sábado, 28 de fevereiro de 2015

                      


                      ANARCO-CAPITALISMO


Maquiavel - o que sabia das coisas -  pensava que o grande, o único, crime lesivo do Estado seria a introdução da anarquia. Introduzindo anarquia no funcionamento das estruturas organizativas do Estado (justiça, segurança social, educação, finanças, saúde – por exemplo) atentava-se eficazmente contra a existência mesma do Estado.
Não será doravante o Estado a garantir o bom andamento e o necessário equilíbrio da economia e dos interesses público e privado. Tiraram-lhe os meios. Anarquizaram-lhe as funções. Confundiram-lhe as obrigações. Desacreditaram-lhe as verdades.


O interesse público está flagrantemente a desinteressar a economia e a finança. E por isso os mercados, no seu funcionamento de espécie de roleta russa, serão os instrumentos únicos para garantir equilíbrios e interesses, na condição de proibir a intervenção da autoridade pública.
A intervenção da autoridade pública sobre os mercados seria a indesejável ruptura de funcionamento efectivo do único instrumento promotor de realizações económico-financeiras verdadeiramente compensadoras.


Os mercados até escusam de produzir resultados socialmente bons. E porque na disputa entre o privado e o social os mercados não podem ser justos e equitativos.
Entregues a si mesmos, os mercados produzem de preferência não mais do que exclusão. Tem mesmo que ser assim. Porque, na sua lógica falaciosa e imbatível, se uma multinacional procura a todo o preço maximizar os seus lucros estará ao mesmo tempo a servir o interesse público.




sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

       

      A LIBERDADE, O INDIVÍDUO
          
Interessante é pensar que a liberdade pode impor-se sob a forma de uma tirania.
Ou ao contrário. Se quiserem.
Interessante é pensar num novo fascismo (ou ditadura, ou totalitarismo) possível de coexistir com os esplendores da democracia parlamentar.
Pacificamente? É o que veremos.


Interessante é comparar os agentes da democracia destes novos tempos com os agentes do totalitarismo de outros tempos, dos tempos de Entre Guerras do séc. XX.
Hoje, a disputa económica entre Estado regulador e mercados gira em volta de um valor, o valor mais prezado, a liberdade.
Foram as democracias parlamentares capitalistas que na II Guerra venceram os totalitarismos dos Estados-partido nos anos 20 e 30; as mesmas que nos anos 50 entraram em guerra fria com os remanescentes estalinismos, assim preparando e aplanando o caminho para os totalitarismos mercantis do terceiro milénio.


Pois é. A liberdade. O maior dos teóricos liberais, Adam Smith, o dizia: “cada homem é o melhor juiz dos seus interesses e a ele deve ser conferida a liberdade de realizar esses interesses, e porque a sociedade e as instituições (o Estado) que a representam mais não fazem do que frustrar as realizações do homem livre e ambicioso.”
(Ai do homem pouco ambicioso…)


 A luta pela democracia e contra os totalitarismos, fascista, nazi, estalinista girava em volta de um outro valor correlativo ao da liberdade, o indivíduo, o indivíduo contraposto às máquinas estatais colectivistas, cerceadoras das liberdades e esmagadoras dos direitos individuais.
Mas a que indivíduo se referiam? Ao indivíduo de Adam Smith, livre e ilimitadamente ambicioso? Claro. Nós é que pensávamos que fosse connosco, os moderadamente ambiciosos.


Era urgente encontrar uma ideologia que servisse o indivíduo livre e ilimitadamente ambicioso, mas que não se identificasse com fascismos, ditaduras, totalitarismos. E finalmente encontraram. Os mercados. Não se arranjava nada de mais livre e de mais ilimitadamente ambicioso.

E o inquietante destes tempos é perceber que o cariz da presente luta contra a autoridade do Estado não privilegia o indivíduo e a sua liberdade como valor supino de civilização e convivência. Hoje, a máquina que aniquila o indivíduo, e que é a marca de uma renovado totalitarismo, é um colectivo de anónimos investidores livres e ilimitadamente ambiciosos que se chama mercado. Uma máquina ainda mais desprovida de moral do que a máquina do Estado totalitário daqueles anos 20 e 30. 


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

                      



                     A SOLUÇÃO NOVA

E o totalitarismo parece apresentar-se ao milénio como a solução nova. Como já foi – ou pretendeu ser - a solução nova, o antídoto, a resposta do então jovem séc. XX aos horrores da guerra, e em face dos horrores dessa primeira das grandes guerras que se acreditava ser a última das guerras na Europa.


A solução nova era o Estado total, ideal dos construtores de alternativas à degenerada sociedade liberal do parlamentarismo que era herança do séc. XIX. A solução nova seria levada avante, nem que fosse preciso suprimir até a liberdade interior.
A totalidade do Estado passaria a ser a solução nova de política nacional que associava o interesse colectivo aos interesses de Estado, e por conseguinte à casta que dominava o aparelho de Estado.
Nada nos proíbe de pensar que, por alguma razão, quiçá moral, o Estado se tenha vindo a mostrar renitente na sua condição de aliado natural do capital.


Ou então foi o capital que inventou maneira de se livrar do regulador que lhe começou a ladrar às canelas quando o envelhecimento das populações o obrigou a puxar ao social mais do que o combinado.


Para o capital, o Estado social fazia lembrar o Estado providência do pós-guerra. Tornava-se um aliado infiel e por isso indesejável. 
E assim o mercado, erigido em categoria civilizacional tutelar, reguladora, a-social, se apresenta como o totalitarismo do novo milénio, o fascismo sem duce, o nazismo sem führer, o estalinismo sem o pai dos povos.

A solução nova do capital, a última novidade, os mercados. Indiscutíveis. Incontestáveis. Ou, como se ouve dizer muito agora, a última Coca Cola do deserto.


terça-feira, 24 de fevereiro de 2015



OS ESTÁDIOS SUPREMOS DO   
           CAPITALISMO


O fascismo como estádio supremo do capitalismo?
Oh, como nos enganávamos! Como não percebemos que aparecerá sempre alguém capaz de ir mais longe do que o que a correcção dos costumes e a moral possam prever!
Como não pudemos imaginar que um estádio ainda mais supremo (passe o paradoxo) do capitalismo viria a acontecer quando o capitalismo, para triunfar, criasse o poder dos mercados e não hesitasse em destruir o próprio Estado se esse Estado lhe fizesse frente às ambições?


O fascismo seria o estádio supremo do capitalismo quando o interesse capitalista configurasse até as funções do Estado.


Mas quando o Estado se tornou mais moral e menos aliado, o imparável capitalismo engendrou melhor: destruir o Estado; actuar sem a concorrência de outros valores de que normalmente o Estado fosse guardião.


E assim até ao paroxismo. Até ao aniquilamento das soberanias nacionais.

E o estádio supremo do capitalismo é, está a ser, esse mesmo paroxismo, essa aniquilação das soberanias nacionais pelo anárquico, imoral e ilimitado poder dos mercados, o novo totalitarismo.
  


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

     



A REALIDADE
        

       Dá-me sempre que pensar quando vejo o cartaz de um filme e leio: “uma história baseada em factos reais “; ou “uma história baseada num facto verídico” – desde logo, há as suas diferenças, claro, entre o verídico e o real.
E quem diz um filme diz um romance.
         Tudo isso, acho eu, reporta ao desprestígio em que no novo mundo economicista caiu a fantasia, a imaginação, o lúdico, a ficção – até diria o prazer pelo prazer, seja ele o que for e qual for.


E tanto mais intrigante é essa, digamos, realidade, quanto mais nos vamos apercebendo no que de ficção comporta, quantas vezes, o que nos vendem como verdade histórica ou como notícia verdadeira do momento, até que, passados tempos, novas indagações nos venham dizer que aquela tal verdade histórica não o era tanto assim, como aquela notícia de uma verdade televisiva de última hora não o era exactamente nos termos em que no-la tinham impingido.
         Querendo ver de outra maneira, e desprestígio por desprestígio, também sempre se ouviu dizer que a realidade ultrapassava a ficção – em inverosimilhança, pressupõe-se. O que também é desprestígio para a própria realidade, que vê em perigo a sua autonomia, mesmo a sua existência, por poder ser confundida com a sua eterna rival, a ficção.
Caso que também pode ser visto a contrario e acrescentar um acréscimo de prestígio para a realidade, quando ela é tão ela mesma, tão real, que até parece ficção.
         O sensacionalismo, serventuário do comercialismo e dos negócios mediáticos, inimigo da imaginação e do sonho como factores de subversão da realidade, preside à nossa vida hodierna. Mas sobre isso haveria tanto a dizer que nunca mais saíamos daqui hoje.


      De uma maneira ou de outra, essa expressão, “baseada numa história real”, ou num “facto verídico”, é uma redundância. Todo o romance se baseia em factos reais. Nada brota do nada. Nem que lhe dê um tratamento fantasista, ou fabuloso, foi da realidade da sua experiência pessoal que o escritor partiu para a ficção. Pode é não contar esses factos reais tim-tim por tim-tim, tal como se passaram no patamar hierárquico de realidade a que começaram por pertencer.
         Caberia a pergunta: o homem comum dos dias de hoje ama mais a realidade, ou prefere a ficção que os detentores do capital financeiro proprietário de jornais e estações de televisão lhe querem servir para o distrair da realidade mais real e da verdade mais verdadeira?


         O mundo talvez seja irreal. Ou, nos tempos que correm pela televisão, pelo Facebook, pela Internet, o mundo parece querer fugir a sete pés da realidade mais assumida e consagrada – quem esperaria ver nos media globais em hora nobre um homem cortar a cabeça a outro homem, um homem queimar outro homem vivo, um homem crucificar outro homem. Foi real? Ou faz parte da ficção que o mundo está a construir sobre a sua própria e indizível realidade?


         A realidade torna-se irreal pela força da sua própria realidade, pela inverosimilhança do seu próprio espectáculo. Já não é o nosso imaginário que irrealiza o mundo, essa é doravante, parece, a missão da própria realidade.


É o mundo, e a realidade na sua contagiante neurose, que apuram nas zonas do inacreditável o seu histórico sentido de realidade. Destrói-se a ilusão ancestral e cria-se uma outra. O mundo presente edifica uma nova realidade com factos que de tão reais se mostram incapazes de penetrar o nosso mundo irreal das ideias, dos valores e até das crenças.
         No plano literário e artístico saltamos para o campo semântico. A significação está a vencer a expressividade. Uma expressividade que com os seus sistemas de sinais marcou as origens da vida.


         O irreal romanesco, ou ficcional, pode ter a função de intensificar a realidade. Pode ter e tem. Como se vê pelos compêndios de História. Ou até pelas notícias de telejornal. A intensificação da realidade é o dever da ficção. Oh, quantas crónicas romanceadas sem assumir a sua natureza romanesca, quantos ensaios romanceados, quantas biografias romanceadas, quantas tocantes confissões íntimas romanceadas…
         Milan Kundera a dizer-nos textualmente que “o romance destina-se a explorar âmbitos da realidade (da experiência humana) descurados por todos os outros sistemas de interpretação ou representação, sejam filosóficos, religiosos, sociológicos, e por aí fora. Âmbitos que só podem ser abordados pelas vias que são específicas ao romance.”
         Ou Nietzsche a dizer-nos que o artista perfeito e completo estaria sempre separado da realidade.


E porque também houve quem dissesse que a obra de arte é aquilo que permite à verdade existir, porque se escreve para fazer surgir uma verdade. E talvez a “história baseada num facto real” tenha pegado nesse facto real, verídico, lhe tenha dado um tratamento de ficção, e por isso mesmo lhe tenha melhorado a intrínseca realidade, a mais pura verdade. A ficção pode superar a verdade, porque (Ortega y Gasset) superar é herdar e acrescentar.
A História como mãe da verdade – já lá o dizia Jorge Luis Borges pela boca de uma personagem, Pierre Ménard. Quer dizer, a História não como uma indagação da verdade, como uma consulta à realidade, mas a História como origem mesma da realidade. Ou a verdade histórica deslocada daquilo que de facto aconteceu para aquilo que julgamos ter acontecido.


Uma realidade reflectida, digamos, no romance como num espelho. A mais real das realidades. A essência. A atmosfera.
A realidade, qualquer realidade, contém um segredo. É para desbravar esse segredo do real que se escrevem (ainda se escrevem) romances. Que se fazem filmes. A arte é sempre uma selecção de segredos. Esses, os que a realidade pode encerrar. A descrição de um mero objecto pode ser o que transmite realidade a uma realidade, a uma casa, a uma rua, a um facto, a uma pessoa.


Porque um romance é uma luta com a realidade evocando-a, vencendo-a, criando a outra realidade que a primitiva realidade escondia, fazendo viver por ela aquilo não vivia na primitiva realidade.
Princípio do prazer. Também. Que se impõe, quantas vezes, ao princípio da realidade, recusando incorporar as realidades frustrantes desse princípio de prazer.


Ao escrever vive-se a vida irreal. Os livros são a vida irreal, enquanto o sujeito que escreve não se dá conta de que o seu trabalho de escrita é a sua vida real, e que a realidade exterior pode não passar de espectáculo encenado, de festa, de mistificação da realidade mesma.
“Romance baseado num facto irreal.” Assim gosto mais. “Filme baseado numa história inverídica.”
Bons tempos… 


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

          


O HOMEM QUE EDUCOU SECRETAMENTE   OS FALHADOS ASSASSINOS DE HITLER,
    E OUTRAS HISTÓRIAS,
                            E OUTROS MESTRES


Fala-se de Stefan George, o poeta, o tradutor, o guru. Quem sabe se o charlatão? O auto investido guardião das doutrinas da Alemanha arcaica, tradicional. Ou até melhor: da Alemanha secreta.


Stefan George foi o mestre espiritual de boa parte dos oficiais que perpetraram a chamada Operação Valquíria, ou seja, o assassínio de Hitler no refúgio hiper-protegido de Rastenburg, em 1944, e entre os quais avulta a figura do coronel conde Klaus von Stauffenberg.


Figura impressionante e leonina, Stefan George ensinava uma moral e uma prática de vida ocultas, esotéricas, incluindo nelas a participação política activa. Queria rodear-se no seu círculo de uma elite da alma, com vista à restauração dos verdadeiros valores germânicos, os culturais e os morais. Porque pensava na Alemanha como uma nação que degenerara. Empédocles e Platão – e eu diria também Pitágoras – estavam-lhe nos horizontes.
Stefan George funda o seu círculo iniciático em 1892.
         A doutrina dele, vendo bem, não seria tão esotérica como isso, posto que, em simultâneo com a criação do seu cenáculo, publica uma revista, Blätter für die Kunst. Uma revista que ostentava como logótipo a suástica hindu, símbolo do sol, da luz, da vitalidade. Stefan George declara então as suas intenções. Quer ser professor e mestre cantor da alma alemã.


Em 1903, em Munique, Stefan George encontra por fim um adolescente de 15 anos e consagra-o como encarnação da perfeita beleza teutónica. O seu Siegfried. Chama-se Maximin. Foi tratado como um ídolo no circulo de Stefan George.
Morreria um ano depois.
Não sei como nem porquê.


Com ele morria a criatura que em si mesma e por si mesma seria a maravilhosa estrofe de um hino à nova e jovem elite viril pronta a renovar a decrépita civilização germânica.
Em 1928, Stefan George profetiza o futuro alemão. É um futuro ideal, digno de Hölderlin. E o emergente movimento nazi aproveita-lhe a profecia. Verifica que a mística de Stefan George encaixa bem no arsenal teórico e ideológico do movimento. Mas o próprio Stefan George nunca verá no nazismo e no Führer senão caricaturas muito grosseiras das suas concepções, entre as quais se contava a visão ideal de uma liderança nacional de tipo apostólico.

        

Ou talvez Stefan George se visse a si mesmo como o Führer de que a Alemanha precisava.  Talvez por isso ele se tenha auto exilado na Suíça. E talvez por isso tenha morrido em fins de 1933, justamente, como se sabe, e sei lá se profeticamente, na hora da chegada do partido nazi ao poder.
No cenáculo de Stefan George compareciam artistas, poetas, literatos, historiadores, aristocratas, rapazes destinados à carreira das armas e à diplomacia – caso flagrante dos irmãos von Stauffenberg.


Os judeus também eram admitidos. Por estranho que pareça.
Organizavam-se cerimónias. Os rituais eram interpretações, mais ou menos realistas do Banquete, de Platão, incluindo os fiéis vestidos à maneira helénica.
Stefan George assumia uma autoridade de tipo profético e intervinha até nos assuntos particulares dos seus discípulos. Estava absolutamente fora de questão um discípulo abandonar o mestre e o respectivo círculo iniciático. Mas aconteciam as traições – acto clássico da atitude mental do discípulo para com o mestre. Aconteciam expulsões que, não sei se alguma vez tomadas à letra, equivaliam a sentenças de morte.
Um dos nomes sonantes que se emancipou da tutela espiritual e magistral de Stefan George foi o poeta Hugo von Hoffmansthal, que viria a ser – se não o fosse já – o celebrado libretista de algumas das principais obras-primas de Richard Strauss.


O contacto com o mestre mudava vidas. Mas também criava as mais ferozes inimizades.
Estes círculos mágicos, esotéricos, proliferavam pela Europa em fins do século XIX. Eram emanações da estranheza das almas pelo enfrentamento dos valores enigmáticos do novo século, dos novos tempos, dos novos poderes.


Na velha Inglaterra não faltavam os círculos esotéricos e místicos das mais variadas orientações e obediências, incluindo, e muito, nos meios universitários.


Havia os apóstolos de Cambridge; o culto rosa-cruciano. Havia os seguidores de Madame Blavatski – entre os quais o poeta Yeats. Havia a irmandade dos pré-rafaelitas. Havia a confraria da energia sexual, a sociedade do vril, ou a Golden Dawn, a que pertenciam notáveis vultos da aristocracia e da intelectualidade. Havia a seita de Gurdiev. Havia o grupo de Bloomsbury, com a escritora Katherine Mansfield.

  
                                               
Perante as incógnitas do novo século e a vulgaridade da sociedade tecnocrática e industrial, reagia-se pelo esteticismo. Procurava-se fugir ao vulgo, ao profano, à arregimentação dos espíritos pela sociedade massificada e de consumo que se anunciava.


Estava-se convencido de que a revelação que presidiria à resistência ao novo e à renovação do antigo se achava numa atitude de discipulado, de iniciação nas verdades ocultas.


O magistério iniciático respondia às músicas do tempo e profetizava-se a chegada dos governantes providenciais iluminados. Esperava-se a revelação pela palavra do duce, do führer. Esperava-se tudo das ideologias autocráticas e ditatoriais.
E é de facto o que acontece, o leninismo, o fascismo, o nacional-socialismo.
E no verão de 44, bom número de discípulos do guru Stefan George é massacrado depois de descoberta a conspiração contra Hitler. E é esse facto que vem de alguma forma a redimir o que aos ouvidos de hoje soaria a banalidade no ensinamento de Stefan George.


E  tudo isto também ilustrando o princípio de traição e de dissidência na relação mestre-discípulo.
E outras histórias, e outros mestres.
Freud, que nos pareceu sempre tão seriozinho (ou seriozão), pois olhem, oferecia anéis com motivos míticos, esfinges e assim. Ofereceu anéis desses a seis dos seus discípulos, os que elegera como seus delfins – e também Stefan George oferecia anéis no mesmo sentido.


A obrigação dos discípulos de Freud possuidores dos anéis era perpetuar pelos tempos, desaparecido o mestre, o ensinamento do credo psicanalítico e respectivas ortodoxias.


Bom, mas perguntava-se: qual deles seria o primogénito, chamemos-lhe assim, do mestre?


Naturalmente, desencadearam-se as rivalidades no círculo de Freud. Decidiram-se as cisões. Wilhelm Reich, Jung, Adler e Rank declararam hostilidade ao mestre e criaram as próprias escolas. Freud confrontou-se com as suas próprias teorias. Édipo o parricida...
O acto inaugural da civilização é o assassínio do próprio pai.
O mestre pode personificar o mal. Assim o entende o discípulo. E o mal é o mal da obediência cega e incondicional; é o que há de totalitário na disponibilidade. E tudo isso resultará em breve insuportável para o discípulo que se preze. E então esse discípulo não terá alternativa senão a fuga ao carisma do mestre. Não há outro modo de salvar a própria identidade.
Pitágoras visava dominar a cidade por meio da filosofia. Platão, mais tarde, como se sabe, viria a abraçar o mesmo ideal. Diz a tradição que Pitágoras teria sido forçado a fugir para o Metaponto. Onde morreria, depois de consumado um jejum de 40 dias.
No destino de um mestre está consignada a morte às mãos dos seus concidadãos. Era tradicional essa condenação à chacina dos que eram profetas ou mestres iniciáticos.
Por falar em ensino e em mestres, Empédocles, outro. Já anteriormente aqui mencionado. Empédocles que, das duas uma, ou é desterrado para o Peloponeso, onde vem a morrer; ou é enxotado pela canalha, despede-se do seu favorito, Pausânias, sobe ao monte Etna e precipita-se na cratera, deixando para trás uma sandália de bronze.
Nietzsche, a pensar em Empédocles, escreve uma tragédia quando escreve o seu Zarathustra. O mestre trabalhava para a desgraça do seu povo preguiçoso e medíocre.
A história das vocações. O ensino é um dom, uma vocação. E irresistível, quer-me parecer. E é invasivo. Torna-se perigoso. O mestre invade a alma do discípulo. Pode purificá-la. Pode destruí-la. O mau ensino é crime, é pecado.


Outras histórias. Outros mestres.
(Agora que tanto se fala das provas dos professores.)
Segundo mestre George Steiner, o mau ensino diminui o aluno. O mau ensino reduz a uma inanidade cinzenta a matéria apresentada. Derrama sobre a sensibilidade da criança ou do adulto o mais corrosivo dos ácidos, o tédio, diz ele textualmente.


E, bem, deve ter sido o que me aconteceu. Sim, a mim mesmo. Deve ter sido essa a minha história de aluno, dado o eu ter sido sempre um mau, por vezes péssimo, aluno, completamente desinteressado fosse por que matéria fosse.


A tal história do ensino salazarista, o único sistema de ensino que conheci, hélas! E que hoje penso que devia seu mau e bom. Bom porque me incutiu disciplina e sentido do dever: exagerado, talvez, mas ainda assim disciplina e dever. E mau porque me condenava ao tédio e ao desinteresse que me prejudicaria (ou talvez não) mais tarde no capítulo curricular.
Enfim, não sei…
Sei o que diz mestre Steiner, que para milhões de cidadãos a matemática, a poesia, a gramática, a lógica, foram-lhes destruídos no espirito pela mediocridade do ensino de pedagogos frustrados – certamente chumbados nas provas do doutor Crato.


E estou tentado a acreditar, e por conseguinte a amaldiçoá-las, nessas infecundas jornadas estudantis do meu passado. Só não sei se os novos sistemas de ensino, e os novos mestres, tudo somado, serão melhores do que os ditos salazaristas. Não sei. Não é ironia minha. Confesso. Se por um lado, e tal… por outro… não sei. Sou incompetente para ajuizar.
Passo a palavra directamente a mestre Steiner: a maioria daqueles a quem entregamos os nossos filhos nas escolas secundárias pouco mais são do que amigáveis coveiros e trabalham para reduzir os alunos ao nível de fatigada indiferença que é o deles próprios.
E não se pense que a ideia do grande mestre é utopia. Houve quem conhecesse desses mestres, fossem eles Sócrates, Emerson, Nadia Boulanger, e muito outros, creio, poucos, decerto, que Steiner não cita. E não falando nos grandes mestres anónimos – não, não me refiro aos tais superiores desconhecidos.


Os grandes mestres anónimos podem ser os de todos os dias, os que emprestam livros, os que atendem qualquer aluno depois da hora da aula, os que, sim, esses, os que dão fogo a uma obsessão.
Outras histórias…
A história da remuneração do mestre.
Mestre Steiner pergunta-se: por que razão aceito pagamento por um trabalho de professor que é o meu oxigénio, a minha raison d’être?
Pois era, pagavam-lhe o próprio privilégio. Pagavam-lhe os momentos de graça que vivia a ensinar, a cumprir a sua vocação.
Alguém lhe deveria pagar só pelo facto de ele ser quem era, e para ele poder ser quem realmente era?
Sócrates, se não erro (não, o outro), ironicamente entendia que a sociedade não devia remunerar as grandes vocações. A sociedade devia pagar apenas aos medíocres, aos que dão de barato a vocação em favor do negócio. Para os grandes mestres somente o mínimo indispensável, semelhante aos frades mendicantes. Ou então que o grande mestre ganhasse a sua vida em actividades estranhas ao magistério, como mais tarde aconteceu com muitos.  


 Jakob Boheme era sapateiro. 
Spinoza era polidor de lentes. 



Mais modernamente, Kafka era profissional de seguros.


 E devo dizer que gosto pessoalmente desta ideia.
Nas oficinas medievais e nos estúdios da pintura renascentista, os grandes mestres rodeavam-se de grandes quantidades de jovens aprendizes onde as invejas eram o pão-nosso-de-cada-dia, a competição, o plágio, a disputa dos favores do grande mestre. Enfim, embirrações e querelas que poderiam acabar em sangue vertido na esquina escura de uma viela de Florença.


Na investigação científica, o mesmo, os espíritos científicos nem sempre serão tão superiores, e as invejas campeiam, o divismo, os egoísmos, a concorrência. Quem é, por direito, o pai de uma descoberta, o patrão do laboratório, o mestre, que para o resultado final  pouco prego e pouca estopa meteu e só forneceu os meios para os assistentes poderem chegar a conclusões?
Outra histórias, outros mestres.
A de Flaubert e Maupassant.


No campo das letras o exemplo de mestrado e discipulado é mais esparso. E se emerge com clareza especial será no caso de Flaubert e do seu brilhante discípulo Guy de Maupassant.
Maupassant larga de mão a poesia, por influência de Flaubert, e passa para a prosa. Isto em 1870.
Flaubert lia tudo o que o jovem Maupassant lhe apresentava. Criticava os trabalhos atendendo aos mais pequenos detalhes tanto quanto às grandes linhas de força do conto. Deixava uma mensagem: mesmo a mais pequena coisa contém um pouco de desconhecido. Temos de o encontrar. Para descrever um incêndio ou uma árvore numa planície teremos de observar esse fogo e essa árvore até que não se pareçam com nenhum outro fogo, como nenhuma outra árvore.
E mais: não há dois grãos de areia idênticos. Seja o que for que pretendas dizer só há uma palavra para o exprimir, um verbo para o fazer mover, um adjectivo para o qualificar. O estilo é especificidade infinita. E um homem que decidiu ser artista perde o direito de viver como os demais.
Mas também, em Bouvard et Pécuchet, o mestre Flaubert recorreu  à colaboração do discípulo Maupassant.
Maupassant manda a Flaubert o original de Boule de Suif, e Flaubert, acabado de ler o conto, exclama: cela c’est d’un maître!


Claro que sim, digo eu, cabe ao mestre, também, a capacidade excelsa de reconhecer a capacidade a mestria oculta, quiçá irresoluta, do discípulo.
Amas-me?, pergunta Flaubert a Maupassant, se me amas fazes muito bem em amar-me pois este velho que aqui vês adora-te.
E outras histórias, e outros mestres.
Ezra Pound instruiu T.S. Eliot.

                                     

Gertude Stein foi muito mestra de Hemingway.

                                    

Tinham descoberto que era possível ensinar a inspiração
E à proliferação – também a meu ver suspeita – dos cursos de escrita criativa, Steiner pergunta o que será uma escrita não criativa. E a palavra tolerante de mestre Steiner quanto à utilidade destes cursos é que eles servirão para, ouvindo outras vozes, suavizar a solidão daquele que escreve.
Outra história, a do sucesso de um aluno.
Já todos sabemos que a vida de hoje, tão mediatizada, tão materialista, tão superficial, exige do jovem cidadão, mais do que da vida do jovem de qualquer outra época, uma coisa essencial: o sucesso.
Ele são sucessos atrás de sucessos, carreiras de sucesso, empresários de sucesso, jogador de sucesso, treinador de sucesso, sei lá mais o quê de sucesso -  mendigo de sucesso, sem-abrigo de sucesso, qualquer dia.


Consequentemente, quem procura para si uma educação, para si, para os filhos, para os netos, aconselha os cursos que abram mais depressa as portas do tal sucesso. E constando esse sucesso - mil vezes mais do que a realização espiritual, a satisfação pessoal ou a felicidade íntima e individual de um vocação – de uma vitória de ordem material, financeira. Ganhar dinheiro. Ganhar todo o dinheiro possível, todo o dinheiro que houver. Assim se explica, parece-me, o actual declínio dos estudos de artes, letras ou de filosofias, em favor das matérias económico-financeiras, de gestão, de engenharia, de informática – do Direito, de certo modo.
E posto isto, talvez seja interessante saber que do ensinamento de um dos mais notáveis mestres do pensar francês, Alain, constava uma estranha regra moral: ne pas réussir. Evitar ter sucesso.
O sucesso implicaria o compromisso com o que impediria a realização pessoal e completa do indivíduo, com o que se desviava da vocação, exagerando-a, ou distraindo-a do caminho natural.


Alain também entendia que o ensinamento a transmitir deveria estar acima do alcance do aluno. Só para lhe estimular o gosto de aprender. Só para o obrigar ao esforço, à vontade, à disciplina, etc.
Havia de ser hoje… hoje, quando o gosto e a vontade de aprender são escassos e até estimulam alguma aversão por quem sabe. Hoje! Hoje, quando a vontade de ter sucesso é imperiosa, obsessiva, compulsiva.
Outros mestres. Outras histórias.
De judeus. Mestres judeus.
Todo o Velho Testamento, e mais  a Tora, constituem programas de estudo e manuais para uso quotidiano, e quando é dito que o judeu está permanentemente a ser examinado.
O judaísmo teve os seus mestres lendários.
Sem forçar a paciência do eventual leitor, referirei um ou dois deles. Um, Maggid de Mezritch, para quem o universo só era entendível a partir dos métodos educativos de Deus.


Maggid ensinava, mas nunca revelava quais dos seus discípulos interpretara correctamente o que dele ouvira. A missão dele era tão só acender velas na consciência do discípulo.
A pedagogia de Maggid era marcada pelo êxtase ascético. E, como é da tradição dos maiores mestres, não escreveu nenhum livro. Só autorizou que alguém lhe fosse anotando as palavras. A obra deste mestre reside não em livros e manuais mas no material humano vivo que foram os discípulos que o ouviram.
Maggid teve um filho, o rabino Abraham, outro grande mestre cabalista que ultrapassou o pai no elitismo pedagógico. Teve apenas um discípulo. No entender dele, a revelação de uma experiência interna pelo ensino era o mais indigno, era descer ao nível mais baixo para um mestre cabalista.


O rabino Nachmann ensinou na Palestina em 1798. Na opinião dele, cabia ao mestre escutar do discípulo as mais secretas intuições. Acreditava no milagre da ressonância. Uma frase: a alegria fornece ao espírito uma morada fixa; a tristeza leva-a ao exílio.
Ah, o Oriente dá cartas de pedagogia. A luz. As revelações ocultas. As técnicas de purificação, de meditação, que elevam ao transcendente. Ah… os gurus (aliás, inventados por hindus e sikh’s). As passagens para a India dos grandes espíritos do Ocidente (e segundo alguns do próprio Jesus Cristo).
Zen. Taoismo. Confucionismo. Budismo. Nirvanas. Yogas. Acumpuncturas. Ascetismos …


O mestre murmurara apenas duas palavras quando o discípulo adormeceu e começou a ressonar. O mestre ficou encantado – “o corpo do meu discípulo parece madeira morta, o coração ele é como cinza fria. Agora atingiu o conhecimento verdadeiro. Agora sim, libertou-se de todo o conhecimento adquirido. Não tem mais pensamentos. Já não preciso discutir com ele”crónica de um mestre confucionista.
Outras histórias e outros mestres.
Koun Ejo, mestre zen, fala ao discípulo, depois de lhe aperfeiçoar algumas técnicas de auto aniquilação: mesmo que dentro de ti surjam e desapareçam 84.000 pensamentos ilusórios, se não lhes deres importância e os deixares estar poderá nascer em cada um deles o maravilhoso prodígio da luz da grande sabedoria.


E ainda: aprender e pensar é ficar à porta. Assumir a posição do lótus é voltar para casa e sentar-se em paz.
Despertar – ensinamento chave do zen: a criança dorme ao lado dos pais; sonha que foi espancada; seja qual for a angústia da criança os pais não lhe podem valer, porque ninguém pode entrar nos sonhos de outra pessoa. Mas se a criança acordar sozinha ficará livre do seu sofrimento.


Ikkyu Sojun disse: a caminho com as minhas sandálias e o meu bastão procuro os burros cegos que podem andar em busca da verdade.
Não sente o caro eventual leitor o fascínio estranho e musical de cada uma destas frases orientais?


Pois é. Na mística japonesa o discípulo terá de passar por desconsiderações, humilhações e rejeições primeiro que um mestre o aceite. Seguirá o mestre aos mais distantes ermitérios, às mais altas montanhas, e esperará anos, antes que o mestre lhe reconheça a presença.
É só depois de ascender ao abstracto, ao Nada profundo, que o discípulo inicia o caminho de uma solidão de vários anos, preparando-se para transmitir os próprios ensinamentos.

O vazio perfeito.