segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

     



A REALIDADE
        

       Dá-me sempre que pensar quando vejo o cartaz de um filme e leio: “uma história baseada em factos reais “; ou “uma história baseada num facto verídico” – desde logo, há as suas diferenças, claro, entre o verídico e o real.
E quem diz um filme diz um romance.
         Tudo isso, acho eu, reporta ao desprestígio em que no novo mundo economicista caiu a fantasia, a imaginação, o lúdico, a ficção – até diria o prazer pelo prazer, seja ele o que for e qual for.


E tanto mais intrigante é essa, digamos, realidade, quanto mais nos vamos apercebendo no que de ficção comporta, quantas vezes, o que nos vendem como verdade histórica ou como notícia verdadeira do momento, até que, passados tempos, novas indagações nos venham dizer que aquela tal verdade histórica não o era tanto assim, como aquela notícia de uma verdade televisiva de última hora não o era exactamente nos termos em que no-la tinham impingido.
         Querendo ver de outra maneira, e desprestígio por desprestígio, também sempre se ouviu dizer que a realidade ultrapassava a ficção – em inverosimilhança, pressupõe-se. O que também é desprestígio para a própria realidade, que vê em perigo a sua autonomia, mesmo a sua existência, por poder ser confundida com a sua eterna rival, a ficção.
Caso que também pode ser visto a contrario e acrescentar um acréscimo de prestígio para a realidade, quando ela é tão ela mesma, tão real, que até parece ficção.
         O sensacionalismo, serventuário do comercialismo e dos negócios mediáticos, inimigo da imaginação e do sonho como factores de subversão da realidade, preside à nossa vida hodierna. Mas sobre isso haveria tanto a dizer que nunca mais saíamos daqui hoje.


      De uma maneira ou de outra, essa expressão, “baseada numa história real”, ou num “facto verídico”, é uma redundância. Todo o romance se baseia em factos reais. Nada brota do nada. Nem que lhe dê um tratamento fantasista, ou fabuloso, foi da realidade da sua experiência pessoal que o escritor partiu para a ficção. Pode é não contar esses factos reais tim-tim por tim-tim, tal como se passaram no patamar hierárquico de realidade a que começaram por pertencer.
         Caberia a pergunta: o homem comum dos dias de hoje ama mais a realidade, ou prefere a ficção que os detentores do capital financeiro proprietário de jornais e estações de televisão lhe querem servir para o distrair da realidade mais real e da verdade mais verdadeira?


         O mundo talvez seja irreal. Ou, nos tempos que correm pela televisão, pelo Facebook, pela Internet, o mundo parece querer fugir a sete pés da realidade mais assumida e consagrada – quem esperaria ver nos media globais em hora nobre um homem cortar a cabeça a outro homem, um homem queimar outro homem vivo, um homem crucificar outro homem. Foi real? Ou faz parte da ficção que o mundo está a construir sobre a sua própria e indizível realidade?


         A realidade torna-se irreal pela força da sua própria realidade, pela inverosimilhança do seu próprio espectáculo. Já não é o nosso imaginário que irrealiza o mundo, essa é doravante, parece, a missão da própria realidade.


É o mundo, e a realidade na sua contagiante neurose, que apuram nas zonas do inacreditável o seu histórico sentido de realidade. Destrói-se a ilusão ancestral e cria-se uma outra. O mundo presente edifica uma nova realidade com factos que de tão reais se mostram incapazes de penetrar o nosso mundo irreal das ideias, dos valores e até das crenças.
         No plano literário e artístico saltamos para o campo semântico. A significação está a vencer a expressividade. Uma expressividade que com os seus sistemas de sinais marcou as origens da vida.


         O irreal romanesco, ou ficcional, pode ter a função de intensificar a realidade. Pode ter e tem. Como se vê pelos compêndios de História. Ou até pelas notícias de telejornal. A intensificação da realidade é o dever da ficção. Oh, quantas crónicas romanceadas sem assumir a sua natureza romanesca, quantos ensaios romanceados, quantas biografias romanceadas, quantas tocantes confissões íntimas romanceadas…
         Milan Kundera a dizer-nos textualmente que “o romance destina-se a explorar âmbitos da realidade (da experiência humana) descurados por todos os outros sistemas de interpretação ou representação, sejam filosóficos, religiosos, sociológicos, e por aí fora. Âmbitos que só podem ser abordados pelas vias que são específicas ao romance.”
         Ou Nietzsche a dizer-nos que o artista perfeito e completo estaria sempre separado da realidade.


E porque também houve quem dissesse que a obra de arte é aquilo que permite à verdade existir, porque se escreve para fazer surgir uma verdade. E talvez a “história baseada num facto real” tenha pegado nesse facto real, verídico, lhe tenha dado um tratamento de ficção, e por isso mesmo lhe tenha melhorado a intrínseca realidade, a mais pura verdade. A ficção pode superar a verdade, porque (Ortega y Gasset) superar é herdar e acrescentar.
A História como mãe da verdade – já lá o dizia Jorge Luis Borges pela boca de uma personagem, Pierre Ménard. Quer dizer, a História não como uma indagação da verdade, como uma consulta à realidade, mas a História como origem mesma da realidade. Ou a verdade histórica deslocada daquilo que de facto aconteceu para aquilo que julgamos ter acontecido.


Uma realidade reflectida, digamos, no romance como num espelho. A mais real das realidades. A essência. A atmosfera.
A realidade, qualquer realidade, contém um segredo. É para desbravar esse segredo do real que se escrevem (ainda se escrevem) romances. Que se fazem filmes. A arte é sempre uma selecção de segredos. Esses, os que a realidade pode encerrar. A descrição de um mero objecto pode ser o que transmite realidade a uma realidade, a uma casa, a uma rua, a um facto, a uma pessoa.


Porque um romance é uma luta com a realidade evocando-a, vencendo-a, criando a outra realidade que a primitiva realidade escondia, fazendo viver por ela aquilo não vivia na primitiva realidade.
Princípio do prazer. Também. Que se impõe, quantas vezes, ao princípio da realidade, recusando incorporar as realidades frustrantes desse princípio de prazer.


Ao escrever vive-se a vida irreal. Os livros são a vida irreal, enquanto o sujeito que escreve não se dá conta de que o seu trabalho de escrita é a sua vida real, e que a realidade exterior pode não passar de espectáculo encenado, de festa, de mistificação da realidade mesma.
“Romance baseado num facto irreal.” Assim gosto mais. “Filme baseado numa história inverídica.”
Bons tempos… 


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