terça-feira, 30 de dezembro de 2014

        OS QUE CHEGARAM ANTES DE SÓCRATES,  
         OU O MAGO DAS SANDÁLIAS DE BRONZE


Nessa época fui menino e menina, arbusto, pássaro e silencioso peixe do mar.


Nunca se sabe se foi deste poema de Empédocles de Agrigento que derivou aqui em Lisboa, aí pelos anos 50, a designação de peixinho do mar para todo o macho que exibisse tiques efeminados.
De que honras, de que alturas de felicidade eu caí para errar sobre a terra entre os mortais?


Foi por dizer destas que Empédocles criou nos seus conterrâneos a fama de ser meio homem meio deus. E dos que chegaram e pensaram antes de Sócrates é Empédocles aquele de quem se conservaram melhor e mais abundantemente os textos.


Mas sabe-se, ou julga saber-se, que Empédocles nasceu como homem na bela cidade de Agrigento em 490 A.C., e de um pai chamado Metão que fazia parte do governo da cidade.
Eu caminho entre vós como um deus imortal e não mais como um mortal, cumulado por todos de honrarias, como convém, e coroado de fitas e de coroas floridas.
Oh, como devia ser precioso e inefável este Empédocles. E pela descrição de si mesmo uma espécie de hippie avant la lettre. E também lhe chamaram Mago, Mago possuído pelo deus…


E vós, ó deuses, desviai da minha língua a loucura destes homens e fazei brotar dos meus lábios santificados uma nascente pura…
E tu, deusa de numerosos pretendentes, virgem de braços brancos, invoco-te. Dá-me o saber que as divinas leis permitem entender às efémeras criaturas, conduzindo um carro dócil vindo do reino da Piedade.
É tão estranho isto.
Dá-me o saber que as divinas leis permitem.


É estranho tomar conhecimento de quanto noutras eras o saber, a sabedoria, o conhecimento, eram anseios poderosos de tanta gente, eram meios de obtenção de prazer próprio e condição de ascensão na vida da cidade, e como no tempo desgraçado que vivemos, o tempo de Sócrates (ou do pós-Sócrates), o saber não é mais do que uma chumbada, quando os doutores que proliferam desprezam o saber e anseiam pela aparência dele em forma de diploma ou certificado de habilitações, e em que o saber e o respectivo sabedor chegam a ser desprezados como chatos insuportáveis e evitada a sua companhia, e só porque ela pode pôr em relevo a ignorância circundante dos que com ele poderiam conviver, e não convivem porque estamos no tempo que se pretende como novo, e em que tudo o que é velho, incluindo o saber, é para ser esquecido depressa e para evitar, como se nunca tivesse existido nem nunca pudesse tornar a existir…


É verdade, conheço directores disto e daquilo para quem um subalterno com o equivalente à antiga 4ª classe já é uma ameaça.
Todos os remédios que existem para te defenderes da doença e da velhice tu os aprenderás, porque só para ti quero realizar tudo isso. Tu amainarás o furor dos ventos infatigáveis que se precipitam sobre a terra e em trombas de água devastam os campos, e de novo, a teu gosto trarás de volta a brisa benfazeja.


Pelo que nos diz o Prof. George Steiner, estes sábios dos tempos de antanho, com toda a razão anteriores a Sócrates (oh, muito, mesmo muito anteriores), eram, ou podiam ser, pregadores itinerantes e personagens enigmáticas. Empédocles, como outros, expunha a sua filosofia em versos, e porque não havia tão grande distinção entre o filósofo e o rapsodo, entre a pedagogia e a arte, e os tratados dos mestres pensadores podiam ser apresentados ao povo – e aos discípulos – em forma de declamação e de canto.


A mística do mestre e do aluno chegou-nos muito pelo que se conhece das hagiografias de Pitágoras e de Empédocles.


No tempo do Mago Empédocles as teorias do pitagorismo e do heraclitismo pululavam pela Sicília e incendiavam as mentes. Empédocles, crê-se, terá chegado à fala com Parménides e com Ésquilo.


         E havia as grandes correntes do misticismo de Dionisos. E por toda a terra da Sicília deambulavam os místicos errantes que exorcizavam os doentes, pregavam como oráculos e recitavam purificações. E era este o ambiente cultural em que Empédocles se movimentava e em função do qual se deu à composição da sua personagem, a meio caminho entre o mago taumaturgo, o rapsodo-cantor e o profeta.


Eis mais um excerto de uma das suas purificações: Após as sombrias chuvas criarás uma seca propícia. Para os homens, e de novo, após a estiagem do verão, trarás as chuvas que alimentam as árvores e caem do céu. E reconduzirás do Hades a alma de um homem já morto.


Empédocles reclamava-se do poder de curar e de ensinar aos homens o caminho da fortuna. A verdade só provém da divindade, que faz dele somente o seu intermediário, vagabundo exilado dos deuses, porque, diz, não se pode trazer o deus ao alcance dos nossos olhos nem com as mãos o agarrar; esses são os meios pelos quais a persuasão penetra no espírito dos homens.
O saber de Empédocles não é senão conclusão das reencarnações sucessivas de que foi objecto. Também ele está no número dos condenados à errância por anos e anos. E foi no decurso das transmigrações que adquiriu o conhecimento completo do ciclo dos seres. E por isso também ele (como Pitágoras) recorda as vidas anteriores.


Nessa época fui menino e menina, arbusto, pássaro e silencioso peixe do mar.
Empédocles reclama-se de ter vivido no âmago da mistura de onde nascem as coisas e o próprio Homem. E nessas andanças foi capaz de incorporar o segredo da multidão de forças que ora criam os elementos ora os destroem. Era senhor de poderes sobrenaturais, dizia-se. Arrogava-se a faculdade de poder dar ordens à própria morte.
Indo no plano prático e objectivo, parece certo ter havido na região algumas manifestações do poder de Empédocles. Diagnosticou a proveniência de uma epidemia de peste que infectou a cidade de Selinone: as insalubres emanações de uma água de nascente próxima. Como era homem que tinha de seu, chegou a pagar do próprio bolso os trabalhos de desvio do curso de rios com vista à purificação das correntes. E por ser assim os habitantes da cidade contribuíram para a fama dele: meio homem meio deus.


O clima mesmo da sua cidade, Agrigento, diz-se que ele o conseguiu modificar – na volta ainda é o nosso Empédocles, numa das suas transmigrações, que anda a tramar o clima destes nossos dias de Sócrates, pós-Sócrates. Pois bem, Empédocles mudou o clima de Agrigento mandando dispor peles de burro na passagem estreita por onde entravam os ventos etésios que ameaçavam as colheitas.
E foi também na medicina que o mago de Agrigento exerceu as suas faculdades. Uma mulher que havia um mês não respirava foi ressuscitada por ele. Como? Descobrindo um ponto de calor à flor da pele e percebendo que estava a lidar com uma histérica.


Pela música apaziguava ele as paixões.
Um dia apareceu-lhe pela proa um jovem a acusá-lo de ter condenado o pai à morte, e ele não fez mais nada, começou a cantar-lhe uns versos da Odisseia, uma espécie de canção do bandido que fala de uma droga, o nepentés, que acalma e dulcifica a cólera e cura a maior parte das maleitas.
Porque, enfim, o Ser é a permanência – na visão de Empédocles. O caminho da verdade é o que conduz ao Ser e do Ser não há devir. Uma esfera. Sfaïros – a esfera imóvel contínua e contígua a si mesma, que para Parménides era o Ser. 


Sfaïros que Heraclito pusera em aparente movimento, um movimento que não lhe permite sair de si, porque no coração do Ser habita o Logos que dá o Sentido das coisas e dos seres. E Empédocles toma essa noção da esfera do Ser, Sfaïros, e diz que dela nada ainda divergiu porque é espírito sagrado, luz pura e ignara das sombras do Ódio que provoca as divisões.
Fixo no espesso invólucro da harmonia, o Sfaïros é alegre em sua revolução solitária. Não há discórdia nem luta entre os seus membros. É igual em todos os sentidos e semelhante a si própria e sem limites.
Sfaïros circular e alegre porque não se veem dois ramos soltarem-se do seu dorso. Não tem pés nem joelhos ágeis nem órgãos genitais. É esférico em todos os sentidos. Igual a si próprio.


Ao Ser divino e inacessível aos homens nada seria exterior. Não conhece a paixão, ignora o combate e o Múltiplo. Apenas… É.
Havia, segundo Empédocles, um paraíso, doravante perdido. Havia uma idade do ouro primitiva onde a inocência reinava. Mas de lá os homens foram arremessados sobre a terra e aí sim, ficaram entregues à luta dos contrários.
Só os piedosos voltarão para junto dos deuses para continuar a paz e a harmonia e conhecer de novo a era em que todas as criaturas eram familiares e doces, homens, aves, animais selvagens. Mas na terra o Homem é o ser exilado a expiar uma existência anterior.
Eu sou o vagabundo exilado dos deuses porque pus a minha confiança no ódio furioso. E chorei e solucei à vista desta terra insólita.


 É aborrecido, eu sei, falar disto nos tempos de hoje, quando ninguém está para se chatear por causa da cultura e do conhecimento, mas o mundo de Empédocles é uma tragédia cósmica onde lutam as duas forças que orientam os fenómenos do universo: o Amor e o Ódio. 


É o ciclo dos nascimentos e renascimentos que superintende à justiça do mundo. Há as potências que podem conduzir as almas ao mundo dos homens, dizendo: chegamos a esta caverna aberta e mundo é o lugar da infelicidade onde a morte e o ódio e os outros génios do mal e as doenças que destroem e as putrefacções e a dissolução vagueiam nas trevas pelas campinas da desgraça.
         Mas depois haverá seres privilegiados. Pitágoras. Empédocles. Esses, os que têm o poder de recordar as suas vidas anteriores e desse poder de reminiscência beber das fontes prodigiosas da sabedoria.
Porque o conhecimento não é proveniente dos sentidos nem do espírito. O conhecimento provém de uma reminiscência das vicissitudes dos elementos em sua jornada de misturas e divisões. O conhecimento é gnose. É iniciação, êxtase. Purificação.


O conhecimento mergulha nas profundezas do tempo, imune às divisões que separam e à multiplicidade que dispersa.
O Amor e o Ódio, como eram antes, assim serão, e jamais o tempo infinito será despojado deste par.
A união de todas as coisas provoca o nascimento e a destruição.
Mas como aparece o ódio se no pensamento de Empédocles não entra a ideia de criação?
Talvez o ódio, como o amor, sempre tenham existido, incriados, e como sempre haverão de existir, dado que o tempo jamais prescindirá deste par.
E poetiza Empédocles: enquanto tudo se reunia, o ódio era atirado para os extremos limites. E isto enquanto o amor se acharia no núcleo do turbilhão da unidade, atraindo tudo a si de forma a poder constituir o Uno. O pior foi quando o tempo se completou e deu voz ao ódio que estava segregado nos limites.


Quando o ódio começou a prevalecer houve movimento no Sfaïros e todos os membros do deus foram abalados.
Às vezes, sob o efeito do amor, todos os membros que o corpo possui se reúnem no Uno, no auge da vida florescente. Outras vezes, dispersos pela nociva desavença, erram por sua vez, até às mais longínquas margens da vida.
E dir-te-ei ainda outra coisa: das coisas mortais não há criação nem desaparecimento na morte funesta, mas apenas mistura e dissociação do que foi misturado.
Sim senhor, porque o conceito de criação foi atribuído pelos homens ao fenómeno das metamorfoses no interior de um ciclo.
Quando os elementos combinados surgem à luz sob a forma de um homem, ou sob a forma de qualquer outro animal ou planta, então os homens dizem que houve um nascimento. E quando os elementos se separam os homens chamam a isso morte funesta e não utilizam os termos que a justiça exige.


A teoria empedocliana das raízes das coisas. A água para Tales. O ar para Anaximandro. O fogo para Heraclito. E para Empédocles? A terra. A terra de onde saem os seres vivos e à qual regressam.
Crescem impelidos pelo calor que existe na terra como se fossem partes dela.


A respiração é, no domínio da fisiologia de Empédocles, o fenómeno capital, o acto elementar que, pelo ritmo, conserva a vida e permite a união do que somos a tudo o que nos rodeia. E onde também prevalece o tema da mistura e da luta, sangue e ar, que se perseguem mutuamente.
As diferenças individuais. E no centro delas está o desejo que empurra os seres uns para os outros, não obstante essas mesmas diferenças que os deveriam manter para sempre afastados.
A sensação. A sensação é como a respiração pela qual o que percebe se apercebe do percebido. E permite ao Homem a comunhão com o que o circunda, como nos versos seguintes de Empédocles: assim o doce se apercebe do doce e o amargo se precipita para o amargo, o ácido para o ácido e o quente para o quente. É no Homem que residem as raízes do universo, e por ser assim recebe o Homem do universo a mensagem.
Para Empédocles, o maior dos crimes era o crime de sangue. E não era por mais nada, era só por poder interromper o ciclo das reencarnações. E assim que para ele, como para Pitágoras, também fosse de proibir comer carne e oferecer sacrifícios.
Julgo que segundo uma tradição oral pouco segura, e dentro do âmbito de uma decisão política que lhe coube, Empédocles terá ordenado algumas execuções capitais dos seus inimigos, em resultado do que o povo se teria levantado contra ele, desterrando-o para o Peloponeso. No entanto, por outro lado, antes de morrer, o pai de Empédocles trabalhava numa constituição democrática para a cidade. E quando o senhor morreu os aristocráticos sublevaram-se, o que terá levado Empédocles a tomar o partido da democracia. Não ponho as mãos no fogo por nenhuma das hipóteses.


Disse-se que o quiseram fazer rei e que ele recusou. E objurgou duramente todo aquele que pretendesse obter algum privilégio social ou político. Também se diz que politicamente Empédocles era um liberal que atraía a si grande popularidade e consequentes invejas e inimizades – coisas que aconteciam até antes de Sócrates. E até ao dia em que lhe deu na veneta pôr-se a viajar.
Foi à Grécia. Em Olímpia mandou cantar, não sei se um cego, mas pelo menos um rapsodo, um tal Cleomenes. Mandou-o cantar alguns dos seus versos e purificações. Talvez tenha feito algumas compras nos elegantes centros comerciais de Atenas. Não está provado. Até ao dia em que lhe apeteceu regressar a casa, a Agrigento. Mal sabia o que o esperava.


Pois foi. Ao chegar às portas da cidade, o serviço de fronteiras proíbe-lhe a entrada. Que eram ordens, que eram ordens. Na ausência, os inimigos tinham ganho preponderância política. E Empédocles foi posto à margem e viu-se na contingência de ter que peregrinar por esse mundo, exilado dos deuses, como ele dizia, acompanhado pelo discípulo dilecto, Pausânias, que mais tarde seria médico com consultório ali na avenida…       

 
Empédocles foi uma personagem fabulosa, rodeada de lenda. A pontos de impressionar a imaginação dos românticos alemães. Hölderlin. Nietzsche. Escreveram tragédias nunca acabadas sobre ele, o filósofo das visões trágicas. Foi eleito por eles um herói romântico assoberbado por um desejo de infinito. Ou o homem agonal de Nietzsche, cirandando entre o mito, a orgia e a razão. E Schopenhauer também lhe fica devedor. E também o dramaturgo contemporâneo Gerhardt Hauptmann. E até Freud.
Mas ainda falando da obra de Nietzsche, leio que para ele Empédocles era alguém que perversamente ansiava pela ruína do seu povo – que achava medíocre e preguiçoso – e que usara o conhecimento contra a sua própria pessoa, e referindo alguns estudiosos que Nietzsche, à sombra de Empédocles, não falara na sua tragédia de mais ninguém a não ser ele próprio.
Freud, já se sabe, via na filosofia grega a fonte das suas teorias, o mundo terrível onde se debatem Eros e Thanatos, as pulsões da vida e da morte.

                    

No século IV grego instala-se em Siracusa uma escola empedocliana de medicina.
E por fim, a fabulosa morte de Empédocles.


Não se sabe de certeza como morreu. A lenda que envolve a morte de Empédocles foi da ordem poderosa que substituiu a História, ou acabou por ser adoptada pela História, como eu acho que deveria acontecer sempre, quanto mais não fosse porque a lenda, a efabulação, pode ser mais bela do que a realidade, e prescrevendo eu por minha conta que a realidade só deveria alimentar a História no caso de ser mais bela e mais trágica do que a ficção.
Há quem diga que Empédocles se afogou. Há quem diga que foi por causa de uma ferida feita num desastre com o seu carro – talvez conduzisse sob o efeito do álcool, ou da droga, não me admiraria nada.


Empédocles dá uma festa com muitos convidados. Acabada a festa, os convidados vão para debaixo das oliveiras passar pelas brasas, enquanto Empédocles fica a meditar no lugar onde estava.
A madrugada vai alta quando os convidados acordam. Vão por ele e não o encontram. Entra um criado da casa. Ai, meus ricos senhores, ouvi uma voz muito forte a chamar Empédocles… Empédocles… e ao mesmo tempo, meus ricos senhores, vi uma luz a brilhar nos céus.


Entra o discípulo amado, Pausânias. Vão em paz e não procurem mais o mestre. O mestre tornou-se um deus. O mais certo é ter sido arrebatado da terra enquanto nós dormíamos e a esta hora já foi acolhido nos céus.
E sobre esta primeira versão da morte de Empédocles se forja a outra, complementar, de fazer delirar as mentes românticas. Empédocles teria saído de casa acompanhado por Pausânias, teria subido ao monte Etna, ter-se-ia despedido do discípulo amado e ter-lhe-ia pedido que o deixasse só no alto do monte para se precipitar em seguida para a cratera do vulcão, porque achara por bem purificar-se pelo fogo, mergulhar no centro da terra, tornar ao ciclo dos seres. E a prova de tais casos terá sido uma sandália de bronze de Empédocles que o Etna teria expelido dias depois para o exterior.


E não sei que mais possa dizer acerca dos que chegaram antes de Sócrates.
Porque no meio disto tudo chegou Sócrates.


domingo, 21 de dezembro de 2014

             OS QUE CHEGARAM ANTES DE 
             SÓCRATES, OU SUBSÍDIO PARA     
          UMA REABILITAÇÃO FILOSÓFICA     
                      DE  LILI CANEÇAS


Um momento que já chegamos à Lili Caneças.

                                                                                

Primeiro temos que saber de uma primeira tentativa de desmitologização do pensamento. Ficou a dever-se a Xenófanes.


Que os homens caricaturavam os deuses e os concebiam antropomorficamente, atribuindo-lhes tudo o que entre os homens é pouca-vergonha. E ainda muito judiciosamente nota Xenófanes: os etíopes representam os seus deuses negros e de nariz achatado; os trácios dizem que os seus deuses têm olhos azuis e cabelos ruivos. Mas se os bois e os cavalos tivessem mãos e com elas pintassem, pintariam as formas dos deuses semelhantes às dos cavalos e dos bois, fariam os corpos dos deuses segundo a sua própria espécie.                                                                                   
                                                            

Xenófanes foi o chefe da escola eleática, ou seita eleática. Xenófanes é o pensador da unidade, o Todo, segundo a opinião de Platão. Xenófanes sobrepõe o saber à aparência. Os deuses possuiriam, eles sim, o verdadeiro saber; aos homens não restava mais do que a conjectura. E Xenófanes riu-se de Pitágoras. E Heraclito considerava Xenófanes um erudito pouco inteligente.


Mas é Parménides o fundador da doutrina eleática e com ela a ideia da unicidade do Ser.   


                                           

Platão afiançava para quem o quisesse ouvir que Parménides, já rapaz para os seus 65 anos, tinha ido pelo braço de Zenão passar uma temporada a Atenas, por volta do ano de 450, e que por acaso se chegara a encontrar com um jovem chamado Sócrates que andaria a tirar um curso qualquer. Não se sabe se é verdade. Não se sabe que curso. Não se sabe se chegou mesmo a tirá-lo.

                 

Não, não é a respeito desse curso de Sócrates. O que não se sabe se é verdade é que Parménides tivesse estado em Atenas e com o tal Sócrates se tivesse avistado. Ou então a prova de que se avistou ainda hoje faz parte do processo e deve estar em segredo de justiça, porque só Sócrates saberia onde estava em 450 antes de Cristo. E talvez já nem se lembre da cara de Parménides.



Se Xenófanes se riu das bacoradas de Pitágoras, a Parménides tocou gozar à parva com os ditos de Heraclito – isto de intelectuais, estamos conversados, são todos o mesmo por toda a parte e em todo o tempo… ainda um dia gostava de saber porque é que me tornei intelectual…
As águas que me transportam levaram-me tão longe quanto o meu coração poderia desejar. Sim, pois claro, a obra máxima de Parménides é um poema. As águas que o tinham transportado puseram-no na rota da deusa que dirige o homem que sabe através de todas as coisas. O carro de Parménides era guiado por donzelas e franqueou as portas do Dia e da Noite e ele apresentou-se à divindade que lhe deu as boas-vindas…
        Lindo.


Qual Lili Caneças da escola dos eleatas, Parménides arranca para a celebridade com o axioma sobre o Ser. Disse ele: o Ser é, e o Não-Ser não é. E por aqui poderia ter início uma campanha de reabilitação filosófica do pensamento de Lili Caneças, que tão gozada foi aqui há tempos quando disse, se não estou em erro, e com verdade irrefutável, que morrer era o contrário de estar vivo – e portanto que o viver é o estar vivo, e o morrer é o estar morto. E ninguém a levou a sério só porque mora aqui perto, na linha, e não se assenta à miserável e mediterrânica mesa de um destes filósofos de pé descalço que não tinham onde cair mortos, que não tinham empresas de construção civil e só por isso não eram convidados para as mesmas festas…


O Ser, sendo o que é – agora já não é Lili Caneças a falar (mas podia até ser), agora é o Parménides – o Ser, sendo o que é, não pode ser negado. Nem mesmo em parte. E sem recurso ao movimento, à mudança.
O Ser é. É, não sendo engendrado. É imperecível. Não tem um fim. Nunca era, ou será, porque é, agora, e por inteiro, uno e contínuo e contíguo a si mesmo. Indivisível. Imóvel. Fixo. Sem falhas. Concluído por todos os lados, como a curvatura de uma esfera e com raios iguais a partir do centro. O Ser nada sabe do que seja dispersão, ou reunião. Ignora o tempo. Nada tem a ver com o espaço.

                                                          

Para Parménides a eternidade não relevava de uma duração temporal. A eternidade era, muito simplesmente, a negação da existência do próprio tempo.
Por mais chata que esta conversa seja, às vezes é bom lembrar algumas coisas que o tempo globalizado e economicizado faz por esquecer nas circulares ruínas da contemporânea memória humana (e portuguesa, ainda para mais). E umas filosofadas de vez em quando mal também não fazem. E até porque nos recordam uma faculdade do ser humano para além do comer, do beber, do cheirar pó, do navegar na Internet, do rir alarvemente, do abanar o capacete, do conduzir com os copos a 200 à hora, do gritar pelo fêcêpê (FCP) ou pelo éssélebê (SLB)… antigamente havia outro por quem se costumava gritar… ai como era…
Em suma, umas filosofadas recordam-nos a faculdade que o ser humano também tem e que nas últimas e gloriosas décadas da economia global tão posta tem sido pelas ruas da amargura, e que é a tal faculdade de pensar uns centímetros para além do próprio umbigo o da própria ambição de ser rico…


O Não Ser não É e acabou-se a conversa. Lili Caneças poderia ter dito esta com originalidade se o estúpido do tal Parménides não se tivesse antecipado. O Não Ser não É.
E será possível conhecer o que não É? Será possível dar um nome ao que não É? Só se pode nomear o que É, o Ser, e esse é um princípio identitário de onde não se pode sair. Então e o erro?, perguntará mais tarde, sofisticamente, Platão.
Levando a ideia de Parménides à risca, o erro nunca poderia ser afirmado. O erro seria um Não-Ser – quer dizer então que o Ser nunca pode estar errado?, pergunta o meu deficiente espírito filosófico. Mas adiante. Se o erro é um Não Ser e o Não Ser não pode ser nomeado, ergo, o erro nunca poderá ser declarado. E por aqui se detectam as divergências de Parménides e dos eleatas com o heraclitismo. O Ser por um lado, o Devir por outro. Duas concepções do mundo e do Homem que se tentou harmonizar falando de um Devir no âmago do próprio Ser. Ou o contrário.


A divindade diante à qual Parménides foi presente olha muito séria para ele e diz-lhe: presta atenção no que te digo, rapaz, e guarda-o em ti mesmo. Há só duas vias de procura. Lembras-te da Lili Caneças? Ora ainda bem. A primeira, lá vai: o Ser é, e é impossível para ele não ser; o Ser é a via em que se pode confiar porque segue apenas a Verdade. A segunda é que o Ser não é, e que o Não Ser é necessário, e esta, digo-te francamente, filho, é a via onde nunca encontrarás seja o que for em que possas confiar.
Parménides escusava-se então de pensar o Não Ser. Não se devia nem ao menos pensar no que Não Era. Mas uma data de séculos mais tarde aparece um homem chamado Martin Heidegger para afirmar que Parménides pensava o Não Ser, ainda que declarando não o fazer – o que era um problema levado de seiscentos diabos. Parménides, para Heidegger, pensava o Não Ser, e mais, até o elevava ao nível de um conhecimento… e eu por acaso até acho bem…

                                                                                     

Para Heidegger, tanto a via do Ser como a via do Nada devem ser pensadas – também acho -, porque ao dizer-se do Nada que não é nada arriscamo-nos a ignorar eternamente tudo acerca do Ser. É assim mesmo.
Aprende a partir daqui o que os mortais têm em vista – a divindade a falar ao Parménides. E toma atenção, miúdo, anda cá… toma atenção à ordem enganadora das minhas palavras. Anda cá, rapaz, não te vás embora, anda cá… os mortais têm confiado na nomeação de duas formas, uma das quais nem deveriam nomear, e é aqui, percebes, é aqui que eles se afastam da verdade. Julgaram essas formas opostas e deram-lhes sinais diferentes, e é por isso que pensam, raios os partissem, que todas as coisas estão cheias ao mesmo tempo de luz e de treva.  
E aqui aparece a terceira via entre um Ser e um Não Ser: a opinião. Que não é via nem para o Ser nem para o Não Ser. Para alguns seria a via do erro, mais próxima do Não Ser do que do Ser.
Haveria portanto uma doutrina da verdade e uma doutrina da opinião. A alétheia e a doxa. E aqui está como os sapientes que vieram antes de Sócrates já previam o que aconteceria no tempo de Sócrates – é inocente?, é culpado?


Também alguns exegetas do eleatismo de Parménides pretenderam que a opinião fosse resultante de uma queda original. E daqui os erros das representações humanas. Erros evitáveis se pudéssemos contemplar unicamente a verdade. Pois era…


Mas haverá, minhas senhoras e meus senhores, uma necessidade de relação entre verdade e opinião. Haverá? Consta que sim. E lá vem outra vez o antipático Heidegger. Para Heidegger a terceira via seria a do aparecer – Ser, Não Ser e Aparecer – e essa seria a via dos pontos de vista, e considerando-a como pertencente à via do Ser. E o homem que na verdade sabe percorrerá as três vias, o Ser, o Não Ser e o Aparecer.


A Aparência. E cá temos de novo a querida LIli Caneças, a que ainda não se cansou de aparecer. Nas festas. Nas viagens. Na CARAS. Aparecer, ou seja, aparentar. Aparentar o quê? Juventude. Charme. Sedução. Fortuna.


Aparência. Como se os homens tivessem duas cabeças, uma para ver o Ser e outra para aperceber o Não Ser, errando, diz o filósofo, por aqui e por ali como estultos insensatos, sem poderem ver claro coisíssima nenhuma – como, repito, antes de Sócrates, eles já compreendiam o que se passaria no tempo de Sócrates…
Parménides aspirava a afastar o Homem do conhecimento sensível, tirar-lhe o vício de se deixar dominar pelo olhar, pelos ouvidos, pelas palavras. O Homem deveria ajuizar com a razão e com a razão percepcionar as coisas distantes como se estas estivessem mesmo diante dos seus olhos. Isso é que era bom. Que teria sido do Sócrates, e dos que vieram antes e depois dele, se os homens tivessem seguido o ensino do Parménides?
Pode parecer esquisito nos dias que vivemos, mas o certo é que não se pode pensar sem pensar alguma coisa. O pensar coisa nenhuma é um não-pensar, como o dizer coisa nenhuma é um não-dizer.

                                                                           
         
O Cristianismo. Não sei se digo uma baboseira, mas ao ler, mesmo por alto, as concepções destes pensadores que reflectiram sobre tanta coisa antes de Sócrates o ter feito, sente-se (eu pelo menos sinto) no pensar deles uma força que foi primórdio e inspiração de esquemas de raciocínio muito posteriores e que, devidamente adaptados ao fim em vista, nos vieram a ser transmitidos como doutrina cristã. Ou sentimos hoje a doutrina cristã como uma ressonância, aqui e ali mais ou menos presente, dos pensamentos pré-socráticos.


E claro que os pensadores cristãos e os doutores da Igreja, os clementes de Alexandria e tantos outros, estudaram em profundidade os sábios mais antigos e neles beberam alguns elementos estruturantes da sua doutrina. Heidegger, por falar nisso, acusa os pensadores cristãos de terem deformado o pensar de Parménides. Heidegger não concorda em que o Ser não seja mais do que acto de pensar.



O reino abrir-se-ia e se desenvolveria na luz, e assim o Ser seria o Aparecer, a manifestação – lá está a Lili Caneças a aparecer, a manifestar-se constantemente na CARAS. O conhecer deveria traduzir-se por um entender. Ou até por um atender, um ouvir, permitir a palavra, o testemunho. Entendimento daquele que concorda; atendimento daquele que ouve. Trazer ao Ser o que aparece. E detê-lo. Acho isto muito bonito, que é que querem? A Lili Caneças a aparecer em cada festa e a ser trazida ao Ser…


O entendimento e a razão de ser do entendimento são a mesma coisa  - disse Parménides. E disse mais: deve Ser o que pode ser pensado e de que se possa falar. Ou: é necessário que um pensamento e uma expressão sejam.
E tocamos o território do existencialismo. Com Heidegger. A essência do Homem seria afinal a sua existência. Enquanto o francês Ettiène Gilson diria que a doutrina de Parménides concluía pela oposição Ser/Existir, O que É não existe. Ou então, o que existe não É, se dermos existência a um devir do mundo sensível. Lili Caneças nunca iria tão longe, tenho a certeza…

                                                                              

Antes de chegarmos a outra estrela maior do firmamento das ideias, daquelas que vieram antes de Sócrates, Empédocles, consideremos outro grande actor da escola eleática: Zenão. E disse Bergson: a metafísica data do dia em que Zenão de Elea notou as contradições relativas ao movimento e à mudança tais como a nossa inteligência as representa – um bom assunto de meditação para Sócrates, depois do mestrado em Paris, e agora que ele não tem muito que fazer.


Zenão era mesmo de Elea. Nascido talvez em 489. Foi político e lutou contra a tirania. Entre outras coisas, produziu uma interpretação de Empédocles. Zenão, para Aristóteles, teria sido o pai da dialéctica. Porque apanhava uma das essenciais hipóteses da tese do seu adversário e alargava-se por ela, tirando dela conclusões contraditórias.
A celebridade de Zenão foi consagrada pelo que se chama de aporias. As aporias de Zenão. Aporia que, grosseiramente falando, se pode dizer uma figura de retórica pela qual o orador parecia hesitar sem conseguir uma conclusão, uma espécie de pensamento circular.
Zenão criticava os pitagóricos nas suas convicções acerca do Múltiplo. A teoria pluralista não servia para demonstrar o movimento
Eram quatro as aporias de Zenão. Já agora que estamos a falar nele…
Dicotomia. Aristóteles expõe o problema. A impossibilidade do movimento. Um móvel transportado deverá primeiro atingir a metade do espaço antes de atingir o seu fim. Nem é bom pensar ou especular sobre o movimento, porque o movimentado terá de atingir o meio de um dado percurso, a seguir o meio do percurso que falta, e ainda o meio do percurso que ainda falta, e assim até ao infinito. Aproximar-se-á do fim, mas nunca o poderá atingir.
        É muito para mim…
Aquiles. Aquiles (o veloz) e a tartaruga (a vagarosa). O mais lento a correr nunca será alcançado pelo mais rápido – ora aqui está um argumento que bem podia ser usado pelo Comité Olímpico Português para transformar os nossos corredores em vencedores pré-socráticos…


Bem, o perseguidor deve começar por atingir o ponto de onde o fugitivo partiu, e daqui o avanço do mais lento. Organizando uma corrida entre o fulminante Aquiles e a pachorrenta tartaruga e concedendo a Aquiles uma breve desvantagem, quando ele chegou ao ponto onde estava a tartaruga ao partir, o ponto T, já a tartaruga lá não está, já estará em T 1; e quando Aquiles chegar a T1 já a tartaruga irá em T2. E Aquiles não só nunca poderá ultrapassar a tartaruga como nem sequer a alcançará. Só se aproximará dela. Até ao infinito.
(A chatice é que isto é tudo a pensar no infinito…)
E veio séculos muitos depois Henri Bergson criticar o bom do Zenão e descobrir-lhe a careca do erro. O erro foi acreditar que uma corrida de A a B seja composta por uma soma de corridas sucessivas. Zenão estaria certo se, quando Aquiles está no ponto em que estava a tartaruga na partida anterior, fizessem parar os corredores, dando seguidamente a partida para uma outra corrida. E não me perguntem mais nada a respeito desta aporia…
                                                                                   

E vem agora a seta. Quando atirada, a seta está em estado de paragem, em repouso. Uma coisa só pode estar em repouso quando ocupa um espaço igual ao seu volume. E se depois de atirada a sete continua a ocupar um espaço igual ao seu volume é porque está em repouso, nunca chegará a nenhum alvo.
(Não, esta não.)

                                                                                


Ah, cruel Zenão de Elea, tu me varaste com essa seta alada que vibra, que voa e que não voa, é o silvo que me cria e é a seta que me mata – escreveu Paul Valéry num poema de Le Cimetière Marin.
O estádio. Duas multidões iguais, em velocidades iguais, devem percorrer espaços iguais em tempos iguais, movendo-se ao encontro uma da outra a partir das extremidades do estádio. E se duas multidões se movem assim, cada uma gasta para correr o comprimento da outra metade do tempo que gastara se uma delas estivesse parada, porque, para Zenão, a metade do tempo é igual ao seu dobro.


E não, não me perguntem mais nada, porque isto, devo confessar, é mesmo muito para a minha inteligência, ou como diz a sabedoria do povo: é muita areia para a minha camioneta.
O espaço e o tempo são norma de pluralidade das coisas e de mudança, e se eles se apresentam contraditórios revelam apenas que a mudança e a multiplicidade são contraditórias. Quer dizer: irreais.
Sempre me tinha palpitado qualquer coisa do género…