domingo, 29 de março de 2015

                            LITERATURA 2

      
 

EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL
        Leio que um pintor chinês do século XVII ia destruindo os quadros que pintava à medida que os ia dando por terminados. O importante para ele era a experiência espiritual de os pintar. A obra acabada não passava de um resíduo dessa experiência.
        E eu transfiro isto para a a escrita criativa. Escrever é mesmo isto. É o mesmo tipo de experiência do pintor chinês. E até estou convencido de que a fama, a glória e a fortuna do escritor mais bem sucedido não o remuneram tanto em termos de felicidade íntima, indestrutível, inapagável, como a experiência vivida a conceber e a realizar a obra.


      Cyril Connolly navegava por aqui quando dizia que a recompensa da arte não era o sucesso, nem a glória, era a intoxicação.
        Mais objectivamente, para o romancista, há a experiência de mergulhar profundamente nas vidas que não são, não foram, a dele. Um privilégio. Um prazer inaudito. O romancista pode viver as vidas que quiser e nelas, e com elas, enriquecer consideravelmente a sua própria vida interior. Depois, caberá ao leitor completar o trabalho, a experiência, desdobrar-se em vidas outras na prazerosa experiência da leitura, porque o romance é a grande arte que melhor confere, tanto ao escritor como ao leitor, os meios espirituais de romper os limites da sua própria vida, a real, tornando real a experiência de vida colhida na leitura.
        Milan Kundera dixit: as personagens dos meus romances são as minhas possibilidades nunca realizadas.


        Ou Oscar Wilde: é só porque Shakespeare nunca fala de si mesmo que as suas peças o revelam completamente e nos mostram a sua verdadeira natureza e o seu verdadeiro temperamento; ou mesmo os preciosos sonetos onde põe a nu para os olhos mais lúcidos o secreto tesouro do seu coração. Precisamente, a forma objectiva é definitivamente a mais subjectiva. O homem deixa de ser ele mesmo desde o momento em que fala de si. Dêem-lhe uma máscara e ele vos mostrará a verdade.


PERSONAGEM

          

    Para o romancista, a técnica consiste em poder (saber, querer) olhar para si próprio dentro das coordenadas da história que está a contar. De resto, essa pode ser a maneira de o romancista falar de si, do que pensa, do que sonha, pela boca das personagens que vai elaborando, construindo, inventando – partindo do princípio que é possível inventá-las. O romancista decide o que pensam as personagens, sem decidir tão claramente o que ele mesmo pensa de e em cada situação. É este o prazer supremo, acho eu (ou um deles, mais ou menos supremos), da escrita de ficção.

    


        Mas, se for sincero, se for honesto, antes de mais consigo, o romancista não deixará de reconhecer as afinidades entre a sua pessoa e as suas personagens. E aqui cabe a relação possível entre escritor e actor. A realidade deles é fingir, fazer de conta. Representam emoções. Emoções não sentidas no quente dos acontecimentos. Metade delas está fora da vida e eles discorrem, directa ou indirectamente, sobre essa vida somente pela sufocante necessidade que têm de satisfazer o instinto criador.

                                    
   
Até ao ponto limite de encararem a realidade como mais uma ficção, e assim podendo não andar longe da verdade. Qual verdade? Aí é que está.

             


Georg Lukacz, teórico literário de formação marxista, autoridade literária noutros tempos muito citada, entendia que as personagens não deveriam assemelhar-se a pessoas comuns. Deveriam ser organizadas como tipos. 


Claro que ele sustentava isto nos tempos da literatura comprometida, do romance social que era parte da luta de classes. Todo o conflito social (ou político) apareceria cristalizado em personagens tipo e nas relações entre elas, grosso modo, o operário explorado, o camponês humilhado, o burguês ganancioso, o patrão explorador, o capitalista impiedoso.


Mas Aristóteles recomendava o enredo como núcleo primacial do desenvolvimento da tragédia, e do qual brotariam necessariamente as personagens universais.


INCERTEZA
       Diz quem sabe que não há verdadeira criação sem riscos. Logo, sem uma boa percentagem de incerteza. Ou até de insegurança
        Não será portanto aconselhável a um escritor voltar a um livro seu depois de publicado. Vai encontrar defeitos, insuficiências, excessos. Tão certo como dois e dois serem quatro.


        Os críticos e os leitores podem até dizer maravilhas da obra. Só o autor pode saber a que ponto estão enganados. Só o autor pode saber até que ponto o seu livro não passa de uma boa merda.


        A insegurança, sim, evidentemente, dá medo ao autor. Porém, e por outro lado, é estado de espírito absolutamente necessário se se quer produzir alguma coisa de interesse. Mal dos que são seguros. Mal dos que estão certos de saber tudo à partida – esses, pois, os que não têm dúvidas e raramente se enganam…


domingo, 22 de março de 2015

                       
                     

                       LITERATURA
                

             
                                                   

         Literatura? Coisa que começa a desaparecer, ainda que um dia alguém tenha dito que é o inalterável presente narrativo o que melhor contém a realidade.
         Porque para cada vez mais gente a escrever há cada vez menos gente a ler.
O mercado, o mercado, o mercado!
         


PORQUÊ
Porque carga de água uma pessoa se põe a escrever?
Porque é um ser perturbado? Claro que sim. Ou… sim talvez, perturbado. Perturbado por alguma coisa. A política monetária. A fome no mundo. A injustiça social. Os horrores da guerra…
Ou perturbado na sua vida pessoal. Indeciso, ignorante do que se passa consigo, dentro de si, e com os que o rodeiam. A doença. A dor. A expectativa da morte. O mais intenso gozo dos prazeres da vida.
Escreve-se e quer criar-se um  mundo que se sabe de sobra que não existe nem existirá. E que por isso mesmo é preciso criar.
Escrever é capaz de ser ocupação pouco natural.



O ROMANCISTA FAMOSO
         O romancista famoso é categoria de cultura e de civilização que tende a desaparecer – acompanhando, obviamente, o desaparecimento da literatura mesma. Tende a desaparecer, se é que não desapareceu já. Sim, isso do romancista famoso. Que se não desapareceu entrou em silencioso e confrangedor desprestígio público.
         Gore Vidal está de acordo comigo. Ou eu com ele, evidentemente.
       Diz ele (disse) que falar hoje de um romancista famoso dos tempos remotos do século XX é como falar de um artesão muito admirado, de um entalhador, de um designer de barcos de competição.
    Um romancista não pode ser famoso ainda que conhecido na imprensa. E não pode porque o romance perdeu a importância que tinha – ou terá ainda alguma, pouca, mas mais para os iniciados, os viciados na ficção; mas nenhuma se estivermos a falar do grande público.
   Porque ser famoso é ser muito falado, muito citado; ou, principalmente, muito gabado. Nada mais. Ou pouco mais.
         Não virão já ao caso os romances que foram lidos há cinquenta anos. Ou há quarenta. Ou mesmo há trinta. Não, esse já não vêm ao caso. Porque esses tempos eram tempos em que os romances eram lidos, mesmo lidos, e até discutidos – como os filmes, diria eu.
        Um caso de romance e escritor famosos nos tempos mais recentes? Arriscaria O Código Da Vinci e em Dan Brown. Um sub-produto literário, vamos lá, em que a intriga circula nas fraldas do erudito e que por  qualquer razão seguramente extra-literária saltou para as bocas do mundo, deu filme, deu sequela de filme (embora com outro título), enriqueceu o autor.
         A fama literária não tem a ver com a qualidade literária, ou com a excelência da obra.
Se o que um romancista escreve hoje só passa a ser conhecido de uns quantos confrades, ou de uns quantos incondicionais da leitura e da ficção, o escritor nunca será famoso. O escritor é até uma irrelevância para o seu tempo, este, o único tempo que ele tem.
O romancista não pode julgar-se um Stendhal, por exemplo. Um Stendhal que previu (e, mais difícil ainda, acertou) que a sua obra, pouco significativa em termos de fama nos anos 30 do século XIX, só viria a ser apreciada e estudada um século mais tarde. Ele até avançou com um ano preciso, para ele se calhar impensável, 1936. E assim foi.   É em 1936 que nos meios literários franceses começa um revivalismo de Stendhal.


Qual é o romancista contemporâneo, qual é, que se permite sonhar com os seus leitores entusiastas de 2115?
A literatura que hoje já pouco interessa não existirá pura e simplesmente em 2115. Ficará uma ou outra obra (sabe-se lá se O Código Da Vinci) como relíquia intocável fechada em vitrina iluminada de uma biblioteca-museu.
Romancistas famosos  do Terceiro Milénio só como piada…
E quanto a isto da fama, também, da fama tout court, estimo muito as melhoras. A fama de artista sério (ou dito sério, como a musica séria), designadamente o escritor, desintegra-se facilmente. Porque a seriedade intelectual entrou em amarga decadência – ah, os políticos, os políticos…
A fama literária estaria tão ameaçada de extinção quanto a espécie humana mesma. E tudo porque o que se está a perder nesta assombrada e quotidiana vida é a História.




O HOMEM SOLITÁRIO
      O processo de criação romanesca é acto individualista. É actividade de um só homem (ou mulher, claro) e de um homem só.  Há quem diga que ao escrever um romance o autor está essencialmente a tratar de um seu problema pessoal. Está a proceder ao exorcismo dos seus demónios íntimos, trabalho que só a ele respeita e que só ele pode fazer na condição de se colocar defronte de si mesmo.
         Bem, sim, pode-se considerar esta explicação como um ressaibo mitológico dos magníficos anos 60, algo hoje fora de toda a cogitação. Hoje, o homem, o artista, já nem tempo tem para identificar os próprios e íntimos demónios, tão ofegante é a sua luta pela tal fama (a mais rápida e passageira, bem entendido) e pela fortuna, uma e outra tão dramaticamente difíceis de atingir em vista da concorrência que a mediocridade engendra a cada dia.


ACÇÃO
         Lá vai o tempo em que o escritor acreditava que a sua escrita, e correlativas ideias e valores, se consubstanciariam em acção através daqueles que o liam. Eram os escritores engagées quem mais tal sentenciava. O leitor, por intermédio da grande literatura de Dostoievski, Kafka, Dos Passos, Sartre, Beauvoir, Camus, Borges, Garcia Marquez ou Jorge Amado assumia cidadanias, agia na sua vida corrente, intervinha no seu meio, e desse modo fazia das obras que lia e dos escritores que admirava entidades de utilidade pública.
        Sartre? Eu falei no Sartre? Pois falei. Porque sim, claro, era Sartre (não podia ser outro) que nos desassossegos do pós-guerra em França, na lufa-lufa das listas negras do colaboracionismo literário e artístico, afirmava a literatura como acto, e assim culpava quem ao escrever dormira as mais longas noites com o inimigo.


         Nomear as coisas e as pessoas é dar-lhes existência, é inseri-los na consciência comum. Não se cansava – nunca se cansou, Sartre – de trazer à colação a responsabilidade do escritor (oh, que tempos!) como suporte das teses da literatura engagée. E o ponto de partida para uma posição sartreana, creio bem, foi mesmo esse tremendo período da História de França em que era preciso ajustar contas com os que haviam vendido a pena ao ocupante nazi. E contas foram essas, como sabemos, que deram na condenação à morte de alguns – deixando embora, estranhamente, outros impunes.


     Mas tudo isso, toda essa honorabilidade, toda essa responsabilidade do escritor já lá vai. Não há escritor por mais pintado que hoje faça agir quem quer que seja, ou inspirar tomadas fortes de posição. Se é que na época, apesar de toda a actividade literária e propagandistica, os havia. Do que é possível duvidar. Mas o mundo de então (1933-1945), em toda a sua tragédia (ou por isso mesmo), ainda era  lugar para uma poética.


O BOM E O MAU ESCRITOR
         Mario Vargas Llosa disse um belo dia que no momento em que se senta para escrever todo o escritor decide se vai ser um bom ou um mau escritor
      Pensando na sentença do seu (então) amigo Mario, Garcia Marquez recebeu na sua casa do México a visita de um moço de 23 anos que seis meses antes publicara o seu primeiro romance e que naquele dia se sentia radiante por ter acabado de entregar ao editor o original de um segundo romance. Garcia Marquez estranhou-lhe a pressa que se dava de uma prematura carreira literária. Ao que o novel romancista retorquiu:
         - A questão é que tu, Gabo, tens que pensar muito antes de escrever uma linha, só porque toda a gente, todo o mundo literário está suspenso do que tu escreves… enquanto eu, pobre de mim, posso escrever depressa ou mesmo descuidadamente, porque muito pouca gente se vai dar ao trabalho de me ler.
         Garcia Marquez lembra-se da máxima do seu amigo Mario: aquele rapaz tinha decidido ser um mau escritor. Como de facto veio a ser, antes de ter arranjado um emprego de vendedor de automóveis em segunda mão e deixar de perder o seu rico tempo com veleidades de romancista.




ESCREVER O TAL LIVRO QUE SE SONHOU
      É um escritor contemporâneo de certa nomeada, Michael Cunningham, a dizer-nos da consciência que tem de nunca vir a escrever o grande livro com que sonhou – ou pelo menos da forma como o sonhou.
         Porque o artista é o homem que persegue um formidável ideal. Um homem que passa as passas do Algarve para sobreviver (intelectualmente, já se vê, espiritualmente) à decepção ao dar-se conta de que o livro que acaba de escrever, nem que seja um êxito de crítica ou de vendas, não é o livro que concebera, o livro que sonhara escrever.
         Aprender a escrever romances é ocupação para toda uma vida – também diz Michael Cunningham. E é bem capaz de ter razão.
         E mais diz ele: os escritores dão tanta importância ao livro que têm entre mãos que deixam de considerar os sentimentos dos outros, das pessoas concretas com quem se dão. Será esse o lado negro do escritor.
         Não sei se concordo. Mas pode ser só problema dele.



EU? ELE?
         Pois é. É aí que toda a literatura romanesca joga a sua sorte. Na passagem do Eu ao Ele. Na transição técnica entre primeira e terceira pessoa do singular. Kafka o dizia.
         Toda literatura se desenrola em função deste jogo, deste detalhe só aparentemente técnico.
         Literatura pode se o aparecimento do si-próprio (soi même). Até Proust pensava nisto. E tanto pensava que desde 1895 trabalhou num projecto de romance longo, Jean Santeuil, escrito na terceira pessoa.
        Nunca o acabou. Disseram que não era um bom romance. Proust, disseram os críticos, não se dera maravilhosamente com a distanciação requerida entre o si-próprio e o Outro. Distância técnico-narrativa, posto que, também segundo os críticos, este falhado romance escrito no Ele resultara numa narrativa mais autobiográfica do que a própria Recherche.
         Até que ele decidiu, por voltas de 1907, anular a distância entre narrador e herói.
       Pode-se contar tudo no romance, na condição de nunca se escrever Eu - disse André Gide.


        



segunda-feira, 16 de março de 2015

                   


                       O REINADO DE LEÃO X


O cardeal Giuliano Della Rovere, feito papa com o nome de Júlio II, e sob o nome de Júlio II um dos mais importantes e famosos papas – um dos meus preferidos – entre muitas outras coisas pela necessidade que tinha de se rodear dos maiores artistas do mundo do tempo, sentiu a vida a fugir-lhe em 1513, em Fevereiro, no dia 21, e nesse mesmo dia entregou a alma ao criador.
Mas o populacho de Roma não queria para sucessor do grande Júlio II um papa que se parecesse muito com ele. Nem o povo nem a cúria. Júlio II subira à cadeira de São Pedro já com os seus bem passados sessenta e cinco anos, e o que o povo gostaria era de ter um príncipe jovem. Júlio II era turbulento, era impaciente e colérico, e o povo sonhava com um papa mais brando e mais amigo dos prazeres da vida.
Tudo indica que Deus (o Espírito Santo, sempre ele) ouviu as orações dos romanos e lhes fez a vontade.

                                                                                    

Extra Omnes
Estavam vinte e quatro cardeais fechados a sete chaves em conclave e faltava um, Giovanni de Medici.
Giovanni de Medici partira de Florença mal se soubera do passamento de Júlio II, mas fora obrigado a viajar lentamente, em liteira, em razão de uma doença, não sei qual, que acusava muito dolorosamente os solavancos da carruagem.
       Dizem fontes históricas que Giovanni de Medici fora cardeal aos treze anos. E porque logo aos oito anos o menino Giovanni, filho de Lorenzo, o Magnífico, e de Clara Orsini, um Medici portanto, teve o destino marcado como homem da Igreja ao receber as ordens menores. Stendhal diz que à data do conclave para eleger o sucessor de Júlio II Giovanni de Medici era apenas diácono. Não sei. Nem sei se uma coisa contradiz a outra ou não. Mas também pouco importa para o caso.


Giovani de Medici chega a Roma a 6 de Março. É o último a aparecer para o conclave. Estamos em 1513. Tem trinta e nove anos. No dia 11 desse Março está ele de serviço ao escrutínio e procede à contagem dos votos. E talvez não fique muito confuso quando a contagem que faz dá como resultado a sua própria elevação ao soberano pontificado. Pode pensar-se que tudo estava combinado, que o poder de Florença tinha comprado os precisos votos. Mas não. Diz a História que não. E ademais o poder de Florença não era nessa altura grande. Diz a História que Giovanni de Medici é feito papa numa eleição limpinha, limpinha, e só porque Júlio II abolira terminantemente dos Estados papais a simonia, não permitindo que nenhum cardeal comprasse os devidos votos para se fazer eleger papa.
         - Bem, já que Deus no-lo deu, toca-nos disfrutar do papado – disse Giovanni de Medici depois de eleito, e depois de escolhido o seu nome de papa, Leão, o décimo da ordem.
         Um certo jovem cardeal Alfonso Petrucci, filho do tirano de Siena, foi dos que mais trabalhou para a eleição de Giovanni, e com base no slogan propagandístico eleitoral “Viva a Juventude!”
Giovanni de Medici é ordenado padre à pressa. É ordenado sacerdote no dia 15 de Março e coroado papa no dia 19.
Stendhal achava pilhas de piada a este papa amável e divertido, e eu também. É um dos meus favoritos. Pode ter sido, e foi, um papa nocivo para os interesses político-financeiros da Igreja, mas era um homem culto e ilustrado, um humanista. É o que me interessa.
E talvez interesse também recordar que foi o amável Leão X que recebeu a embaixada do amável D. Manuel de Portugal, entrada em Roma no dia 12 de Março de 1514. Era de bom tom reiterar a obediência do rei português ao novo papa numa embaixada festiva, como ele gostava, e concorrida de umas cem individualidades (ou figurantes?), com Tristão da Cunha à cabeça, secretariado por Garcia de Resende. E prendas das que o novo papa mais apreciava: pedrarias, tecidos, jóias, um cavalo persa, uma onça (e se calhar o respectivo amigo), um elefante que fazia espectaculares habilidades.


E é claro que, passeando por Roma, dedicando muito devotada atenção ao governo dos papas e recorrendo às fontes históricas disponíveis em 1824, Stendhal não perde a ocasião de se alargar sobre este período crucial da História de Roma, da História da Igreja e da História da Europa. Por causa de Leão X, tudo na Igreja e na vida política europeia mudaria para sempre. Leão X estará no epicentro do sismo religioso (mais tarde político, mais tarde militar) que varreu a Europa nas primeiras décadas do séc. XVI.
         Depois da coroação em São Pedro, o novo papa insiste em fazer-se coroar de novo em São João de Latrão, sede do bispado de Roma – toda a gente deve saber que o papa tem dois títulos, o de papa propriamente dito, e por inerência, o de bispo de Roma; ou vice-versa, é capaz disso, primeiro bispo de Roma e por inerência soberano pontífice, não tenho certeza nenhuma.


         Seja como for, Giovanni de Medici, Leão X, é coroado bispo de Roma no dia 11 de Abril de 1513. Dia escolhido por simbolismo, pois que a 11 de Abril do ano anterior caíra prisioneiro dos franceses em Ravenna. Está visto que Giovanni gostava das cerimónias da memória. E para a coroação como bispo de Roma foi ainda mais longe no memorial e escolheu montar o mesmo cavalo que montava na batalha de Ravenna ao ser feito prisioneiro.
         O espavento das cerimónias da coroação de Leão X ficou nos anais. Indicava desde logo aos romanos e ao pessoal vaticano o tom do reinado do novo papa.


A severidade económica de Júlio II era menosprezada pelo novo papa em vista da pompa e do espectáculo que lhe rodearam as festividades da coroação. Pompa e espectáculo que custaram aos cofres de São Pedro cem mil florins, o que devia ser obra para a época, mas não mais do que uns trocos para o florentino Giovanni de Medici, habituado na corte do pai a viver à grande e à florentina.
         A primeira coisa que faz é conferir o arcebispado de Florença e o chapéu cardinalício ao primo, Giulio de Medici, apesar da pouca idade dele – era filho de Giuliano, assassinado na própria catedral de Florença durante a famosa conspiração dos Pazzi. Ao moço Giulio nem passa então pela cabeça poder vir a ser ele um dos próximos papas. Que foi. Clemente VII. Um fraco papa, ao que se disse.
    Stendhal chama a Giovanni “o amável filho de Lorenzo, o Magnífico”. E parece que sim. Que ele era amável. Parece que era mesmo um tipo pachola, sem nenhumas peneiras de ser filho de quem era, simpático, bon vivant. E rico de família. E habituado ao mais alto luxo e à maior despreocupação de vida. E por isso mesmo a corte de Leão X foi a mais sumptuosa do tempo, o mais brilhante ornamento do universo, como Stendhal disse. E cá está ele mais o primo Giulio (à esquerda) retratados por Rafael.


Enquanto papa Leão X, o “pobre” Giovanni de Medici teve famas de tudo, tanto de homossexual como de heterossexual devasso – consta ter morrido na cama enrolado numa jovem -, e finalmente ateu. O que ele era antes de mais era um bem disposto. E um espírito livre. E generoso. E literato, e músico. E sendo isso tudo também podia ser aquilo de que o acusavam, evidentemente. Um papa que não estava para se chatear muito com a vida, que fora habituado a gozar bem a vida.
Já que Deus nos deu o papado toca-nos disfrutá-lo.
Leão X era um artista. Segundo Stendhal, apreciava as maravilhas da arte com a sensibilidade de um artista. Um homem fora de série dentre os homens singulares que o acaso ia fazendo subir aos tronos da Europa. O homem que soube gozar a vida como homem de espírito, o que muito encolerizava os pedantes mais tristes.


 Não terá estimulado por aí além Miguel Ângelo como o fizera o seu predecessor. A Rafael sim. Tinha Rafael a pintar os aposentos vaticanos e muito apreciava a doçura de carácter do grande artista.


    Stendhal é de parecer que conquanto Leão X fosse homem incomparavelmente mais amável do que o grande papa a quem sucedera, a política por ele seguida, sendo menos firme, menos bélica e desassombrada, foi mais pérfida do que a seguida por Júlio II.


         A Itália, constantemente invadida por estrangeiros, minada por sangrentas desavenças internas, e portanto campo de batalha dos mais ferozes antagonismos europeus, estava arruinada, devastada. Leão X convoca o rei de França para uma conferência em Bolonha. Era o galicanismo, a tendência separatista do catolicismo francês (como qualquer pessoa pode ver na Internet) e o princípio de independência da Igreja de França relativamente à Santa Sé que incomodava o papa. E aqui Leão X obtém uma apreciável vitória diplomática, levando Francisco I a dar de mão das liberdades da igreja galicana.
         Andava a falar-se da reforma da Igreja havia séculos. Mas até aí nem sombra de reformas. E nesse sentido também Leão X convoca o Concílio de Latrão. Aprovam-se reformas de fundo, sim; promulga-se uma bula, muito bem. Mas nada disso tem consequências. Fica tudo no papel.


         E virou-se Leão X para Siena. Não lhe convinha o estado político das coisas em Siena, e por isso não hesitou em correr de Siena a pontapés os familiares do jovem cardeal Petrucci, o filho do senhor de Siena que tanto o tinha ajudado a vencer a eleição. É a política.
Alfonso Petrucci fizera constar que em pleno consistório sacara da sua adaga e se atirara ao papa para lavar a honra da família. Sem sucesso, claro. O que o obrigava a inventar novo estratagema para se vingar. O veneno – uma das categorias letais mais em voga, juntamente com o punhal, na civilização itálica e na peripécia política renascentista.
Petrucci entra em conversações com o cirurgião do papa. Fica sabedor de que Leão X padece de uma certa úlcera a que todos os dias tem de ser aplicado um penso. A ideia é envenenar o penso, envenenar a úlcera, e assim ir limpando lentamente o sebo ao papa. Mas o jovem cardeal Petrucci devia ser imprudente e amador, e os serviços secretos do papa interceptam as cartas que ele envia ao seu secretário. E lá estavam escarrapachados os projectos mais atrozes de vingança.


        Leão X pretende enviá-lo ao juiz Carlos Alexandre… oh, perdão… à justiça eclesiástica, com base nas cartas. Mas Petrucci achava-se fora de Roma. E por isso o papa lhe escreve uma amabilíssima carta, a que anexa um salvo-conduto. E faz mais, dá a sua palavra de papa ao embaixador de Espanha, um intermediário, garantindo a Petrucci a total segurança se ele vier a Roma.
E o parvo do Petrucci acredita na palavra de um político e na honra de um papa do séc. XVI, mete-se na sua carruagem, vem por aí abaixo, entra em Roma, e assim que entra em Roma a carruagem é imediatamente desviada e vai direitinha ao Castelo de Sant’Angelo, a tenebrosa prisão dos papas.


         Alfonso Petrucci é misteriosamente estrangulado na prisão de Sant’Angelo no dia 15 de Junho de 1517. Estava Rafael a acabar os seus trabalhos nas stanze vaticanas. Andava já Martinho Lutero a tratar das suas teses.
Sim, daí a três meses o doutor Martinho Lutero pespega na porta de Wittenberg as suas 95 teses. Foi no dia 31 de Outubro de 1517.
         Enquanto soberano absoluto, Leão X ficava incomodado, ficava mesmo horrorizado, se algum assunto o obrigava a pensar noutra coisa que não fosse a vida de prazeres e de volúpias que queria levar. Ao tomar conhecimento da contestação de Lutero, julgam que se ralou muito? Ora, que aquilo não era mais do que uma zanga lá entre monges. Escreve-se-lhe uma cartinha e está o caso arrumado. Que é que temos hoje para jantar? Quem vem hoje tocar? Que poeta está contatado para o serão?
         Porque não foi só Petrucci a ser condenado aos suplícios por amável e voluptuosa vontade papal. Outros cardeais o foram. E se alguns se safaram de boa foi à força do muito dinheiro que tiveram de desembolsar para ajudar à festa do reinado do mais amável e estroina dos papas.


         O sacro colégio, na época, não contava mais do que doze cardeais. Doze cardeais de calças na mão à vista das medidas extremas de Leão X para quem ousasse fazer fora do penico, nem que fosse cardeal. E é nisto que Leão X aproveita o pânico da cúria para aumentar o número de cardeais, novinhos em folha, virgens ainda da intriga palaciana. Trinta e um deles de uma vez. E muitos deles oriundos das mais notáveis famílias romanas – uma maneira de compensar perante a opinião pública, se se pode chamar assim, os efeitos políticos das medidas punitivas.
       Mas a Santa Sé estava de tanga. Precisava urgentemente de fundos. De maneira que todos os cardeais recém-nomeados pagaram, e bem, ao papa o respectivo chapéu cardinalício. E os preços de cada chapéu variavam em função dos méritos de cada uma das cabeças que os iriam usar. Quanto menos mérito, mais caro saía o chapéu.


    A Santa Sé estava de tanga e era imperioso avançar com a construção da Basílica de São Pedro. Mas era preciso muito dinheiro. Dinheiro que não havia nos cofres. E como não havia dinheiro nos cofres vaticanos, Leão X estava disposto a vender a salvação da alma a quem a pudesse pagar através da concessão de indulgências plenas sobre os pecados.
A dívida soberana dos Estados Pontifícios disparava a números incomportáveis. Em dois anos apenas Leão X dissipara toda a considerável herança do poupadíssimo Júlio II - que anualmente gastava 48.000 ducados, enquanto o menino Giovanni, o Medici, o papa Leão X, em dois anos estafara o dobro, fazendo orçar a quatro milhões e meio de ducados a despesa do seu reinado.


     Alguém escreveu: Leão X consumiu três pontificados num só: o tesouro de Júlio II, os rendimentos do seu próprio reinado e dos que lhe haveriam de suceder.
         Leão X sobe ao trono de Pedro no momento mais florescente da cultura renascentista. Homens de génio em plena carreira não faltavam nas itálias. Miguel Angelo, Rafael. Leonardo, Correggio, Tiziano, Andrea del Sarto, Ariosto, Aretino, Maquiavel, Pico della Mirandola, e mais uma quantidade considerável de poetas, desconhecidos já no tempo de Stendhal – e ainda mais desconhecidos hoje -, mas que na época de Leão X eram altamente apreciados.
         Cada refeição no palácio papal era um acontecimento, abrilhantado por músicos, poetas, bobos. Leão X nada tinha da enjoativa afectação das cabeças coroadas do tempo. Até se divertia e dizia piadas sobre a pomposa vaidade de quantos lhe faziam parte da corte. E pregava-lhes partidas e punha-os a ridículo. Até poderia conferir dignidades inesperadas (quiméricas, segundo Stendhal) ao mais néscio dos seus cortesãos que lhas pedisse, e isso como prémio pelo divertimento que as patetices do homem fornecia à corte pontifícia. E toda a Roma, gozadora e trocista se encantava com o espírito do seu príncipe.


         O palácio do papa estava transformado num teatro. Eram festas a toda a hora. Iam à cena peças teatrais de moralidade no mínimo duvidosa. E o papa nada sabia de economias quando era caso de convidar os grandes artistas para abrilhantar a corte vaticana. Em Roma tudo era alegria, divertimento. Leão X não queria como companhia à mesa quem não soubesse rir. Nada de carantonhas sérias, nada de olhares graves. Queria riso, piadas, anedotas. Se uma caçada lhe tinha corrido excepcionalmente bem, logo o papa cumulava de benfeitorias e benesses os que o tinham acompanhado nesse dia.
Roma era também um centro literário de ressonância mundial. Leão X, humanista, importava os mais preciosos manuscritos, chegando a ordenar, e a pagar, uma edição crítica (a primeira?) da obra de Dante.
Com respeito aos costumes do papa, bom, diz Stendhal que eles não eram nem mais sóbrios nem mais escandalosos do que os de qualquer outro grande senhor do seu tempo. E do maquiavelismo do pontificado de Leão X ninguém em Roma se apercebia tanto como isso.
Entretanto, Carlos I de Espanha viera a Aix-La-Chapelle para ser coroado sacro romano-germânico imperador contra o rei Francisco I de França, e à custa de uma fortuna colossal angariada junto da família de banqueiros Fugger, donos das multinacionais do comércio europeu de então. Fortuna essa que permitiu a Carlos comprar os votos necessários para os quais o rei francês não arranjou créditos. Foi no dia 23 de Outubro de 1520.
Mas alguém insuspeito e altamente colocado no mundo político europeu sempre conspirara contra as pretensões de Carlos. Esse alguém era o fútil papa Leão X. Saíram-lhe os cálculos furados, pois com a magna questão da Reforma em plena fervura o que mais havia na Alemanha eram ânimos anti-Roma.
Um alemão, Rudolph Hello, capitão da guarda do também amável Alfonso D’Este, duque de Ferrara, recebeu dois mil ducados, e por eles jurou matar o duque seu senhor e abrir as portas da cidade de Ferrara às tropas papais. E as tropas papais chegam às portas de Ferrara, e ali ficam um tempo a secar, antes de virem a saber que o alemão capitão da guarda afinal havia contado toda a trama ao duque Alfonso, seu senhor. E tudo isto acontece em 1820, ano da morte de Rafael.
Leão X verteu lágrimas de sangue na morte do grande artista, dizendo publicamente que a corte pontifícia havia perdido o seu mais esplêndido ornamento.
   A crise orçamental é que não se compadecia com artistas e ornamentos e tocara pontos absolutamente inusitados. Benesses, indulgências, jubileus, impostos eclesiásticos, transacções monetárias. Os pecados era preciso pagá-los por bom dinheiro e assim limpar a folha de assentos de cada um lá no céu. Tudo era negócio.
         E meteu-se o negócio alemão. 
   

     Leão X vendia ao arcebispo de Magdeburg, Alberto de Brandenburg, dez mil ducados de indulgências e benefícios. A prazo, Alberto teria de reembolsar tudo isso ao papa, mas o papa autorizava-o a negociar indulgências plenas a quem tivesse de seu lá nas alemanhas e estivesse disposto a entrar com algum para a construção da inefável Basílica de São Pedro. Se o Alberto conseguisse bons negócios, o papa deixava-lhe metade dos lucros. E assim Alberto contrata Johann Tetzel, o pregador dominicano que passa a ser o grande propagandista das indulgências que garantiam o paraíso. E é ele o homem que realmente faz Lutero ir aos arames e ver-se obrigado a tomar uma atitude – eventualmente instigado pelos príncipes a quem o papa, com a história das indulgências, também estava a querer ir ao bolso.

                       

        Leão X, em toda a sua ligeireza de alma, vai ser, inadvertidamente, claro está, o motivo condutor da maior transformação da História da Europa (que era o mundo de então, evidentemente, porque o outro era ainda mal conhecido). A Reforma. Mas está bem de ver que não é o menino Giovanni de Medici, ou Leão X, que fica como protagonista desse lance da História. É Lutero. E os príncipes germânicos, que também devem ter metido para isso algum prego e alguma estopa.
Lutero contesta violentamente a venda de indulgências para acudir aos luxos vaticanos do papa Leão X.
Leão X até pode ter achado piada ao descaramento do irmão doutor Lutero e escreve-lhe uma carta registada com aviso de recepção, convidando-o amavelmente a retractar-se das enormidades que publicara. Lutero recebe a carta e ali mesmo, em público, à porta da estação dos correios de Wittenberg, rasga a missiva papal e pisa-a a pés.
É excomungado. Excomunhão que precisa ser homologada pelas autoridades civis. O que leva tempo. E enquanto o pau vai e vem instala-se a polémica, que da religião logo se transfere para o campo político.
No entretanto, Lutero alarga as suas objurgatórias a Roma. Nada de hierarquias clericais: sacerdócio universal. Fidelidade às Escrituras e rejeição da tradição romana de interpretação teológica. Nada de celibato para os padres. Acabe-se com a teologia dos sacramentos. Estipule-se que a salvação da alma se opera somente pela fé e nunca pelas obras. Nada de chefe terreno para a Igreja – a letra das Escrituras chega, dispensa qualquer outra autoridade. Nenhum poder eclesiástico pode suplantar um poder laico… 
E põe-se ao trabalho de traduzir a Bíblia para alemão.
Carlos V, imperador, vê o caso mal parado e manda chamar Lutero. Que venha cá e depressinha que eu estou-lhe cá com uma sede que vocês nem imaginam...

        

Lutero vai, não se intimida na presença do imperador e fica na sua, não, não e não. E chama ao papa de Anti-Cristo. É banido do império. Toma que já almoçaste.
Para além do caso escabroso das indulgências, é preciso ver que a Igreja de Roma estava atascada até aos cabelos (se os tivesse) em problemas e irregularidades a que alguém mais dia menos dia teria de deitar mão.
Sim, pois, teria de ser o Sumo Pontífice a fazê-lo, mas a verdade é que nenhum se chegou à frente para pôr cobro a uma serie de malfeitorias. Por exemplo, à adoração aos santos e às relíquias, que se tornara doentia. Por exemplo, às exaustivas e repetitivas peregrinações e procissões por tudo e por nada. Por exemplo, à obsessão colectiva pelos milagres, efeito do crescente pavor popular do demónio e dos infernos. Por exemplo, os abusos da excomunhão, a simonia e o nepotismo em barda. Por exemplo, a dependência da Igreja relativamente à nobreza ainda de feição feudal. Por exemplo, o baixo clero a viver na miséria mais negra, enquanto o alto clero dissipava riquezas em luxos e festanças. Por exemplo, e de bradar aos céus, a vida imoral de padres, monges e freiras que chegavam a fazer de alguns conventos dos Estados Pontifícios degeneradas casas de passe.


Historiadores também dizem que aquele era um tempo de maus cardeais. Maus cardeais que faziam eleger maus papas. Maus papas que depois de eleitos, em contrapartida, nomeavam ainda piores cardeais. E ai do papa que quisesse pôr cobro à situação…
Os príncipes alemães dividem-se. Há os que se mantêm fiéis ao papa; há os que tomam o partido de Lutero. A rebelião estende-se à Suiça, que aproveita politicamente o diferendo para se autonomizar, e à Escandinávia. Não tarda aí a Inglaterra, a Holanda, parte da França. É o protestantismo. Vai começar o período obscurantista e negro da Contra-Reforma.


A 24 de Novembro de 1521, os espanhóis conquistam Milão. O papa recebe a notícia quando anda a passeio em Magliana. E fica radiante. O que ele mais queria era a Itália fora das unhas dos bárbaros (os franceses aliados aos otomanos, talvez). Manda disparar o canhão de Sant’Angelo por todo o dia em comemoração do acontecimento. Quer reunir o consistório e comunicar oficialmente aos cardeais a grande notícia, assim como ordenar missas de acção de graças em todas as igrejas dos Estados papais. Para isso dirige-se ao palácio e recolhe aos aposentos privados. Manda chamar o cirurgião. Queixa-se de um ligeiro mal-estar. Recebe notícias de Piacenza e de Parma, ambas também tomadas pelos espanhóis. O mal-estar que a princípio não prenunciava nada de cuidado redobra de intensidade e a dor torna-se insuportável. Nasce o dia 1 de Dezembro de 1521 e o amável papa Leão X solta o seu último e esplêndido suspiro.


Mas cuidado com o escanção do papa, o Malaspina.
Malaspina apresenta um copo de tintol a Sua Santidade. Sua Santidade cheira, bochecha, saboreia, bebe. E vira-se para o Malaspina pior que estragado, ouve lá ó Malaspina onde é que tu foste desencantar esta merda desta zurrapa tão amarga?
Stendhal não sabe a resposta do Malaspina. E eu também não. Mas sei que isto se passou ao jantar do dia 30 de Novembro de 1521. Pois. E sei que o papa morreu no dia seguinte.
E também se sabe que ainda mal o dia 2 de Dezembro era nado e um vulto com uma trouxa às costas e uns cães pela trela se safava pelas traseiras do palácio pontifício.
Os guardas admiram-se. Que é lá isso? Que despautério era aquele de um humilde servidor do papa se dar ao luxo do divertimento da caça quando o cadáver do seu senhor ainda nem tinha esfriado? E não fazem mais nada, cortam-lhe o caminho, prendem-no. Mas, oh, espanto, é o cardeal Giulio de Medici, primo do papa e pelo papa feito cardeal às três pancadas, quem manda soltar o Malaspina. Diz-se que por medo do falatório de envenenamento que pudesse comprometer algum príncipe e fizesse desse príncipe mais um inimigo jurado da família Medici, que já os tinha que bastasse.


Stendhal lamenta Leão X. A maior parte dos papas tinham esticado o pernil por volta dos setenta anos, mas logo havia de calhar ao amável humanista e mecenas Leão X o azar de bater as botas aos quarenta e sete. A que ponto o esplendor das artes italianas teria chegado se Leão X tivesse reinado por mais uns vinte aninhos…
A verdade é que o também amável Alfonso D’Este estava a ver a vida dele andar para trás no trono da sua Ferrara cercada pelas tropas papais, e preparado para vender cara essa vida, quando lhe chega a nova da morte de Leão X. Teria ele alguma culpa naquele cartório? Não se soube. Da fama não se livrou. E a alegria do amável Alfonso de Ferrara foi tanta que mandou cunhar moeda comemorativa, gravando-lhe uma ovelha arrancada pelo pastor às garras de um leão e apondo-lhe a inscrição bíblica: De Manu Leonis.



A vida é que não estava para letras e artes naquela fase da História de Itália.
As qualidades do cardeal Giulio de Medici eram gabadas por toda a gente enquanto sábio e principal ministro de seu primo Giovanni. Podia ser ele o sucessor. Giulio tinha porém inimigos de peso no colégio cardinalício. O primeiro deles era o cardeal Pompeo, da poderosa família romana dos Colonna.
Extra Omnes!
Abre o conclave a 26 de Dezembro. E se os conclaves que haviam consagrado Alexandre VI, Júlio II e Leão X tinham sido relativamente breves, o que se preparava para eleger o sucessor de Leão X estava complicado. E demorado. E os cardeais, à época pouco habituados a incómodos, lá se enfadavam de morte com aquela prisão a que eram obrigados pelos sucessivos e irresolutos escrutínios.
Por pesada graçola, um cardeal atira para o ar um nome. O nome do flamengo Adrian Florent, de cuja presença em Itália nunca ninguém dera fé. Sabia-se que era filho de um cervejeiro e que subira na vida a pulso. Que era um erudito da Universidade de Lovaina. Que tinha sido perceptor do imperador Carlos V. Que tinha sido regente em Espanha e atraído a si as cóleras populares…
Olha, boa, boa ideia! – dizem os cardeais mais impacientes. O bárbaro, o flamengo. Não está mal. O que é preciso é acabar com esta seca e irmos à nossa vida. Talvez seja mesmo ele o homem indicado. Da maneira que estão as coisas por aqui…
Arrematado. Sai esse e não se fala mas nisso. Não sabe italiano? Nunca esteve em Itália em dias de vida? E depois?
E sai mesmo Adriano. O sexto da ordem. Que chega a Roma, dá de caras com a quantidade de esculturas e maravilhosas estátuas antigas que tinham custado os olhos da cara ao orçamento papal malbaratado por Leão X, e grita de horror: sunt idola anticorum! – porra, isto são ídolos pagãos!, onde é que eu me vim meter…
E por aqui se compreende o que iria ser o pontificado do holandês Adriano VI. Que, vá lá, foi curto.


Era um homem sério, austero. Os romanos é que não se podiam conformar ao ver no cadeirão do amável Leão X um flamengo, um bárbaro que não dava uma para a caixa em italiano, e que ainda por cima detestava a poesia e as belas-artes.
Quando Adriano VI deita mãos às finanças vaticanas pede para o tirarem daquele filme, sabendo que ainda não havia FMI que lhe valesse. Fica varado com a dívida soberana que lhe tinha deixado José Sócrates… ai, perdão… que Leão X lhe tinha deixado. Mas recompõe-se do choque e jura endireitar o orçamento. Na base da austeridade, já se vê. E quando põe em marcha essa austeridade é um ver-se-te-avias, corta nos ordenados, nos subsídios, nas pensões, nas reformas. A cúria, habituada às larguezas de Leão X, chama-lhe no mínimo mesquinho. E Adriano VI também diz mal à sorte dele quando começa a inteirar-se dos costumes e das corrupções que por ali campeavam. Percebe que não tem vida para aquilo. De caminho, manda correr com os mouros e os judeus de Espanha. E deixa-se morrer no dia 14 de Setembro de 1523.
Os muitos mouros e judeus corridos de Espanha por ordem do papa Adriano VI vieram desaguar a Roma e com eles trouxeram riquezas sem fim. Adriano VI, papa, que ainda parecia estar vivo, ficou para morrer ao dar-se conta do caso e imediatamente se preparou para perseguir mouros e judeus também em Roma. Tê-lo-ia feito sem dó nem piedade… se não tivesse morrido.


Os romanos comemoram em grande festa a morte de Adriano VI. Uma alegria que tocou os cúmulos quando o médico do papa, Giovanni Antracino, abre um dia a porta de casa e a vê toda enguirlandada de flores frescas. E com uma inscrição: Do Senado e do povo de Roma ao libertador da pátria.
Extra Omnes.
No primeiro dia de Outubro de 1523, os cardeais estão outra vez trancados a sete chaves para eleger o sucessor de Adriano VI.
Giulio de Medici continua a ser um dos favoritos à eleição, e continua a ter como inimigo, dele e da família Medici, o seu camarada de dignidade e rival de pretensões, Pompeo Colonna.
Os conflitos político-militares agravam-se pela Europa e o próximo papa terá de se haver com berbicachos muito complicados.
Para ser papa, Giulio de Medici precisava de vinte e quatro votos (dois terços) e o colégio não lhe dava mais do que vinte e um. Era o Colonna a impedir-lhe a eleição. Giulio tentaria comprar votos, tentaria, mas teria de o fazer muito pela surra para não cair no crime da simonia. Era preciso contornar a dificuldade legal e os escritórios de advogados avençados por Giulio de Medici devem ter feito serões. E, como sempre acontece quando a coisa mete advogados (é para isso que eles servem), lá se conseguiu inventar um truque.
Vai uma apostinha, vai? Exacto. Recorrem às apostas. Parece que apostar era entretém muito e voga em 1523. Os partidários de Giulio propõem a cada um dos adversários apostar doze mil ducados contra apenas cem em como Giulio ainda não seria eleito no próximo escrutínio. E, claro, para ganharem tão suculenta aposta os cardeais adversos até votariam em Giulio, ganhariam a aposta, Giulio seria eleito papa e escolheria o nome de Clemente, o sétimo – nome que simbolizaria a sua vontade de perdão a todos os inimigos que tinha.
Mas a coisa não deve ter sido assim tão simples.
Um fedor horrível, infernal, sabe-se lá vindo de onde, e porquê (falou-se também aqui no poder do Espírito Santo), começou a empestar as câmaras dos cardeais e o ambiente ficou intolerável. Alguns caem doentes. Os mais velhos sentem chegada a sua hora. Querem despachar-se. Propõem o cardeal Orsini como vencedor. Pompeo Colonna, com medo dos Orsini, também seus inimigos de séculos, vai bater ao postigo de Giulio de Medici e propõe fazer dele papa. Mas alto! Calma. Na condição de o Medici lhe garantir que, uma vez entronizado, lhe daria o cargo de vice-chanceler da Igreja e o deixaria ocupar o palácio onde ele mesmo, Giulio, morava. Palavra de honra? Palavra de honra. E nessa mesma noite Giulio de Medici é adorado como papa pela maioria dos cardeais.
É coroado a 26 de Novembro de 1523, estão Francisco I de França e Carlos V em guerra.


Carlos V declarara-se amigo dos Medici e apoiara a candidatura de Giulio. Passado um ano, Clemente VII, o Giulio, assina um tratado com a França de Francisco I e Carlos V tira-lhe o tapete. Claro. Pompeo Colonna e excelentíssima família reacendem os ódios aos Medici e declaram-se amicíssimos e muito lá de casa do imperador. E contratam mercenários alemães e espanhóis, arrebanham os aliados italianos de Carlos V, e não fazem mais nada: ocupam Roma. É a confusão geral. Vai começar o famoso saque de Roma.


         Março de 1527. Vinte e cinco mil homens, as tropas luteranas, comandadas (teoricamente) por Carlos de Bourbon amotinam-se, estão sem salários, querem dinheiro, entram em Roma, exigem ao papa 300.000 ducados, se é que ele quer evitar que a cidade seja mesmo saqueada. O papa não vai daí abaixo e os amotinados assaltam a cidade. O papa foge a sete pés e refugia-se no Castelo de Sant’Angelo. E por lá fica. Meses. Ou anos, não sei. A pedir batatinhas aos seus aliados de outros tempos, e os aliados nem uma nem duas.
         Em Roma eram as pilhagens, os incêndios, os assassínios. O caos. Uma catástrofe que se dizia infligida por Deus (e pelo Espírito Santo, tinha que ser) à “nova Babilónia”.


         O que daria jeito ao papa na ocasião era esquecer agravos passados, intrigas e más palavras, e ficar com o imperador do lado dele. E pelo imperador o papa se decidiu, fazendo entrar no negócio a cagança de uma coroação imperial de Carlos V abençoada pelo próprio papa, em Bolonha. E, tutelada pelo imperador, suas tropas, sua dura autocracia e seu fundamentalismo político-religioso contra-reformista, segue-se para a Itália um período tenebroso de obscurantismo.
         Stendhal diz que poucos príncipes haviam chegado a um trono com mais alta reputação que a de Giulio de Medici. Por valor militar na juventude. Por ter sido bom ministro de seu primo Leão X. Pelas qualidades de trabalho. E pela pouca queda para o desbarato orçamental que havia marcado o reinado do primo. E Roma, que recebera Clemente VII em júbilos, passados cinco anos via o seu soberano reduzido à impotência e à miséria, em razão do saque e da pilhagem vergonhosa sofrida pela Cidade Eterna e que ele não soubera evitar.


         Stendhal lá achava que Clemente VII era sem dúvida homem de muito espírito, todavia com certa falta de carácter. E Stendhal tinha por experiência de francês contemporâneo da grande revolução que em circunstâncias políticas complexas o espírito pode ser qualidade desprezível, quando não ridícula, e que, pelo contrário, é a força de carácter que em tais casos deve presidir às decisões políticas.
    Mas também teve azar, Clemente VII, acho eu. Azar na circunstância histórico-política que lhe coube. A começar pelas consequências da reforma luterana, com repercussões formidáveis ainda no tempo dele na Inglaterra de Henrique VIII, separada de Roma em 1532.
         O infeliz Clemente VII morre em Setembro de 1534 desprezado por toda a Itália.
         

              
         Mesmo assim, ainda durante o reinado de Clemente VII Miguel Angelo continuou a pintar na Capela Sistina.


         Vinha aí o Concílio de Trento.