domingo, 20 de julho de 2014

       A ATENÇÃO


 

Em ociosos tempos de férias, nos acasos de praia, tornei a ler um romance que havia lido pela primeira vez em estranha data para romances: Setembro de 1974. Chama-se A Atenção, e é de um autor italiano em tempos famosíssimo e na indiferença cultural de hoje provavelmente já esquecido. Alberto Moravia.

                                                             

Talvez lhe tivesse pegado nestas férias justamente por causa do título, esquisito título para um romance. Ou talvez por sentir que vivemos um tempo de pouca atenção, ou mesmo de completa desatenção ao que se passa à nossa volta, aos outros, e por vezes a nós mesmos.Ou seja talvez por pensar que muito do fundamento da nossa moral esteja numa maior ou menor atenção que prestamos às coisas, às pessoas, às instituições.
E porque também se dá o caso de pensar que a realidade que estamos a viver é mais mascarada – ou até pura e simplesmente ocultada - do que qualquer outra realidade vivida em qualquer outro tempo. Não me custaria admitir que no presente a comunicação de massas, conhecendo um desenvolvimento tecnológico que nunca nos passou pela cabeça possível, oculta, mascara, embeleza ou enegrece a realidade com mais sofisticação do que nunca – o caso Espírito Santo? O que requer da nossa parte mais atenção do que nunca às mensagens que nos chegam ao conhecimento.


Francesco Merighi, burguês, filho de burgueses, é jornalista. Casado. Vive com a mulher e com uma filha que a mulher, antes de o conhecer e em tempos de ocupação, teve de um soldado alemão.

                                                     

Francesco Merighi escrevia num jornal de esquerda. Porque era um homem de esquerda. Porque pensava o mundo à esquerda, não sendo embora filiado em qualquer partido. Uma dia, porém, oferece-se-lhe a oportunidade de colaborar num diário conservador de grande circulação e ele aceita. Continuando embora a ter ideias de esquerda.

  

Criticam-no. Era mais um que crescera e se valorizara à esquerda e se vendia à direita. Mas não era bem assim. Não lhe interessava o dinheiro e nem sequer mudara de ideias políticas. Limitara-se, quanto a ideias políticas, a pô-las de lado; compreendera que elas eram coisa de pouca importância na sua vida. A razão da mudança de jornal era a sua compulsiva necessidade de viajar, o que não lhe era fácil fazer num jornal de esquerda de baixo orçamento. Interessava-lhe viajar, estar longe da sua cidade natal, Roma, o máximo de tempo possível. Viajar era uma forma de não ser confrontado a cada momento com o seu passado.


E o problema do passado deste jornalista era a mulher.Passava dois terços ou mais do ano em reportagem no estrangeiro para estar o menos possível com a mulher.


A mulher dele era uma mulher do povo, filha de uma lavadeira e de um hortelão. Ele, burguês filho de burgueses abastados e com ideias de esquerda, achava o mundo falso e sentia-se de algum modo culpado dessa falsidade. Em 1947, encarregado de uma reportagem no pobre bairro romano Gordiani, conhecera a mulher, gostara dela e decidira que era aquela a mulher que procurara por tanto tempo.E nas condições que adquiriu de estabilidade familiar, começou a escrever um romance. Mas de repente…


De repente, Merighi descobriu que deixara de amar a mulher.
O que outrora vira na mulher, aquelas características de mulher do povo, deixara de ter valor para ele. E não só deixou de amar a mulher como sentiu nascer nele um sentimento de repulsa por ela. E recusava qualquer contacto físico. E afligia-se ao pensar como pudera ter amado aquela mulher, como se vivesse o dia seguinte a uma noite de bebedeira em que tivesse dito e feito uma quantidade de disparates.
Não a amava, ela causava-lhe repulsa. Mas também não a odiava.
Um dado sartriano, existencialista, na obra de Moravia, parece-me, esta inconsequência de vida, este não amar nem odiar, este não agir nem deixar de agir, este absurdo, esta inautenticidade, esta estranheza de si próprio, esta faixa cinzenta de existência inautêntica. O jornalista pensa que a Humanidade inteira, por séculos e séculos, agira por motivações inautênticas, multiplicando em progressão geométrica toda a irrealidade inicial.A História, a grande História, era um cemitério de ideias falsas, primeiro adoptadas com fervor e imediatamente abandonadas.


Na verdade, Merighi chegara a amar a mulher, e chegara a casar-se com ela. Mas tudo agora lhe parecia falso, inautenticidade irreparável.


  Mas do nada pode despontar o ser; e da irrealidade pode brotar a realidade.

                                                   

Bom, normalmente, um homem nestas condições ter-se-ia separado da mulher. Mas ele não o faz. A separação significaria a acção e ele sentia-se incapaz da acção. Agir significava mentir, criar uma nova inautenticidade sobre o cúmulo das outras que já se tinham consumado na sua vida, porque uma acção falsa se desenvolve noutra. E como tanto ele como a mulher eram economicamente independentes, cada um passaria a dormir no seu quarto, cada um faria a sua vida independente do outro, tudo o que respeitasse ao governo da casa ficaria a cargo dela e, em troca, ela – que tivera esta ideia quando confrontada com o desinteresse dele – só lhe pedia que não saísse de casa.


Ele corre o mundo em serviço de reportagem. Só está em casa o tempo bastante de redigir as suas crónicas. Da vida de casado, entre 1953 e 1962, guardava uma recordação confusa, em consequência de ter passado esses anos em estado de continuada desatenção.
E assim continuaria a viver em família como se vivesse num hotel.
Um inquilino. Um inquilino pode ser uma pessoa desatenta ao que se passa no prédio onde vive. Entra, sai, come, dorme ou trabalha, vive sob o mesmo tecto com pessoas em quem não repara, sabe que existem, mas ignora-as. Era a vida que levava em casa. Suspensão da atenção.


E voltou a pensar no seu projecto de romance. Teria que ser um romance da autenticidade. O rascunho que escrevera pareceu-lhe imprestável, por inautêntico. Rasgou-o. Naquele rascunho havia peripécias, acontecimentos, agia-se, quando na realidade da vida, segundo ele, não era possível agir de maneira autêntica. O que queria era um romance sem intriga, sem história, sem acção dramática.


O que é o contrário da acção dramática?
É o quotidiano, o rame-rame.
    Os dramas na vida de uma pessoa? Oh, muito raramente acontecem. O que mais acontece na vida é o quotidiano, é essa mesma vida a correr sem forma.
Um dia, Merighi recebe uma carta anónima. E resolve passar do seu estado de desatenção ao estado de atenção.


Vem a saber que a mulher, além da loja de modas, era também proprietária de uma casa de pouca permanência, que contratava raparigas muito novinhas para, nessa casa (uma vivenda um pouco retirada do centro da cidade) receberem cavalheiros. E vem a saber que a mulher, durante algum tempo, levara a essa sua casa a própria filha de catorze anos e que a filha estivera nessa casa com vários clientes. É a própria enteada que lho confessa.


O jornalista Francesco Merighi começa a ter pesadelos e numa noite de mau dormir saca da mesa de cabeceira o livro que estava mais à mão. O Rei Édipo, de Sófocles. “Onde encontrar o traço escuso de um delito antigo?”. “Procurando, ele encontra-se, mas se se descura, ele foge.”

                                                                   

O jornalista sente-se na mesma situação de Édipo. A cidade corrompida pela peste era a sua própria família e o responsável por essa corrupção era ele, e sem que, como Édipo, lhe fosse permitido punir-se ou expiar a culpa. Ou por outra… talvez houvesse para ele uma forma de expiação.

Uma breve memória da tragédia de Édipo.


Tebas está a ser devastada pela peste. O povo implora a Édipo, seu rei, que faça alguma coisa. Creonte, cunhado de Édipo acaba de escutar os oráculos. A terra de Tebas está manchada de um delito, de uma culpa que ainda não foi expiada. Enquanto esse crime não for expiado a peste não deixará de matar o povo.
Antes de Édipo tinha reinado em Tebas Laio, casado com Jocasta, actual mulher de Édipo. Laio fora assassinado e Febo (Apolo) exige que sobre os assassinos de Laio urgentemente caia o castigo. “Mas onde descobrir a incerta pegada de um antigo crime?, pergunta Édipo. Creonte replica: “nesta mesma terra; o que se procura obtém-se; só escapa o que se descura.”

                                                       

Todos sabemos a história, que é das mais perturbantes que a Humanidade alguma vez contou a si própria. Laio fora assassinado numa encruzilhada por uns viajantes. Morreram todos os que com ele iam, menos um, que fugiu. Aparece Tirésias, o adivinho. Mas recusa falar. Os factos falariam por si. Instado, profere na cara de Édipo: “o assassino que procuras encontrar, afirmo-to: és tu mesmo”.
E mais lhe atira Tirésias: ele, o rei Édipo, vive infames relações com os que lhe são íntimos e não é clarividente que chegue para compreender a sua própria miséria. “O motivo da tua ruína és tu mesmo”, remata Tirésias. E mais: “saberás tu, Édipo, de quem és filho?”
“O homem que queres encontrar está aqui. Será cego depois de ter visto a luz, será mendigo depois de ter sido rico; há-de mostrar-se irmão e pai dos próprios filhos, filho e marido da mulher que o gerou, herdeiro do leito conjugal e assassino de seu pai.”


Chamada a depor perante o povo, Jocasta esclarece um pouco as coisas. O oráculo predissera a Laio que iria ser morto às mãos do próprio filho. De forma que Jocasta e Laio, para contradizer o oráculo, logo que têm uma criança, entregam-na a alguém, amarrada pelos tornozelos e com o encargo de a fazer desaparecer numa montanha inacessível. Mas esse alguém, apiedando-se da criancinha, entrega-a ao rei de Corinto, Polibo, que a adopta. E quando Édipo, a meio de um banquete, sabe que não é filho natural de Polibo, coberto de vergonha, foge do palácio e põe-se a correr mundo.
Uma vez, na encruzilhada entre Delfos e Dáulia, Édipo matara um velho e mais quase toda a comitiva que o acompanhava.


Édipo treme. Uma tirada de Jocasta dirigida a seu marido, Édipo: “Porque há-de um homem temer se está sujeito à lei do acaso e em nada lhe é possível um entendimento claro? Melhor será viver à deriva, como cada um puder. E não vivas no temor das núpcias com tua mãe. Muitos foram os mortais que em sonhos a sua mãe se uniram.”
E a verdade resplandece pela boca do mensageiro a quem fora confiado o bébé de tornozelos amarrados. Os factos falam. Édipo matou o seu legítimo pai, Laio. Chegou a Tebas. Mostrou discernimento e sabedoria na decifração dos oráculos e o trono de Tebas foi-lhe entregue, e com ele, por mulher, Jocasta, mulher de Laio e sua mãe. “Ai de mim. Tudo se torna claro. Ó luz, seja esta a última vez que te encaro, eu, nascido de quem não devia e assassino daquele que me era proibido assassinar.”
             


Jocasta é encontrada enforcada nos seus aposentos. Édipo crava nos próprios olhos as fivelas de ouro do seu cinturão e sai de Tebas cego, desgraçado, desonrado e sem destino, amparado pelas filhas.

E se a inautenticidade, a falsidade, estivessem instaladas no coração das coisas? E se a realidade fosse estruturalmente irreal e o seu significado mais profundo residisse na irrealidade?
O protagonista do romance de Moravia A Atenção, mantinha um diário para dele extrair um romance sem acontecimentos nem peripécias. Mas repara, logo no primeiro dia de escrita, que o dramático e o excepcional do acontecimento lhe explode entre as mãos. Estivera dez anos sem falar à mulher e à enteada vivendo embora com elas. Ao fim de dez anos, por intermediação quase trágica, quase grega, do deus ex-machina de uma carta anónima, vem a saber que sua mulher tem uma actividade de proxeneta e que prostituira a própria filha de catorze anos.
Inverosímil. Inautêntico. 

                                                                         

Francesco Merighi, o jornalista, vai pessoalmente à casa de passe da mulher e vê com os seus olhos. Era verdade. A sua família estava ferida de corrupção, tanto quanto a cidade de Tebas no reinado de Édipo.
Mas aquele sentido de corrupção familiar não era excepcional. A corrupção na sua família era continuada, fugia a um juizo moral, instilara-se no banal quotidiano, dava vida a esse quotidiano e alimentava-se dele, como se alimentava do fluir da atenção e da desatenção das coisas.
E perante os factos não restava senão uma suspensão dos juizos morais. E essa atitude seria igual à da contemplação inactiva dos factos e da vida. Estivera desatento e falhara na compreensão dos acontecimentos e das pessoas. Deveria estar atento, se queria mesmo atingir o nexo.


Há uma diferença entre a coisa que se imagina  e a coisa realmente acontecida, que é o que transcorre entre a realidade da mentira e o espaço que pertence à verdade, o facto mesmo, directo; sendo a realidade da mentira mediata e indirecta, fora do facto e apenas no significado dele.
A certa altura de uma conversa com o seu chefe de redacção, conta-lhe do seu projecto de romance. A Atenção. O chefe de redacção sustenta que nos tempos de hoje (já ontem: anos 60), por mais que queira, não há ninguém que consiga estar atento. Não se consegue a atenção. Tudo foge.

                                                   

Merighi não consegue abordar frontalmente com a mulher o assunto escaldante da segunda ocupação dela, a casa de meninas, as pobres raparigas, os clientes. Porquê?
Porque pensa: se falasse com toda a franqueza ou a condenava em definitivo, ou se tornaria seu cúmplice. E o romance, que queria liso e sem acontecimentos nem acção dramática, se ele lhe vertesse dentro a realidade pura do seu quotidiano, tornar-se-ia num dramalhão do pior gosto.
Merighi relê Édipo.


A questão de Édipo é uma questão de atenção e desatenção. Édipo passara anos e anos de esquecimento e indiferença, anos e anos entre os cidadãos de Tebas, anos e anos a dormir com a que fora mulher de Laio, no mesmo aposento que Laio habitara, sabendo que tinha na consciência um assassínio violento. Édipo, desatento, levou anos e anos sem querer saber. Sem querer saber que Jocasta, sua mulher, era sua mãe. E nunca falou com ela acerca dos acontecimentos criminosos que lhe haviam levado o marido, nem quis reconhecer na descrição de Jocasta o seu próprio crime. Édipo não quis saber. Édipo não quis praticar a atenção. Édipo quis estar desatento aos seus próprios e íntimos problemas, aos problemas da mulher, aos problemas da cidade. Quis ignorar a realidade. E conseguiu-o. E a irrealidade de uma vida só consegue suportar-se pela desatenção.
E porque estaria Édipo desatento?

                                             

Porque lhe convinha. Amava Jocasta. Um amor incestuoso que dizem mais forte e irrecusável do que um amor normal, tal como acontece com tudo o que é proibido.
E a Édipo convém a desatenção porque também ama o poder.
Francesco Merighi, o jornalista do romance de Moravia, convencia-se de ser ele, como Édipo, o culpado da corrupção da sua família, por ter deixado de amar a mulher e na sequência disso ter destruído nela a vontade de um viver regular em família, desencadeando nela a vocação secreta que já teria em tempos de ocupação alemã e de fome, quando morava no bairro popular onde a conhecera e onde quase todas as raparigas se prostituíam um pouco. Mas a interrogação de Merighi persiste, centrada na razão por que tinha deixado de amar a mulher; ou, antes, na razão por que a tinha chegado a amar.


Porque se ama ou desama uma pessoa? – pergunto eu. Quais, na verdade, os elementos constitutivos do amar?

                                                      

Merighi tem uma explicação com a mulher. Não percebe por que razão aquele amor, que foi autêntico, se esvaiu dentro dele. A mulher sugere-lhe que teria sido por ela ter deixado de lhe dar certa coisa. Que coisa? Ele procurara uma mulher de um certo género, do povo, ela era-o quando se conheceram, e depois deixara de o ser. Deixara de a amar por ela ter deixada de ser a pobretanas que era. Ele procurava então o autêntico, o genuino, o verdadeiro. E julgava tê-lo encontrado nela. Porque entendia que essas características eram mais encontráveis no povo do que na sua classe.
Pergunta da enteada: “que amavas tu nela e na família dela?” A pobreza. Pobreza e verdade deviam ser sinónimos. Mas agora deixara de acreditar nisso.


O homem era o clássico intelectual de esquerda, o primordial idealista pequeno burguês, cheio de sensações de culpa social que se quer socialmente avançado e pronto a fazer opções de classe. E a mulher ensina-o. O povo não é como ele pensava que era. O povo não é mais autêntico do que as outras classes sociais. O povo é como as classes altas e a diferença está no mais ou menos dinheiro. O que lhe interessava na mulher era o ser pobre e, ocasionalmente, até um tanto venal sexualmente. E ele odiava as mulheres da classe dele com tanta intensidade que ela lhe perguntou se ele era comunista. E ele disse que sim, que até estava filiado no partido. O que não era verdade.
Uma ideia do romance: muitas vezes a razão de ser de alguém reside exactamente no não-ser, embora fingindo ser. Cada um de nós pode ser o facto de fingir o que não é.

                                                                           

Merighi descobre que a mulher se não está tuberculosa anda lá perto. E, à semelhança de Édipo, engendra para si uma forma de expiação pela corrupção familiar de que se sente responsável, um equivalente à cegueira voluntária de Édipo.
Tenta convencer a mulher a ir tratar-se num sanatório de montanha, comprometendo-se a deixar de viajar e a fazer-lhe companhia pelos dois ou três anos que durar o tratamento. E consegue chorar só de pensar nisso.
Mas a mulher não aceita. Por outro lado, no fundo da sua alma, o que ele espera é que a mulher sucumba repentinamente de hemoptises. Uma esperança de que um deus ex-machina de teatro grego resolva as coisas e o exima da expiação que voluntária e inautenticamente se propôs. Porque toda a acção o faria cair de novo na inautenticidade.
Era uma ideia falsa que escondia, contudo, em si, alguma coisa de verdadeiro. Fazer companhia à mulher que deixara de amar, num sanatório, e viver o resto da vida com ela – falso. Desejar que a mulher morra depois de ele ter feito a promessa e antes de se ver obrigado a cumpri-la. Verdadeiro.
Repito: e se a inautenticidade, a falsidade, estivessem instaladas no coração das coisas? E se a realidade fosse estruturalmente irreal e o seu significado mais profundo residisse na irrealidade?


Francesco Merighi, o jornalista, está apaixonado pela enteada. É correspondido. Revela que a tal carta anónima lhe viera parar às mãos dez anos antes do que dissera e do que tinha escrito no seu diário. Ignorara-a durante dez anos. Procurara deliberadamente estar desatento. E revela que a mulher lhe mandara a casa por várias vezes várias das raparigas que se prostituíam para ela. A ideia era continuar a manter uma relação com ele, mesmo que por interpostas pessoas. Mais: revela que a mulher, disfarçando a voz, certo dia o convidara a ir a certa casa onde lhe estava reservada uma surpresa agradável. E ele foi. E era a vivenda onde funcionava a casa de passe. E ele entrou, e entrou num dos quartos. E quem o esperava no quarto? A própria enteada, de catorze anos, e pela qual, mesmo sem ter tido nada com ela, se apaixonara.
Talvez não interesse muito saber os complicados pormenores com que Moravia termina o seu romance. Ou o romance dentro do romance - ou ainda melhor: o diário dentro do romance dentro do romance. É uma metáfora para dizer que a escrita de um romance pode ser a única maneira de manter uma relação com a realidade. 

   

O romance pode ser o mediador entre o autor e a realidade. Uma espécie de consciência. E até porque, segundo Moravia, nenhuma relação no mundo real é tão real como a que existe entre o autor e as suas personagens. Nem a relação de amor é tão pura e completa.
E, nem seria preciso dizê-lo: a atenção é muito relativa e flutuante, às vezes - isto digo eu. E às vezes para não nos aborrecermos demais é a nossa própria psique que nos comanda a atenção. E podemos viver a vida por desatenção; podemos amar e casar e desamar e descasar por desatenção; comer e beber por desatenção; ter opiniões e votar por desatenção; falar e calar por desatenção. Até podemos morrer, tal como viver, por desatenção.
A atenção é a mãe da memória. Coisa que nos vem faltando muito a nós, portugueses. E também pode ser, a atenção, uma questão de cidadania, de auto-estima, e até, quem sabe, de competitividade.
Estava o jornalista Francesco Merighi nos Estados Unidos em serviço de reportagem quando lhe chega a notícia da morte da mulher. Não tuberculosa. Por cancro no pulmão.
O deus ex-machina funcionou. A corrupção do quotidiano banal, que compreende até a morte por cancro, cumpriu-se.



Quando eu conto um sonho que tive alguém me pode dizer “não, estás a mentir, tu não sonhaste isso”?

2 comentários:



  1. Também é uma realidade "ouvir" assim o programa «Questões de Moral», numa Segunda-feira de Verão, como se ele fosse real. Ou sê-lo-á ainda??

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  2. Também ando a pensar reler e tresler os americanos tranquilos, os italianos bravos. Para tentar perceber "quantas as guerras" e porque estamos assim. Sentar as "Questões de Moral" à mesa, o 3º hóspede do meu sentir, enquanto se desfiam os massacres e desvio os olhos. Abç

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