berlusconi o único capaz de pôr ordem na economia italiana e evitar o desastre, que estava iminente, devido ao estatuto do trabalhador e à proibição dos despedimentos.

O onorevole cavalliere Silvio Berlusconi tinha o cartão nº 1816 da Loja P2, com o código e.19.78, do grupo 17, do fascículo 0625. Entrara a 26 de Janeiro de 1978. Em Maio desse ano contribuíra com 100.000 liras para o financiamento da Loja. Interpelado pela magistratura de Veneza quando se julgava o caso P2, e sob juramento, Berlusconi negou ter pessoalmente contribuído com dinheiro para a Loja. Todos os documentos provavam o contrário do que ele disse ao juiz de Veneza.
É condenado por perjúrio.


É amnistiado em tempo de poder ser presidente do conselho de ministros. Em 1994 e em 2001.


Não foi assim há tanto tempo.


E não nos faltam hoje, ainda hoje (ou hoje mais do que nunca) evidências de um governo de sombras sobre as nossas vidas.