domingo, 21 de dezembro de 2014

             OS QUE CHEGARAM ANTES DE 
             SÓCRATES, OU SUBSÍDIO PARA     
          UMA REABILITAÇÃO FILOSÓFICA     
                      DE  LILI CANEÇAS


Um momento que já chegamos à Lili Caneças.

                                                                                

Primeiro temos que saber de uma primeira tentativa de desmitologização do pensamento. Ficou a dever-se a Xenófanes.


Que os homens caricaturavam os deuses e os concebiam antropomorficamente, atribuindo-lhes tudo o que entre os homens é pouca-vergonha. E ainda muito judiciosamente nota Xenófanes: os etíopes representam os seus deuses negros e de nariz achatado; os trácios dizem que os seus deuses têm olhos azuis e cabelos ruivos. Mas se os bois e os cavalos tivessem mãos e com elas pintassem, pintariam as formas dos deuses semelhantes às dos cavalos e dos bois, fariam os corpos dos deuses segundo a sua própria espécie.                                                                                   
                                                            

Xenófanes foi o chefe da escola eleática, ou seita eleática. Xenófanes é o pensador da unidade, o Todo, segundo a opinião de Platão. Xenófanes sobrepõe o saber à aparência. Os deuses possuiriam, eles sim, o verdadeiro saber; aos homens não restava mais do que a conjectura. E Xenófanes riu-se de Pitágoras. E Heraclito considerava Xenófanes um erudito pouco inteligente.


Mas é Parménides o fundador da doutrina eleática e com ela a ideia da unicidade do Ser.   


                                           

Platão afiançava para quem o quisesse ouvir que Parménides, já rapaz para os seus 65 anos, tinha ido pelo braço de Zenão passar uma temporada a Atenas, por volta do ano de 450, e que por acaso se chegara a encontrar com um jovem chamado Sócrates que andaria a tirar um curso qualquer. Não se sabe se é verdade. Não se sabe que curso. Não se sabe se chegou mesmo a tirá-lo.

                 

Não, não é a respeito desse curso de Sócrates. O que não se sabe se é verdade é que Parménides tivesse estado em Atenas e com o tal Sócrates se tivesse avistado. Ou então a prova de que se avistou ainda hoje faz parte do processo e deve estar em segredo de justiça, porque só Sócrates saberia onde estava em 450 antes de Cristo. E talvez já nem se lembre da cara de Parménides.



Se Xenófanes se riu das bacoradas de Pitágoras, a Parménides tocou gozar à parva com os ditos de Heraclito – isto de intelectuais, estamos conversados, são todos o mesmo por toda a parte e em todo o tempo… ainda um dia gostava de saber porque é que me tornei intelectual…
As águas que me transportam levaram-me tão longe quanto o meu coração poderia desejar. Sim, pois claro, a obra máxima de Parménides é um poema. As águas que o tinham transportado puseram-no na rota da deusa que dirige o homem que sabe através de todas as coisas. O carro de Parménides era guiado por donzelas e franqueou as portas do Dia e da Noite e ele apresentou-se à divindade que lhe deu as boas-vindas…
        Lindo.


Qual Lili Caneças da escola dos eleatas, Parménides arranca para a celebridade com o axioma sobre o Ser. Disse ele: o Ser é, e o Não-Ser não é. E por aqui poderia ter início uma campanha de reabilitação filosófica do pensamento de Lili Caneças, que tão gozada foi aqui há tempos quando disse, se não estou em erro, e com verdade irrefutável, que morrer era o contrário de estar vivo – e portanto que o viver é o estar vivo, e o morrer é o estar morto. E ninguém a levou a sério só porque mora aqui perto, na linha, e não se assenta à miserável e mediterrânica mesa de um destes filósofos de pé descalço que não tinham onde cair mortos, que não tinham empresas de construção civil e só por isso não eram convidados para as mesmas festas…


O Ser, sendo o que é – agora já não é Lili Caneças a falar (mas podia até ser), agora é o Parménides – o Ser, sendo o que é, não pode ser negado. Nem mesmo em parte. E sem recurso ao movimento, à mudança.
O Ser é. É, não sendo engendrado. É imperecível. Não tem um fim. Nunca era, ou será, porque é, agora, e por inteiro, uno e contínuo e contíguo a si mesmo. Indivisível. Imóvel. Fixo. Sem falhas. Concluído por todos os lados, como a curvatura de uma esfera e com raios iguais a partir do centro. O Ser nada sabe do que seja dispersão, ou reunião. Ignora o tempo. Nada tem a ver com o espaço.

                                                          

Para Parménides a eternidade não relevava de uma duração temporal. A eternidade era, muito simplesmente, a negação da existência do próprio tempo.
Por mais chata que esta conversa seja, às vezes é bom lembrar algumas coisas que o tempo globalizado e economicizado faz por esquecer nas circulares ruínas da contemporânea memória humana (e portuguesa, ainda para mais). E umas filosofadas de vez em quando mal também não fazem. E até porque nos recordam uma faculdade do ser humano para além do comer, do beber, do cheirar pó, do navegar na Internet, do rir alarvemente, do abanar o capacete, do conduzir com os copos a 200 à hora, do gritar pelo fêcêpê (FCP) ou pelo éssélebê (SLB)… antigamente havia outro por quem se costumava gritar… ai como era…
Em suma, umas filosofadas recordam-nos a faculdade que o ser humano também tem e que nas últimas e gloriosas décadas da economia global tão posta tem sido pelas ruas da amargura, e que é a tal faculdade de pensar uns centímetros para além do próprio umbigo o da própria ambição de ser rico…


O Não Ser não É e acabou-se a conversa. Lili Caneças poderia ter dito esta com originalidade se o estúpido do tal Parménides não se tivesse antecipado. O Não Ser não É.
E será possível conhecer o que não É? Será possível dar um nome ao que não É? Só se pode nomear o que É, o Ser, e esse é um princípio identitário de onde não se pode sair. Então e o erro?, perguntará mais tarde, sofisticamente, Platão.
Levando a ideia de Parménides à risca, o erro nunca poderia ser afirmado. O erro seria um Não-Ser – quer dizer então que o Ser nunca pode estar errado?, pergunta o meu deficiente espírito filosófico. Mas adiante. Se o erro é um Não Ser e o Não Ser não pode ser nomeado, ergo, o erro nunca poderá ser declarado. E por aqui se detectam as divergências de Parménides e dos eleatas com o heraclitismo. O Ser por um lado, o Devir por outro. Duas concepções do mundo e do Homem que se tentou harmonizar falando de um Devir no âmago do próprio Ser. Ou o contrário.


A divindade diante à qual Parménides foi presente olha muito séria para ele e diz-lhe: presta atenção no que te digo, rapaz, e guarda-o em ti mesmo. Há só duas vias de procura. Lembras-te da Lili Caneças? Ora ainda bem. A primeira, lá vai: o Ser é, e é impossível para ele não ser; o Ser é a via em que se pode confiar porque segue apenas a Verdade. A segunda é que o Ser não é, e que o Não Ser é necessário, e esta, digo-te francamente, filho, é a via onde nunca encontrarás seja o que for em que possas confiar.
Parménides escusava-se então de pensar o Não Ser. Não se devia nem ao menos pensar no que Não Era. Mas uma data de séculos mais tarde aparece um homem chamado Martin Heidegger para afirmar que Parménides pensava o Não Ser, ainda que declarando não o fazer – o que era um problema levado de seiscentos diabos. Parménides, para Heidegger, pensava o Não Ser, e mais, até o elevava ao nível de um conhecimento… e eu por acaso até acho bem…

                                                                                     

Para Heidegger, tanto a via do Ser como a via do Nada devem ser pensadas – também acho -, porque ao dizer-se do Nada que não é nada arriscamo-nos a ignorar eternamente tudo acerca do Ser. É assim mesmo.
Aprende a partir daqui o que os mortais têm em vista – a divindade a falar ao Parménides. E toma atenção, miúdo, anda cá… toma atenção à ordem enganadora das minhas palavras. Anda cá, rapaz, não te vás embora, anda cá… os mortais têm confiado na nomeação de duas formas, uma das quais nem deveriam nomear, e é aqui, percebes, é aqui que eles se afastam da verdade. Julgaram essas formas opostas e deram-lhes sinais diferentes, e é por isso que pensam, raios os partissem, que todas as coisas estão cheias ao mesmo tempo de luz e de treva.  
E aqui aparece a terceira via entre um Ser e um Não Ser: a opinião. Que não é via nem para o Ser nem para o Não Ser. Para alguns seria a via do erro, mais próxima do Não Ser do que do Ser.
Haveria portanto uma doutrina da verdade e uma doutrina da opinião. A alétheia e a doxa. E aqui está como os sapientes que vieram antes de Sócrates já previam o que aconteceria no tempo de Sócrates – é inocente?, é culpado?


Também alguns exegetas do eleatismo de Parménides pretenderam que a opinião fosse resultante de uma queda original. E daqui os erros das representações humanas. Erros evitáveis se pudéssemos contemplar unicamente a verdade. Pois era…


Mas haverá, minhas senhoras e meus senhores, uma necessidade de relação entre verdade e opinião. Haverá? Consta que sim. E lá vem outra vez o antipático Heidegger. Para Heidegger a terceira via seria a do aparecer – Ser, Não Ser e Aparecer – e essa seria a via dos pontos de vista, e considerando-a como pertencente à via do Ser. E o homem que na verdade sabe percorrerá as três vias, o Ser, o Não Ser e o Aparecer.


A Aparência. E cá temos de novo a querida LIli Caneças, a que ainda não se cansou de aparecer. Nas festas. Nas viagens. Na CARAS. Aparecer, ou seja, aparentar. Aparentar o quê? Juventude. Charme. Sedução. Fortuna.


Aparência. Como se os homens tivessem duas cabeças, uma para ver o Ser e outra para aperceber o Não Ser, errando, diz o filósofo, por aqui e por ali como estultos insensatos, sem poderem ver claro coisíssima nenhuma – como, repito, antes de Sócrates, eles já compreendiam o que se passaria no tempo de Sócrates…
Parménides aspirava a afastar o Homem do conhecimento sensível, tirar-lhe o vício de se deixar dominar pelo olhar, pelos ouvidos, pelas palavras. O Homem deveria ajuizar com a razão e com a razão percepcionar as coisas distantes como se estas estivessem mesmo diante dos seus olhos. Isso é que era bom. Que teria sido do Sócrates, e dos que vieram antes e depois dele, se os homens tivessem seguido o ensino do Parménides?
Pode parecer esquisito nos dias que vivemos, mas o certo é que não se pode pensar sem pensar alguma coisa. O pensar coisa nenhuma é um não-pensar, como o dizer coisa nenhuma é um não-dizer.

                                                                           
         
O Cristianismo. Não sei se digo uma baboseira, mas ao ler, mesmo por alto, as concepções destes pensadores que reflectiram sobre tanta coisa antes de Sócrates o ter feito, sente-se (eu pelo menos sinto) no pensar deles uma força que foi primórdio e inspiração de esquemas de raciocínio muito posteriores e que, devidamente adaptados ao fim em vista, nos vieram a ser transmitidos como doutrina cristã. Ou sentimos hoje a doutrina cristã como uma ressonância, aqui e ali mais ou menos presente, dos pensamentos pré-socráticos.


E claro que os pensadores cristãos e os doutores da Igreja, os clementes de Alexandria e tantos outros, estudaram em profundidade os sábios mais antigos e neles beberam alguns elementos estruturantes da sua doutrina. Heidegger, por falar nisso, acusa os pensadores cristãos de terem deformado o pensar de Parménides. Heidegger não concorda em que o Ser não seja mais do que acto de pensar.



O reino abrir-se-ia e se desenvolveria na luz, e assim o Ser seria o Aparecer, a manifestação – lá está a Lili Caneças a aparecer, a manifestar-se constantemente na CARAS. O conhecer deveria traduzir-se por um entender. Ou até por um atender, um ouvir, permitir a palavra, o testemunho. Entendimento daquele que concorda; atendimento daquele que ouve. Trazer ao Ser o que aparece. E detê-lo. Acho isto muito bonito, que é que querem? A Lili Caneças a aparecer em cada festa e a ser trazida ao Ser…


O entendimento e a razão de ser do entendimento são a mesma coisa  - disse Parménides. E disse mais: deve Ser o que pode ser pensado e de que se possa falar. Ou: é necessário que um pensamento e uma expressão sejam.
E tocamos o território do existencialismo. Com Heidegger. A essência do Homem seria afinal a sua existência. Enquanto o francês Ettiène Gilson diria que a doutrina de Parménides concluía pela oposição Ser/Existir, O que É não existe. Ou então, o que existe não É, se dermos existência a um devir do mundo sensível. Lili Caneças nunca iria tão longe, tenho a certeza…

                                                                              

Antes de chegarmos a outra estrela maior do firmamento das ideias, daquelas que vieram antes de Sócrates, Empédocles, consideremos outro grande actor da escola eleática: Zenão. E disse Bergson: a metafísica data do dia em que Zenão de Elea notou as contradições relativas ao movimento e à mudança tais como a nossa inteligência as representa – um bom assunto de meditação para Sócrates, depois do mestrado em Paris, e agora que ele não tem muito que fazer.


Zenão era mesmo de Elea. Nascido talvez em 489. Foi político e lutou contra a tirania. Entre outras coisas, produziu uma interpretação de Empédocles. Zenão, para Aristóteles, teria sido o pai da dialéctica. Porque apanhava uma das essenciais hipóteses da tese do seu adversário e alargava-se por ela, tirando dela conclusões contraditórias.
A celebridade de Zenão foi consagrada pelo que se chama de aporias. As aporias de Zenão. Aporia que, grosseiramente falando, se pode dizer uma figura de retórica pela qual o orador parecia hesitar sem conseguir uma conclusão, uma espécie de pensamento circular.
Zenão criticava os pitagóricos nas suas convicções acerca do Múltiplo. A teoria pluralista não servia para demonstrar o movimento
Eram quatro as aporias de Zenão. Já agora que estamos a falar nele…
Dicotomia. Aristóteles expõe o problema. A impossibilidade do movimento. Um móvel transportado deverá primeiro atingir a metade do espaço antes de atingir o seu fim. Nem é bom pensar ou especular sobre o movimento, porque o movimentado terá de atingir o meio de um dado percurso, a seguir o meio do percurso que falta, e ainda o meio do percurso que ainda falta, e assim até ao infinito. Aproximar-se-á do fim, mas nunca o poderá atingir.
        É muito para mim…
Aquiles. Aquiles (o veloz) e a tartaruga (a vagarosa). O mais lento a correr nunca será alcançado pelo mais rápido – ora aqui está um argumento que bem podia ser usado pelo Comité Olímpico Português para transformar os nossos corredores em vencedores pré-socráticos…


Bem, o perseguidor deve começar por atingir o ponto de onde o fugitivo partiu, e daqui o avanço do mais lento. Organizando uma corrida entre o fulminante Aquiles e a pachorrenta tartaruga e concedendo a Aquiles uma breve desvantagem, quando ele chegou ao ponto onde estava a tartaruga ao partir, o ponto T, já a tartaruga lá não está, já estará em T 1; e quando Aquiles chegar a T1 já a tartaruga irá em T2. E Aquiles não só nunca poderá ultrapassar a tartaruga como nem sequer a alcançará. Só se aproximará dela. Até ao infinito.
(A chatice é que isto é tudo a pensar no infinito…)
E veio séculos muitos depois Henri Bergson criticar o bom do Zenão e descobrir-lhe a careca do erro. O erro foi acreditar que uma corrida de A a B seja composta por uma soma de corridas sucessivas. Zenão estaria certo se, quando Aquiles está no ponto em que estava a tartaruga na partida anterior, fizessem parar os corredores, dando seguidamente a partida para uma outra corrida. E não me perguntem mais nada a respeito desta aporia…
                                                                                   

E vem agora a seta. Quando atirada, a seta está em estado de paragem, em repouso. Uma coisa só pode estar em repouso quando ocupa um espaço igual ao seu volume. E se depois de atirada a sete continua a ocupar um espaço igual ao seu volume é porque está em repouso, nunca chegará a nenhum alvo.
(Não, esta não.)

                                                                                


Ah, cruel Zenão de Elea, tu me varaste com essa seta alada que vibra, que voa e que não voa, é o silvo que me cria e é a seta que me mata – escreveu Paul Valéry num poema de Le Cimetière Marin.
O estádio. Duas multidões iguais, em velocidades iguais, devem percorrer espaços iguais em tempos iguais, movendo-se ao encontro uma da outra a partir das extremidades do estádio. E se duas multidões se movem assim, cada uma gasta para correr o comprimento da outra metade do tempo que gastara se uma delas estivesse parada, porque, para Zenão, a metade do tempo é igual ao seu dobro.


E não, não me perguntem mais nada, porque isto, devo confessar, é mesmo muito para a minha inteligência, ou como diz a sabedoria do povo: é muita areia para a minha camioneta.
O espaço e o tempo são norma de pluralidade das coisas e de mudança, e se eles se apresentam contraditórios revelam apenas que a mudança e a multiplicidade são contraditórias. Quer dizer: irreais.
Sempre me tinha palpitado qualquer coisa do género…

               



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