quarta-feira, 30 de julho de 2014

                   CULTURA - PAIXÃO DE ESTADO,
              OU PROBLEMA MEU?

       José II, imperador austríaco, oferecia uma festa na corte. O conde de Rosenberg organizara uma representação com as óperas O Empresário, de Mozart e o Prima la Música e Poi le Parole, de Salieri.


        E agora podemos “ver” o imperador nos seus aposentos. Está ao espelho a acabar de se arranjar. O conde veio ler-lhe a lista dos artistas contratados, mencionando de caminho o cachet que o seu critério atribuíra ao merecimento de cada um deles. O conde de Rosenberg termina a leitura. Fica calado. Espera. Silêncio incomodativo. O imperador pede-lhe o papel que ele acabara de ler, toma a pena e acrescenta um zero a cada uma das gratificações propostas por Rosenberg. E diz assim: meu caro conde, esta festa é dada pelo imperador e não pelo conde de Rosenberg.

                                 


        Política de cultura em democracia? Em liberdade – isto é, em mercado? Só para não falarmos, ou falarmos menos, dos equívocos aspectos arqueológicos da política de cultura quando ela era cerzida na propaganda dos regimes autoritário-ditatoriais, os anos 20, 30, 40, dos lunatcharkis, dos jdanovs, dos goebbels, dos antónios ferro – política do espírito, ah, que vaporoso…


        Só se estamos hoje, em democracia, liberdade e mercado perante os mesmos problemas de política cultural, as mesmas vontades, a mesma paixão, o mesmo espírito que urge politizar – ou politificar. Estaremos? E essa vontade, e essa paixão serão do mesmo teor? Será ainda a cultura e respectiva política uma paixão de Estado ou só um problema meu, quer dizer, nosso?
        Poder-se-á dizer que política de cultura, ou cultura de propaganda, é algo que faz cada vez menos falta aos governos, ao sistema democrático-parlamentar, aos mercados. A democracia propagandeia-se, promove-se e vende-se por si mesma – quanto mais não seja por não haver, dizem, alternativa a ela.
Uma política de cultura pode ter servido à maravilha como propaganda de um partido da grande esquerda ou da mais imponente direita quando esse partido chegou ao poder por via revolucionária, e não quando, em democracia, a propaganda é feita a montante do poder, na manobra eleitoral que conduz ao poder.
  Em democracia representativa a política de cultura não vai confundida com propaganda de regime. Nem pode ser estratagema para o maior lustro institucional de um príncipe.
        O escritor Bruce Chatwin é que teve uma conversa com o ministro dos ministros da cultura de todos os tempos do Ocidente, André Malraux, e dessa conversa ficou-lhe a sensação de que um ministério de cultura estranhamente lhe cheirava a qualquer coisa de totalitário.
     

        É que isto da cultura, assim visto em grandes termos, pode dividir-se em dois (ou mais) ramos: as formas e modelos artísticos que o Estado institui, induzindo o meu gosto estético, ou impondo-me a estética dos funcionários ou das cliques imiscuídas na política de cultura; a cultura vista e apreciada pela subjectiva lente de cada um de nós, eu, tu, aquele, gente comum, na nossa relação pequena ou grande, boa ou má, com a arte e as coisas do espírito – uma relação mais de prazer pessoal do que de obrigatoriedade intelectual ou moda. 
        Ou uma política de cultura que não servirá para outra coisa de nobre para além de conceder a cada um o direito à pluralidade das escolhas, dos prazeres espirituais e por essa escolha formar o seu próprio gosto, com o Estado a obrigar-se a possibilitar a cada cidadão o cultivo desse gosto uma vez formado.
        Chata e complicada esta coisa da cultura, não? Também acho. E pelos vistos inútil…
        Mas o que acabo de escrever pode ser um problema do Estado como pode vir a ser um problema meu, homem comum pagador de impostos. Problema do Estado e dilema do Estado, do governo, se eles, Estado e governo, na sua paixão cultural entenderem que a melhor política de cultura é investir nos modos e nas formas estéticas com que o cidadão mais rápida e facilmente se identifique.
        Pois é, acho que a cultura é mesmo problema meu, homem da rua. E que por ser também problema meu caberá ao Estado mitigar-me a premência desse problema, desse urgente desejo estético. Quero ter ópera barata – o Estado terá que ma servir de bandeja e produzida ao melhor nível. 
   Quero ouvir música electrónica até me tornar um tipo psicótico – compete ao Estado encomendá-la aos especialistas, e pagá-la, pois então, para eu a ouvir bem instalado no meu desassossego.   Quero mais edições baratas das obras de… Alexandre Herculano… bom, aí já mete comércio e complexas redes de interesses privados, direitos, concorrências, preços. O Estado recuará. Ou avançará. É conforme.
          Mas não, afinal o que eu quero é mais estátuas nos jardins da droga – o Estado tem que as encomendar e pagar e velar pela protecção delas contra o vandalismo.
        Será que compete ao Estado incentivar e proteger as artes que estão moribundas e que não despertaram capazmente a vivíssima gula dos comerciantes? Será que compete ao Estado fazer com que as coisas culturais existam, e até incentivar as artes que não me interessam para que eu hoje ou amanhã possa vir a interessar-me? 
          Será que compete ao Estado dar fogo a artes ou formas ou estéticas de que eu não sei se gosto porque não tive contacto com elas e por isso o Estado deveria pôr-me em contacto com elas para eu saber se gosto ou não gosto?
         Eu sei lá.
      Neste momento preciso da História da vida humana, momento globalizado e selvaticamente (des)capitalizado, perguntar-se-á que importância têm de facto estas coisas bizantinas, as artes, as letras, coisas que para pouco servem, a menos que dêem bom dinheiro a ganhar a alguém.
        E porque é que o bom Estado liberal e mercantilista há-de ter a obrigação histórica de pagar e gerir artes e letras que não servem para nada? Nada de lucrativo, bem entendido – ou imediatamente, ou altamente lucrativo. Ao menos os concertos de rock sempre dão bom dinheiro a ganhar aos empresários e promotores, e por isso não precisam do Estado para coisíssima nenhuma - pelo menos aparentemente. Ao contrário da ópera, do bailado, do teatro dito sério, do cinema de arte, dos museus, da música sinfónica… pois é, coisas que parece não interessam já a ninguém e que, se ainda interessam a alguém, foi porque o Estado, numa qualquer viragem da História das vidas lhes deu vida.



        O Estado tem (terá?) a vocação, ou mesmo a obrigação de pagar as actividades culturais de interesse histórico, tradicional, mesmo que nas presentes encruzilhadas da História, da cultura e das tradições tais actividades tenham deixado de interessar à grande maioria do público e por isso já não sirvam para nada? Ou será que no tempo que passa quanto mais o Estado nas coisas intervém menos essas coisas existem – ou servem?
        Aduzirão alguns que a categoria filosófica Estado sempre foi cultural. E que o Estado, fosse qual fosse o cariz e o espírito que tivesse ao correr das épocas (principesco, absolutista, totalitário, democrático), foi o muito estimável patrão das artes. Tempos que já lá vão, claro. Os Medici, os Sforza, os Gonzaga, os Visconti aplicavam a sua munificência individual de príncipes e sobrepunham-se aos considerandos da comunidade, para a qual, aliás, se estavam bem nas tintas, porque era o lustro deles próprios que comemoravam em competição com outros príncipes.


        Parecendo que não, e por insignificantes que pareçam, estas coisas da cultura trazem os seus problemas.


E por falar em príncipes munificentes, há a dizer que a igreja de Roma não se deixou ficar na competição cultural principesca. Leão X, aliás Giovanni Lorenzo de Medici, o último papa que não foi padre, estoirou com as finanças vaticanas por não estar habituado a passar mal culturalmente na sua abastada Florença natal. Vai daí, elevado ao trono de Pedro, e como um Medici da melhor cepa (filho do grande Lorenzo de Medici), achou por bem rodear-se do bom, do melhor e do mais caro que em poetas, músicos, actores, cantores, pintores e escultores havia pelas itálias, e por causa disso arranjou um trinta e um de alto lá com ele. Com os cofres à míngua e com a Igreja falida, a ver se ganhava algum, Leão X inventou as bulas papais que limpavam as almas mais branco do que o TIDE. Vendeu então a salvação das almas a alto preço e lá foi equilibrando a contabilidade. Mas o diabo, como sempre nestas coisas que metem religião e cultura, estava à espreita. Com a venda das bulas Leão X irritou o obscuro frade alemão Martinho Lutero e deu fogo à peça da Reforma que deixaria a Europa a ferro e fogo por mais de um século. E tudo por causa de uma paixão de Estado, quer dizer, de príncipe, pela cultura.


Bem, mas também a criação artística é, ou pode ser, a manifestação do resto de religiosidade (profana embora, mas não interessa) ainda possível de desencantar na alma de um homem, um último alento de divindade recebido pelo Homem do supremo criador de tudo, Deus. Sabe-se lá se o bom Leão X não pensou assim…
No léxico artístico-cultural não são poucas as fórmulas sacrais. E se, para Marx, a religião não passava de um ópio para os povos, que dizer das virtualidades da arte nesse campo opiáceo? Malraux até comparava as casas de cultura por ele acabadinhas de inaugurar a modernas catedrais. Ou talvez que o ministério adstrito aos assuntos culturais assuma, quem sabe, veleidades de actividade pastoral, magistério sagrado, gestão das almas, múnus salvífico, e tendo em vista a actual e profunda crise da fé – digo, da paixão.


Poderá a cultura, como queria Nietzsche, assumir o encargo de domesticar a besta humana?
Ou será destino da arte e da cultura em geral problematizar a vida humana para lá do evidente, inquietar a tranquilidade amorfa da espécie, desvelar o Homem a si próprio, revelar-lhe a natureza verdadeira daquilo que lhe empana a felicidade, discutir, criticar-lhe as instituições, desmascarar-lhe os reis nús?
Por agora, fico-me mais pela segunda hipótese. Que por sinal explica alguma coisa sobre o sinal que os tempos actuais nos dão.
O porquê de um desinvestimento dos estados na cultura?                                                                       O porquê de ser cada vez mais difícil podermos ver estreado nos cinemas um daqueles grandes filmes que já não se fazem, não só porque ficam caros para os critérios culturais de agora, mas também, et pour cause, porque já não vão aparecendo os grandes artistas para os fazerem?
O porquê de não se verem jeitos de aparecer o grande romance que fosse para o séc. XXI o que A Montanha Mágica, A Náusea, O Som e a Fúria, O Estrangeiro, o Quarteto de Alexandria, o Por Quem Os Sinos Dobram, O Grande Gatsby, A Condição Humana ou os Cem Anos de Solidão foram para o séc. XXI?
O porquê de não se vislumbrarem as guernicas do séc. XXI?
O porquê de não estarem a aparecer no séc. XXI os poemas que se equiparassem em profundidade e importância civilizacional a Os Cantos Pisanos, a Residencia en la Tierra ou The Waste Land (por exemplo); ou as peças teatrais que dessem sequência ao Rei Ubu, À Espera de Godot, ao Círculo de Giz Caucasiano, ao Soulier de Satin, à Morte de Um Caixeiro Viajante, à Longa Jornada para a Noite, a Um Eléctrico Chamado Desejo, à Visita da Velha Senhora (por exemplo)?
O porquê de não aparecerem na grande música do séc. XXI os émulos da transcendência musical do séc. XX, a Noite Transfigurada, a Sinfonia dos Mil, Wozzeck, a Sagração da Primavera?
O porquê de as iniciativas e formas culturais estarem obrigados, se quiserem ver a luz do dia, a oferecer às maiorias acéfalas e infantilizadas, antes de mais e de tudo, divertimento e mais divertimento?
O porquê…
A magna questão está no pensar. Pensar ou não pensar. A conveniência e a inconveniência de pensar. Quem pode pensar e quem não pode pensar. Para quem é útil pensar e para quem é perigoso pensar.
Para que o dinheiro triunfe em toda a linha como valor civilizacional máximo e pensamento único será bom evitarem-se pensamentos outros, e plurais.


Nos momentos trágicos que vivemos o alvo é o Homem. Há que destruí-lo na sua inteireza espírito/matéria. Há que reconstrui-lo sob um primado único e material.

É obrigatório que as massas deixem de pensar. O Homem não pode tornar a interrogar-se como o fez no pós-II Guerra ou nos idos de 60, em pleno Vietnam, em cheiro de guerra fria. É obrigatório infantilizar a cidadania, reduzi-la ao acto de consumir, e de se endividar para melhor cultuar o dinheiro e consumir mais e mais; de se endividar para cair no incumprimento e na pobreza por forma a que o preço do trabalho diminua até à insignificância, e que a alienação aumente até à indiferença.


Não pensar. Não afinar a sensibilidade. Não cultivar o espírito – na contrapartida de cultivar até ao grotesco o corpo. Porque o homem que pensa levanta inevitavelmente problemas e não mais que problemas. O homem que pensa pergunta. E não resolve os problemas nem obtém as respostas às perguntas que faz. E se obtém respostas é garantido que elas não agradam à sua condição de homem e de cidadão. O dinheiro não tem boas respostas para os que persistem em conservar esses estatutos – de homem e de cidadão.


E o homem sem respostas às perguntas que faz ao mundo e à vida pode revoltar-se. O homem que procura o conhecimento incomoda o dinheiro, porque já de si o conhecimento dá respostas incómodas. E o homem que obtém algum conhecimento aspira sempre a novo conhecimento. E o homem que conhece pode indignar-se. E o homem que conhece pode revoltar-se. E as consequências da acção de um homem revoltado são imprevisíveis e ameaçam a sacro-santidade de toda a ordem dos equilíbrios.


Pois são muitos, variegados e desvairados os problemas colocados pelo que se vulgarizou sob o genérico nome de cultura. E quem coloca as questões são os que lêem (ou leram) os grandes livros e os grandes poemas, viram os grandes filmes e o grande teatro doutros tempos, ouviram a grande música, contemplaram os grandes quadros. São esses os que ainda colocam no ar as interrogações incómodas para o equilíbrio das taxas de juro, dos movimentos da Bolsa, do mundo laboral, interrogações incómodas, em suma, para a dominação total dos sistemas partidário e bancário – às vezes, a brincar a brincar, as coisas andam ligadas...
Investir na cultura é doravante risco elevado para as novas idades do ouro. Não é paixão que chegue ao sensível coração dos estados. É somente problema meu.
Os estados e os governos dependem em periclitância dos tais equilíbrios da finança e do intocável bem-estar dos investidores. Exactamente os que criam a estabilidade/instabilidade do emprego/desemprego; os que criam a estabilidade/instabilidade das maiorias governantes, alimentando os partidos e conduzindo-os ciclicamente à vitória/derrota eleitoral; os que criam, enfim, a realidade para que eu a viva na ilusão de que ainda me resta a cultura.


O outro é que a dizia bem: quando ouço falar de cultura puxo logo pela pistola.
Cultura como paixão de Estado autocrático a que se pode dar o nome alternativo de propaganda ideológica. Cultura como paixão do Estado demo-liberal a que se pode dar o nome de inércia (Dona Inércia, lá está!) ou indiferença, que é quando ela, cultura, passa a ser um problema exclusivamente meu.
É isso, pessoal. Pensamento único. Divertimento e imbecilização – até o futebol já foi, de longe, mais sério e respeitável do que é hoje. Alta rotatividade dos capitais. Racionalização de custos. Liberdade de escolha entre desemprego absoluto e fome absoluta, ou sub-emprego, salário de miséria e fome relativa. E cara alegre.
Sim, cultura é isto. Não sei se hoje é só isto, mas que também é isto, ai isso é.

                            

          

domingo, 27 de julho de 2014

     HONRA E GLÓRIA AOS MAIS ALTOS
                  VALORES PORTUGUESES DO SÉC. XXI

Era tudo mentira? Era. E era tudo verdade? Era. Que Deus abençoe o Dr. Ricardo Espírito Santo Salgado. 

                                                                            

Porque, afinal de contas, quase tudo funcionava no país em ligação directa ou indirecta aos interesses do BES, ou do GES. E sabe-se disso porquê? Por intermédio da detenção do Dr. Ricardo Salgado. E sabe-se, ou passará a saber-se, disso, porque pode ser que se comecem a destapar as fossas do BES e do GES, e da finança nacional, e do sistema de financiamento partidário, e da realidade das empresas e dos bancos, e pode ser que venha a ser possível desmascarar aos olhos do vulgo muita gente e muita coisa que passava por ser verdade. E era. Mas também era mentira.


Mas ai!, a verdade portuguesa é demagógica e populista. Só a mentira é elegante e correcta. Por isso podem as duas conviver saudavelmente no país. Pode ser que seja essa a maior desgraça nacional. Sim, desgraça. Nós é que não percebemos. Porque não podíamos perceber os escaninhos ocultos onde se tecem as verdades e as mentiras para consumo do vulgo pagante de impostos. E porque também não queríamos perceber e nos refastelávamos na comodidade da mentira e da verdade e quem viesse atrás que fechasse a porta.

                                                                                  

E como poderíamos nós perceber onde estava a verdade e onde corria a mentira se, devido ao génio do Dr. Ricardo Salgado, e de outros seus pares, nos deixámos intoxicar de probabilidades de consumo e sumptuária, e como crianças insensatas e mal criadas corremos atrás da música e dos fardamentos novos do crédito fácil que nos abria essa probabilidade desenfreada de consumo?


Não, não queríamos perceber. Portugal é um criador de cidadãos que preferem não perceber, e quando ao vulgo pagante de impostos deixou de interessar saber onde está a verdade e onde mora a mentira das suas instituições desde que alguém finja pagar-lhe os consumos e a sumptuária e o deixe fazer figuras de rico.
Como poderemos querer saber da verdade e da mentira se nós somos a mentira e a verdade engalanadas?
Honra e glória aos mais altos valores nacionais e ao Dr. Ricardo Salgado.

                                                                              

Era tudo mentira. E é tudo verdade. É pelos destinos do dinheiro que se percebe muita coisa, incluindo a mentira e a verdade. Tudo (ou quase) funcionava em função dos interesses do BES e/ou do GES e aos poucos talvez se destapem os esgotos da vida nacional, a maldição da dívida pública e privada, a peste do crédito mal parado, a infâmia dos deputados da nação (alguns empregados do BES ou do GES), unânimes em aumentar o próprio salário enquanto cortam no salário de quem os elegeu; o festim das autarquias; as guerrilhas da banca; a tragi-comédia do governo, do presidente e da oposição; a farsa do sistema de financiamento dos partidos (questão central da mentira portuguesa); as aparência da liberdade e da democracia; o espectro constitucional; a nebulosa da Troika; o ilusionismo do crescimento económico; o fantasma da transparência; as vergonhas do emprego/desemprego/sub-emprego; o venalismo da comunicação social. E até o mito fundacional destas coisas todas, o 25 de Abril. 
   Era tudo mentira. E é tudo verdade.
O Dr. Ricardo Salgado prestará decerto inestimáveis serviços ao país quando clarificar – quanto mais não seja provisória e parcelarmente – estes quarenta anos de vida chamada democrática. Pode ser que ele queira explicar algumas coisas – algumas coisas, bem entendido, que as autoridades queiram que seja explicado.


Era tudo mentira. E é tudo verdade.
Honra e glória, repito, aos mais altos valores nacionais do séc. XXI: a corrupção, o compadrio, o nepotismo, o roubo, a vigarice, a legal trapaça, a violência doméstica, o abuso generalizado – da autoridade às finanças, da confiança ao sexo.

                                                                           

E honra e glória ao Dr. Ricardo Salgado que tanto trabalhou para enaltecer e perpetuar esses valores.



E não foi ele o único, longe disso. Foi só o principal. O herói da finança. O magnífico. Por isso mesmo é que a nossa desgraça é grandiosa. Tão grandiosa como esses valores cimeiros da nossa consciência e da nossa nacionalidade para o séc. XXI.


quinta-feira, 24 de julho de 2014

MAS PARA QUE É QUE A EUROPA           
         PRECISA DE CULTURA?

                                                                    

         A Suécia é que está a dar. Na cultura. Ou, aliás, o Norte. Em comparação, evidentemente, com o Sul.


         Na Suécia? 90% de leitores – 50% na Roménia e na Grécia, vá lá; em Portugal nem se sabe, são tantos. Suécia? 61% dos habitantes foram a concertos de música clássica no ano passado. Portugal? 19% - mesmo assim, acho muito. Polónia? 22% - acho pouco. França? 33% - pouco, pouquíssimo. Suécia no bailado e na ópera? Campeões. 34%, quatro vezes mais do que Grécia, Portugal, Chipre. França? 25%. Ao que isto chegou: a França culturalmente com melhores números do que a Alemanha e a Itália…


         Dados do Eurobarómetro.

                                                                          

         A Finlândia também marca pontos na frequência das artes e das culturas. 12%. Parece que não é nada, mas é muito, comparado com Hungria, Roménia e Grécia. E mais: 86% dos búlgaros, 82% dos malteses (não admira, são malteses), 80% dos italianos (escândalo!) declararam não ter posto os pés numa manifestação cultural nem ter praticado qualquer actividade do género em 2013. Enquanto dois dinamarqueses em três foram a concertos clássicos; enquanto só meio grego em quatro fez o mesmo.


         Motivos (desculpas): a crise financeira. Desculpa irrelevante, já se vê. O sinal dos tempos, outro motivo-desculpa, e este sim, relevante, muito relevante mesmo.
         E o sinal dos tempos é a declarada indiferença dos menores de 25 anos pelas mariquices da cultura e da grande arte. E o sinal dos tempos é o nível educacional decadentemente abaixo de cão – e não só por cá.


         E outro dado indicador: essa treta das capitais europeias da cultura (de que nós por cá fizemos um bicho de sete cabeças em 1994) deu o que tinha a dar, pouco, pelos vistos. Outro dado ainda (oh, este sim!): os mercados.
Os mercados! Os mercados!


         Em Itália, a contribuição do Estado para a actividade cultural choca, dizem, e falando de teatros, com a intransigência sindical – que pensava eu ser pecha de outros tempos – que obriga esses teatros a produzir cada vez menos para poder pagar salários a um pessoal que cada dia tem menos que fazer.

                                                                              

         Em Espanha as coisas lá vão andando assim-assim, embora sem público que chegue. Por causa da ferocíssima competição entre regiões. Nenhuma quer ficar atrás da outra nos alindamentos de superestrutura da coisa cultural e todas elas foram construindo auditórios, alimentando teatros de ópera, Valência, Valladolid, Barcelona, Sevilha, Alicante, Pamplona, Saragoça, em suma, elefantes imaculadamente brancos e pomposos às moscas porque o público não tem condições de desembolsar os altos preços do bilhete.


         Na Alemanha persiste o problema da superabundância de estabelecimentos culturais após o redimensionamento do país seguinte à queda do Muro, e no que muito especialmente toca à grande quantidade de orquestras do mais alto coturno.
       Mas para que é que a Europa precisa de música, não me dizem?
            Para que é que a Europa precisa de cultura?


         A Europa desencoraja crescentemente o fomento das artes. Não são precisas. Pelo menos por agora. Lá mais para o verão, depois da crise, logo se vê. O que faz falta são os mercados a funcionar. A estatística do Eurobarómetro fala como gente.  


         E não há melhor e mais gritante evidência do tal sinal dos tempos do que a Internet. A Internet é a totalidade. A Internet é o totalitarismo do momento histórico que dispensa bem a ideologia, grande vantagem. A Internet pode tudo – até pode ajudar a compor música, ao que leio. A Internet desbancou o totalitarismo televisivo para os menores de 30 anos. A Internet cria experts em tudo, cria entendidos, opinadores, colecionadores. E até tipos cultos. E até tipos inteligentes. E até artistas.

                          
         Europa. Pff. Atenção à cidade de Estrasburgo, uma das capitais da Europa. O pessoal de lá planeou ao milímetro o 76º Festival de Música de Strasbourg. Coisa fina, de primeira água. Cartazes de sonho. Programação que era um mimo. Tudo pronto ao nascer do dia 4 de Junho pretérito, quando faltavam três dias para a inauguração de tão auspicioso e refinado festival de música.


Mas o pessoal lá de cima, do escritório, manda dizer cá para baixo:
- Rapazes, eh!, pessoal da ferrúgem... parem com tudo.
- Parar com tudo?
- Sim, não discute.
- Porquê? Isso não pode ser.
- Ai não pode?
- Pois não, parar porquê?
- Ora porquê, vocês têm cada pergunta… pelo motivo do costume, não há verba, a verba que há é precisa para coisas mais importantes.
- Mas ó senhores lá de cima do escritório, Estrasburgo é a sede do Parlamento Europeu.
- Pois é, mas essa palhaçada do festival de música pode ser muito bonito, mas não serve para nada e é muito caro. Vá, menos conversa, comecem lá a arrumar a tralha.
- Em Estrasburgo, uma das capitais da Europa… da Europa da cultura?
- Sim, rapazes, foi a Europa da cultura em tempos que já lá vão. Para que é que na era dos mercados a Europa precisa de cultura?