terça-feira, 24 de junho de 2014

               MENTIRA  NACIONAL
               

     Olha mas que surpresa… Portugal não foi campeão do mundo. 
       Nem foi finalista. 
       Nem foi semifinalista. 
      Nem foi aos quartos, nem aos oitavos de final. 


     E era para ser. Campeão. Pelo menos, era candidato. E dos mais fortes e conceituados – 5º lugar no ranking. E tinha o melhor jogador do mundo…
         E Cristiano Ronaldo, o melhor do mundo, parece que só o é às vezes. E quando joga no Real Madrid.


      Portugal foi campeão, sim, mas nos penteados, nas bizarrias terceiro-mundistas da aparência. Nenhuma outra selecção muda tantas vezes de penteado como Portugal. Caso para psicanalista?


         Tudo o mais, para lá dos penteados, foi mentira.
       Aliás, por uma coisa há que cumprimentar a nossa selecção, jogadores, treinadores, médicos, dirigentes, empresários e jornalistas que os promoveram: todos eles se comportaram à imagem do país.


Eles foram o país em toda a grandeza da sua contumaz insignificância provinciana.
Eles foram a auto-satisfeita mediocridade.
Eles foram a inépcia e a incompetência mascaradas pela publicidade enganosa.
Eles foram a pesporrência do trivial novo-riquismo saloio.
Eles foram a feira das vaidades idiotas.
Eles foram o doutoral nacional-situacionismo engravatado.
Eles foram a mentira. 



sábado, 21 de junho de 2014

     UMA MULHER ENTRE AS SUAS SOMBRAS

Há empresas que estão a obrigar as suas funcionárias a assinar por escrito o compromisso de que não irão engravidar nos próximos cinco anos. Notícia de hoje, 18 de Junho de 2014. Sim, a gravidez das mulheres continua a dar problemas, problemas que eram morais e culturais e que a modernidade e o desenvolvimento transformaram em problemas laborais e económicos.
É bastante acerca disto que vou escrever.


Assim como hoje, num programa da TVI de hora de almoço, ouço a um psicólogo dizer (mais ou menos) que essa história da harmonia conjugal é a mais sinistra mentira da nossa civilização burguesa; que a maioria dos casais se odeia – no melhor dos casos cordialmente, diria eu; que os casos de assassínios das mulheres pelos maridos ocorre mais frequentemente no verão, em tempo de férias, por ser nesse tempo em que não se trabalha que os cônjuges, entregues um ao outro 24 horas por dia, realizam objectivamente o quanto se odeiam.


Pode ser um exagero. Não sei. Mas que tem muito de verdade acho que tem. Parece que passados uns anos, e à medida que se vão conhecendo, a tarefa mais empolgante do casal é cultivar um ódio mútuo, mais ou menos mascarado pelos rituais familiares de filhos, sobrinhos e netos…


Também é muito acerca disto que me deu hoje  para escrever. E começando para chamar a atenção para o que imediatamente se segue.


            

                                         
                                                                 
                                    
                                             
No princípio do século que passou, Max Planck lançava a teoria dos Quanta, Hilbert definia a teoria dos Conjuntos, Landsteiner descobria os grupos sanguíneos, Einstein estabelecia a teoria da Relatividade. Nascia a pintura abstracta e Picasso pintava os seus primeiros quadros cubistas. A tonalidade musical era posta em causa. Estudavam-se as vitaminas. Atingiam-se os pólos norte e sul. A indústria automóvel iniciava a produção em série. Rebentavam os movimentos independentistas nos Balcãs. A China entrava em guerra civil. Em Petrogrado nascia uma insurreição que levaria à vitória do comunismo. Freud introduzia a psicanálise no estudo das doenças mentais. Rebentava a Primeira Grande Guerra.


Mas também é verdade que, acerca da gravidez e da harmonia dos casais, quero contar uma história irreal.


E não é dizer que entre tantos magnos acontecimentos, invenções, descobertas este de que vou falar se agigantasse, mas, pela mesma época, houve um movimento que, se bem apreciado com os nossos entendimentos de hoje, nos apresenta um conteúdo revolucionário e civilizacional que talvez até transcenda os marxismos, os leninismos e os maoismos. Falo do movimento muito lento, quase secreto, da silenciosa emancipação da mulher – e este “silenciosa” tem alguma coisa que se lhe diga.


Foi um movimento de efeitos não espectacularmente visíveis, até porque abafados à época pelos avanços científicos, políticos, sociais e tecnológicos, e surdamente reprimido por uma milenar civilização masculinizada.

                                                                         

Li então que o movimento feminista atingia lances algo críticos precisamente na fase de composição de uma ópera bem especial, Die Frau Ohne Schatten, ou A Mulher Sem Sombra, de Richard Strauss e Hugo von Hoffmannstahl – e por isso eu digo que queria contar uma história irreal.


                                     
                                                                      
Li ainda que nas primeiras décadas do século que passou as mulheres começaram  a ser admitidas nas universidades alemãs; e que em 1908 uma mulher correu o risco (!) de ser nomeada professora universitária. E ainda que, em 1910, 150.000 raparigas frequentavam estudos secundários na pátria (ou na mátria) de Richard Strauss. E assim quando se situava na Alemanha o terreno social mais propício às atitudes reaccionárias relativamente ao papel a desempenhar pelas mulheres na sociedade fortemente masculinizada.
Calha que Strauss gostava de reflectir, na música que fazia (com o poeta Hoffmannstahl a reflecti-lo nos entrechos que lhe preparava), muito do que acontecia no mundo inquieto que lhe fervilhava à volta.

                                                                            

Em Die Frau Ohne Schatten há um coro de crianças não-nascidas. Ou seja, crianças não lançadas à vida, tanto pelas mulheres que não podiam engravidar, como por aquelas que, podendo, haviam feito uma escolha de vida que teria a ver com a libertação do que elas consideravam uma das escravaturas da condição feminina: o ter filhos, o tratar deles, o educá-los, o assisti-los, o comprometer enfim a sua liberdade e a sua disponibilidade para tarefas outras e mais equivalentes às dos homens.


Também nessa ópera há um Canto dos Vigilantes da Noite a incitar as mulheres ao matrimónio e à maternidade, um canto que diz aos maridos e às mulheres da cidade que se amem, pois que, deitados nos braços uns dos outros, são como uma ponte sobre o Abismo por onde o Nada regressa ao Ser.

                                          

Pois só começa a existir o que se pode chamar de família quando existem filhos. As pessoas casam-se e, como se costuma dizer, vão constituir família. E se os filhos não aparecem a família não se cumpriu. E daqui se estabelece que um casamento, visto na lógica de família, é uma passagem para outra condição. A família serão os filhos, os filhos dos filhos, os filhos dos filhos dos filhos…


Mas a filha dos senhor dos espíritos, Keikobad, recebeu do pai um talismã que lhe permite mudar de forma e transformar-se, digamos, numa linda gazela branca. E quando o Imperador captura essa gazela numa caçada ela logo se transmuta na sua forma de mulher e se casa com o Imperador.


Era uma mulher especial, especialíssima. Porque não projectava de si sombra alguma.
O palácio onde vivem Imperador e Imperatriz sem sombra não pertence ao mundo humano. Nem tão pouco ao fabuloso mundo dos espíritos. Embora receba de ambos a influência.
A Imperatriz sem sombra está então dividida entre o prosaico mundo dos humanos e o onírico mundo dos espíritos. O problema é que se ela não achar dentro de pouco tempo a sua sombra o seu bem amado Imperador será transformado numa figura de pedra.


Mas acontece que a ex-gazela branca agora imperatriz no desvario da sua primeira hora de amor físico com o marido perdeu o talismã oferecido pelo pai, e assim perdeu também a oportunidade de voltar a ser um animal, e já não poderá sonhar-se a si mesma no ágil corpo de um pássaro da floresta ou nas formas harmoniosas de uma jovem e branca gazela. E ouve a lamentosa voz do Falcão mágico a anunciar-lhe a infeliz situação: se a mulher não projecta sombra, o marido transformar-se-á em pedra.
A Imperatriz não é um animal – nem pode tornar a sê-lo – e nem é ainda um efectivo ser humano, visto que não tem sombra, e visto que não é mãe, o que, na cosmogonia tão original desta ópera, vem a dar no mesmo, sendo a sombra projectada o ápice da manifestação exterior de uma humanidade a ser integralmente cumprida na capacidade, e na vontade, de gerar filhos.


Também se pode dizer que Carl Gustav Jung associava a sombra do indivíduo à infraestrutura psíquica da sua personalidade. E isto queria dizer um território da mente com o qual será preciso entrar constantemente em compromissos, no caso de o ser humano pretender realizar-se em totalidade.


A Imperatriz queixa-se da severidade do pai. Vira-se para a Ama, um espírito maligno que conhece palavras mágicas e malas artes suficientes para tudo obter.
- Vá, Ama, ajuda a tua menina, arranja-lhe  uma sombra – implora a Imperatriz.
Sim, mas para isso será preciso descer mais baixo do que os varandins daquele palácio que contempla o céu; será preciso descer ao mundo daqueles que por um bom preço são capazes de vender até a própria sombra: os humanos.
O Imperador não é muito mais do que um caçador que persegue gazelas brancas. Dito de outra maneira, quer conquistar mulheres e com elas se deleitar por longas noites de prazer exclusivamente sexual – o que cheira a paralelismo com a dupla Don Giovanni/Comendador: um puro prazer de conquista e sexo fruído sob a ameaça de uma estátua de pedra que acabará por irromper dos cemitérios a pedir contas ao desalmado sedutor por uma conduta de vida da qual o sentimento foi afastado…


Aliás, não é preciso ir mais longe, esta questão do prazer sexual versus procriação tem colocado pesadas interrogações morais. E teológicas, pois então. Nós, género humano, servimos para quê, afinal? Para viver a vida e reter dela alguns instantes de prazer (sexual, for instance)? Para sofrer a condenação e através do aparelho genital lançarmos cruelmente para a vida entes que vão, inexoravelmente, cumprir o mesmo ciclo absurdo de sofrimento?
Não sei, claro.
Sei que a ausência de sombra da Imperatriz é parte da condenação dela ao optar por viver entre os humanos. Uma condenação extensível ao esposo por privilegiar o prazer sexual – sentenciado só por isso a ficar duro e frio como uma pedra.
Condenações, enfim, que a teologia lançou sobre a relação carnal que não tenha por único objectivo a multiplicação da espécie. Ou a subtracção do direito ao prazer que todos julgamos inalienável, ainda quando esse prazer se associa ao mundo dos infernos escaldantes. Muito embora, vamos lá a ver, o catecismo tridentino colocasse como primordial função do casamento a camaradagem entre homem e mulher, a ajuda mútua nos acidentes da vida e nos ocasos da velhice…
Mulher é mãe. É? Deve ser. A fecundidade e a consequente maternidade são condição distintiva de um estatuto de mulher; ou são a sua glória existencial e o seu martírio; ou são a sua afirmação no mundo configurado aos cânones viris – que aliás procuram desacreditar uma imagem  de mulher colocada em pés de igualdade de direitos com o homem, tendo para tanto de renunciar ao que distingue a sua condição da condição masculina: a maternidade.


Ninguém pode eximir os modelos masculinos de convivência ao pecado de ter ilegitimado por séculos e séculos na mulher a busca do prazer sexual em si mesmo, o prazer pelo prazer, tal um homem. Ilegitimação desencadeada – também – pela mitificação poética da figura da mulher num sentido único e hipocritamente grandioso de mãe, de fada do lar, de Madonna sobranceira aos espasmos demoníacos do puro prazer carnal. Por séculos e séculos o homem quis fazer da mulher não uma cúmplice dos seus pecados mas um utensílio, a máquina da descendência, negando-lhe o direito a uma autonomia de prazer, igual à negação do direito a uma particularidade individual, ao exercício da liberdade de dizer não.
Na ópera (digamo-lo em português) A Mulher Sem Sombra, Strauss e Hofmannstahl tomam aparentemente partido na querela machismo/feminismo que se desenhava na cultura germânica do tempo. E tomavam (aparentemente) uma posição misógina ao discutir se a mulher apenas cumpria cabalmente a sua humanidade por meio da gravidez e da conservação dos valores de uma felicidade conjugal; ou se, por outro lado, a mulher teria originalmente a prerrogativa de optar – por ser mãe; por retirar da relação com o homem prazer sexual e assim com ele neste aspecto capital se igualar – decidindo-se pela primeira hipótese.
Mas nem Strauss nem Hoffmannstahl inventaram o que quer que fosse de novo. A moral fabulatória (e fabulosa) bebida em vastas tradições ancestrais já apontava nesse sentido.

                                                      

Nas sociedades ancestrais a mãe foi uma criação que induziu o modelo mesmo de família, ultrapassando a mera realização das pulsões fisiológicas, incorporando os sentimentos enquanto categoria humana superior. Porque quando se falava da mãe, ou se discutia a figura da mãe, logo se trazia ao caso a figura da criança.
E tornando à ópera de Strauss, e descendo ao universo dos humanos, aparece a humaníssima e bonacheirona figura de Barak, o tintureiro (única personagem que nesta ópera, significativamente, tem nome próprio), que vive com a mulher, que é mais nova do que ele, e com três filhos que são só dele e que a jovem mulher não suporta.


A mulher de Barak é o que se pode chamar de uma insatisfeita. Sente-se incompreendida pelo marido. Mas também dá mostras de fraca feminilidade e de petulância…
Arrisco perguntar se não será esta mulher de Barak a personificação que os autores pretenderam fazer das patologias histéricas por então muito faladas devido aos estudos de Freud.
Diz assim ela para o marido:
- Sinto-me comprada e paga para ter um marido diante de mim, para tratar da casa, para fazer a comida. Sei isso. Mas a partir de hoje quero deixar de o saber. Sou tua mulher há dois anos e meio, e do meu ventre não tiveste fruto algum. Não fizeste de mim uma mãe. Pus esses desejos fora da minha cabeça e agora é a tua vez de pôr de parte os desejos que te são caros.

                                                               

Lembrei-me da Flauta Mágica. Tem alguma relação com a A Mulher Sem Sombra. Ambas as óperas decorrem num universo mágico, num lugar inexistente, sem espaço e sem tempo. E por sinal até foi na Flauta Mágica que a dupla Strauss/Hofmannstahl bebeu alguma coisa da inspiração para a Mulher Sem Sombra. Sem prejuízo, claro, de outras ressonâncias misteriosas e mais para o lado wagneriano.
Mas é a interacção dos mundos e dos valores correspondentes a cada um desses mundos o que interessa. O pai invisível da Imperatriz, o semi-divino Keikobad (nome de odor persa) pode ser uma citação do Sarastro mozarteano e dos intransigentes e profundos valores místicos.


E se Strauss reflectiu de modo poético na Mulher Sem Sombra  as vicissitudes sociais do tempo em que vivia, também Mozart, ora essa, viveu uma época de grandes reviravoltas históricas (ao tempo da Flauta Mágica  a Revolução Francesa já levava dois aninhos de vida), e havendo muito quem identifique algumas das personagens da dita Flauta Mágica com personalidades da real vida vienense do tempo. A Rainha da Noite seria a imperatriz Marie Therese, Monostatos seria um maçon renegado, Tamino seria o imperador Joseph II e por fim, Pamina seria nem mais nem menos do que o povo austríaco.

                                                                                                          
Mas algures, num ignoto ponto do imaginário humano, as crianças não nascidas ainda se lamentam:
- Queremos chamar por um pai… queremos chamar por uma mãe… venham… que os vossos passos vos conduzam até nós…


Já se vê que o mundo fabuloso tem leis implacáveis. Uma dessas leis é que todo o espírito-mulher só possa circular pelo mundo dos humanos depois de submetida a provas – cá está outra relação Mulher Sem Sombra/Flauta Mágica  - e podendo o espírito-mulher permanecer no mundo humano se o seu humano esposo a engravidar. Ou desde que esse espírito-mulher possa projectar sombra, o que, para o caso, vem a dar no mesmo.
 A mulher de Barak admite que o desejo de ter filhos lhe foi banido da mente, tal como deveria ter sido (e não foi) da mente do marido. É então que vai ser tentada pelas malas artes da Ama. A Ama acena-lhe com paraísos maravilhosos, sensações deliciosas, alucinações mágicas. A troco de jóias, peles e belos amantes a mulher de Barak certamente não se importará de vender a própria sombra, e com ela os filhos ainda não nascidos.


A Imperatriz observa e escuta tudo em silêncio. Apercebe-se à custa de quê ela ainda poderá gozar do direito a possuir uma sombra.
Vejamos a coisa por outro lado. Decerto cansada das restrições que o Código Civil napoleónico havia infligido à sua condição, a mulher toma como ponto fulcral para a sua maioridade cívica a equiparação ao homem. E antes de mais quanto ao direito à educação e ao voto.

                         

Mas já com a Revolução Francesa aparecera no firmamento das instituições a Sociedade das Mulheres Revolucionárias, que em 1791 chegara a apresentar à Assembleia Constituinte a Declaração dos Direitos da Mulher. Alguns pensadores ditos utópicos, Proudhon, Fourrier, Condorcet, Saint Simon, até elaboraram os princípios de uma doutrina de emancipação da mulher.

                                                                               

Em 1792, Mary Wellstonescraft, em Inglaterra – e já que a mulher só parecia existir para agradar ao homem – exige para a mulher os mesmos tratamentos, educação e direitos políticos que o homem, e ainda mais o direito de ser julgada pelos mesmos padrões morais. Mas depois, já no século XIX, apareciam as mulheres do tipo Georges Sand. Aparecia o movimento feminista nos EUA.


Todavia, em Inglaterra, as coisas apresentavam-se mais radicais, chegando mesmo à violência física. Defendiam-se os direitos do trabalho feminino. Começava a publicar-se o Women’s Suffrage Journal.

                                                       

E as crianças não nascidas continuam a implorar:
- Mãe, deixa-me ir para casa… a porta está aferrolhada, não podemos entrar… mãe, estamos ao frio… mãe, temos medo do escuro…
A mulher de Barak diz:
- A minha alma está cansada de maternidade, mesmo sem alguma vez a ter experimentado.
- Renuncia para sempre à maternidade e despreza o som dos que não nasceram! – replica a Ama. – Ó mulher especial entre as mulheres! Ó tocha acesa na noite escura! Poderá o teu coração aspirar a que, através do teu corpo, venham ao mundo mais uns quantos pequenos tintureiros? Poderá o teu corpo perder a elegância e tornar-se uma estrada batida? Poderá a tua beleza desaparecer de um momento para o outro?

É por volta da Primeira Guerra Mundial que decorrem os trabalhos de concepção, composição e estreia da Mulher Sem Sombra. Uma Primeira Guerra Mundial em que as mulheres substituíram no trabalho muitos dos homens chamados às frentes de batalha. Um momento historicamente decisivo na luta pela emancipação feminina. Um dilema imenso. Por um lado, o matrimónio, a escravizante vida doméstica, a gravidez, o tratamento da prole. Por outro, a independência desses trabalhos… mas também desses afectos; um pesado sentimento de insatisfação, uma insuportável falta de convívio com as emoções específicas da feminilidade.


Já antes dessa guerra primeira, o movimento emancipativo registara vitórias. No campo económico, designadamente, conseguindo-se que o trabalho feminino fosse remunerado. E outros passos positivos no campo da educação, quando foram fundadas escolas especificamente para mulheres e quando enfim as mulheres tiveram acesso à universidade.


Os homens sentiram-se inquietos. Sim, sem dúvida. E por aqui se podem compreender  os repetidos apelos institucionais (e políticos, pois então) ao regresso das mulheres ao lar, quer dizer, ao seu lugar tradicional na hierarquia da família, da casa, do casamento e da maternidade.


Estreada em 1919, por vontade expressa de Strauss de o fazer em tempos de paz, ainda que acabada de compor em 1917, Mulher Sem Sombra lançava exactamente sombras que espargiam ameaça de horrores sociais. Ou ameaças de uma modernidade temida pelos mais conservadores, a modernidade que entre todas as desconformidades trazia mais essa, o advento da condição feminina. A fada do lar, a subalterna do mundo masculino, abalançava-se à equiparação de direitos com o seu “senhor” e estava a ponto de o conseguir.
Era um tempo de viragens históricas que expunha as almas aos medos da novidade – eram os revolucionários, eram os anarquistas, eram os bolchevistas; eram as músicas a fugir da tirania da tonalidade; eram as pinturas a escapar da figuração do real; era o automóvel; era a nova ciência da psique a descobrir os mais ocultos segredos pessoais. E era a mulher:  o inferno para uma estabilidade sacrossanta e masculina.


Uff! Aonde é que iremos parar?
Seria o limiar de uma regressão histórica aos tempos do matriarcado? Seria (para os homens) o movimento emancipativo da mulher mais perigoso e incontrolável do que o próprio, e diabolizado, comunismo?
E era mesmo…

                                            II

Já nos alvores do século XIX a medicina, orientada no sentido do orgânico, começava a entender os funcionamentos do psiquismo. E ainda no século XIX também a medicina, digamos, mental, levava uma volta: descobriam-se as localizações cerebrais que tiveram no celebérrimo Prof. Charcot, da escola médica parisiense chamada de Salpêtriere, um fervoroso cultor – e é de notar que entre os assistentes de Charcot na Salpêtriere se contava um desconhecido e jovem médico natural de Viena chamado Siegmund Freud.


Sustentava Charcot que as perturbações psicológicas se ligavam directamente a perturbações funcionais dos centros do cérebro, onde a mais pequena lesão anatómica determinava certas perturbações orgânicas. E a perturbação que mais problemas colocava era aquilo a que chamavam de histeria. Charcot estudara a esclerose lateral amiotrópica, a esclerose em placas, vendo-se depois desse estudo em presença da chamada histeria.
Bom, histeria, etimologicamente derivava da palavra grega USTERA, que poderia significar útero, mas que também englobava um sentido de matriz. Uma USTERA que no dizer de Platão se dava a longas migrações pelo corpo, que desejava ardentemente gerar crianças, e que quando permanecia estéril se indignava e se punha a percorrer todo o corpo feminino, a obstruir canais, a dar origem a doenças variadas e desvairadas. Uma maléfica mobilidade que logo outros entendidos do tempo, Galeno, um deles, se apressaram a desmentir.
Chamavam um nome à teoria de Charcot: organodinâmica. Charcot admitia o carácter psíquico da histeria, postulando a dependência dessa histeria de lesões ocorridas em localizações cerebrais determinadas.
Mas, é claro, as coisas são assim mesmo, logo em seguida houve seguidores e assistentes de Charcot que teorizaram em sentido inverso, afastando-se do mestre, fundando novas escolas de pensamento neuro-psicológico. Babinsky; Bernheim, em Nancy; o próprio Freud, em Viena. 
Babinsky chegou a desenhar uma carta topográfica das arquitecturas do cérebro humano, separando as afecções orgânicas das psíquicas e da pura histeria. As perturbações histéricas não seriam localizáveis no sistema nervoso e seriam o resultado das perturbações da personalidade e das lesões da vontade. A  histeria poderia operar uma simulação inconsciente de outras sintomatologias, poderia disfarçar-se de outras doenças, o que dificultaria o diagnóstico e o consequente tratamento.

                                   


Por processos mágicos, e durante uma ausência de Barak, a Ama da Imperatriz põe diante dos olhos da mulher do tintureiro um efebo de grande beleza. E desafia-a a realizar com ele todas as fantasias eróticas que uma mulher insatisfeita com a sua relação conjugal possa acalentar.


A mulher de Barak repele o marido, sim, mas, repelindo o marido e não querendo gerar filhos dele, não tem amantes. Parece ser um carácter genuíno de mulher, a braços com o que pode entender por escravidão da sua sexualidade – ou da sua feminilidade – e das últimas consequências dessa sexualidade, a maternidade.
Strauss, não sei, acho que  deve ter querido seguir as modas científicas do tempo em que compunha esta ópera, e pretendido tipificar musicalmente na mulher de Barak o que consideraria, muito à feição freudiana, um caso de histeria feminina.
Na mulher de Barak não há transferência para outro homem do desejo físico que não sente pelo marido. O que pode haver é uma contenção do próprio desejo nos limites do seu corpo e da sua mente. Uma espécie de amor mental, se assim se pode dizer, consigo mesma, ou com a imagem que faz de si mesma e da sua condição.


A mulher de Barak renuncia às delícias que considera perversas de um prazer que lhe chegava dos sentidos e da consciência na figura de um homem, o efebo. E assim recusava figuradamente os prazeres próprios de uma cultura sexual conformada aos modos machistas, uma cultura sexual inventada pelo grande inimigo da sua liberdade moral, política e física, o homem, o macho dominador.
E então, de caminho, e por falar nisso, à concepção da histeria passa a opor-se a interpretação funcional e fisiológica e passará a ser estudada não como doença neurológica, e sim como um síndroma reaccional de proveniência emotiva e só tratável pela psicoterapia.
E de caminho, digamos também que por muito tempo a única histeria considerada foi a feminina. Charcot ainda admitia a recorrência da perturbação por motivo de uma pressão ovárica e realizou experiências de hipnose que ficaram famosas nos meios da intelectualidade parisiense de então, em memoráveis sessões onde, por exemplo, Guy de Maupassant era presença assídua.


Mais tarde virão a observar-se casos de histeria masculina. Foi nas situações de guerra, nas frentes de combate, já na guerra de 14/18, e já depois, na de 39/45. No auge de uma crise histérica, soldados havia que se dobravam em arco de círculo, cabeça para trás, aos saltos nas camas das enfermarias a pontos de tocarem o tecto.

 
                                                                                                                   

 Mas voltando ao meu caso clínico-operático… a Imperatriz discorda dos métodos usados pela sua Ama e cada vez mais se sente atraída pela Humanidade, embora sabendo que nenhuma criatura espiritual poderá conviver com os humanos sem ser duramente punida. Grande verdade…
Na figura de Barak a Imperatriz vai buscar a exacta medida da natureza humana. Identifica um Barak trucidado pelas suas certezas e pelas suas ignorâncias, dilacerado entre o sopro divino da tolerância que há na sua nobreza de alma e o telúrico fulgor que o acomete ao surpreender a sua mulher já privada de sombra. Mulher que acabava de anunciar a Barak o fim dessa fantochada da fidelidade conjugal, apesar de não ter consumado nenhum acto adúltero com o efebo que visionara através das malas artes da Ama. Tudo ficara por uma visão, uma imagem mental.
Percepção e imagem. Entre estes dois pólos vagueou a medicina no caso da histeria. Sono e vigília. Realidade e sonho. E no pulsar deste dualismo da natureza humana, Freud preparava-se para entrar em grande no restrito panteão da glória científica.



A experiência clínica das situações de guerra ensinava que os soldados feridos podiam, em repouso, de noite, reviver as emoções do combate, quando no próprio fragor da batalha de pouco se tinham apercebido. Por meio da imagem mental reproduzia-se a emoção experimentada quando espírito e físico se achavam em estado de tensão e defesa.
Relembrando o vagabundear incansável do útero referido por Platão, já os antigos pensavam a histeria como perturbação de ordem sexual e comparavam a crise histérica a um orgasmo.
A mulher de Barak, como disse, não cometera, em acto, adultério algum. Induzida pela Ama feiticeira tivera a visão apetecível do efebo. Só. A imagem mental de um adultério. Só.
        Não deixando de ser verdade que a mulher, acabada de renunciar à sua sombra, alienando de si o direito a uma identidade cultural, e natural, declarava ao marido que o melhor seria também ele tirar o sentido daquelas crianças não nascidas que ao espírito lhe imploravam o sopro de vida. E Barak, de bonzão que se mostrara até aí, torna-se violento. Aparece-lhe nas mãos a espada provavelmente enviada pelas crianças ainda não nascidas para castigar a mãe que ainda não o era e lhes recusava o direito ao ser. E perante a violência do bom Barak, a Imperatriz declara:
        - Prescindo da sombra. É uma sombra de sangue.


        E vem a ser Freud a colocar a histeria sob os auspícios do sexo com a teoria do recalcamento sexual.
       Nas meninas, a tendência ao recalcamento sexual parece desempenhar um papel maior do que nos meninos, e quando os impulsos sexuais se manifestam tomam de preferência a forma passiva – escreveu ele em 1905.
       Mais tarde, em 1915, por volta do tempo de gestação de A Mulher Sem Sombra, o mesmo Freud escreveria: É preciso considerar também as forças que dificultam o desenvolvimento sexual, o desgosto, o pudor, a moral, como depósitos históricos das inibições exteriores que o impulso sexual tem na psicogénese da Humanidade. Pode observar-se facilmente que a repercussão destas inibições se faz sentir espontaneamente no desenvolvimento do indivíduo quando a educação e outras influências exteriores as provocam.


      E agora Barak e a mulher estão metidos numa prisão. Incomunicáveis. Separados. A mulher admite para si mesma a tentação do adultério a que teve forças para resistir quando fez apelo ao afecto conjugal. Separados e incomunicáveis, cada um deles só pensa em reencontrar o outro…


      Confrontada com os sofrimentos humanos, a Imperatriz foi tomando consciência das dificuldades dos que habitam este mundo, homens e mulheres, e sendo a primeira dessas dificuldades a de vencer a morte. Ou a de viver plenamente a vida, pois compreendeu que os sacrifícios e os sofrimentos são o alto preço que os humanos pagam por essa plena (talvez absurda) fruição da vida.
        Eu não sei é se destes magnos problemas místico-existenciais poderemos partir para a irrelevância em que se poderá tornar esse conflito entre o mundo masculino e o mundo feminino, ambos sujeitos à tragédia da condição humana, heróis e vítimas uns e outros, e joguetes das poderosas forças obscuras que habitam neles. Não sei.


Mesmo já na Flauta Mágica  o conflito é entre as forças do matriarcado e as do patriarcado. Sarastro e Rainha da Noite assumem a paternidade e a maternidade específicas e inerentes ao universo em que se movem. E Sarastro e a Rainha da Noite passariam a ser símbolos cantantes desses dois poderes, dessas duas ordens de razões em confronto desde as eras mais remotas.

                                                                          

Assim como  A Mulher Sem Sombra, vê as luzes do palco nas históricas imediações da Primeira Guerra Mundial, e no contexto de um quantidade de estudos, descobertas, invenções e movimentos que passariam a marcar para sempre a História humana, a Flauta Mágica é concebida (ou mesmo inspirada) na esteira das perturbantes notícias da Revolução Francesa. Revolução, aliás, onde as mulheres tiveram os seus clubes próprios, de inspiração mais ou menos maçónica, embora de sinal feminino.


                                        

Mas para se ter uma pálida ideia de quanto esta questão da condição da mulher era importante na Alemanha, diga-se que em 1904 se fundara em Berlim a Liga Nacional Para o Voto Feminino. Um voto feminino que acabou por ser aceite, embora muito, muito gradualmente.
        Um século antes, 1804, na Inglaterra a mulher podia ser eleitora (não elegível) para o municípios rurais. E eleitora para os concelhos de condado só depois  de 1888 – e elegível em 1907. Até ser eleitora e politicamente elegível sem restrições em 1928.
        Em França, contudo, apesar das Georges Sand, das mesdames de Staël e de Curie, a mulher deixava –se ficar muito mais tempo paralisada pelas restrições e pelas sujeições ao universo masculino (o pai, o marido) por imposição do Código napoleónico. E seria preciso esperar por 1944 para a mulher francesa ver consagrado o seu direito ao voto.


                                                                                               
        Pode nem ser insignificante dizer de Mozart e de Strauss que foram dois misóginos geniais que iluminaram o mundo e a vida de homens e mulheres.
Em Mozart podemos compreender isso ao percebermos que na Flauta Mágica  cabe à mulher a representação das forças do obscurantismo, da irracionalidade e do mal, e tudo isso passando pela personagem da Rainha da Noite e das suas vocalizações excessivas, intransigentes, orgiásticas… demoníacas. E é ao homem patriarcal, gravemente representado pelo cinzentão do sacerdote Sarastro, a quem compete o papel de guardião da paz e da concórdia, da luz e do conhecimento.


        O arrependimento da mulher de Barak por ter cedido a sua sombra e admissão de culpa por ter sido tentada pelo adultério, leva à reconciliação entre os cônjuges - o que dá a ideia de um regresso à normalidade, e normalidade que no ver dos autores da ópera era uma naturalidade. Uma naturalidade machista, pode dizer-se. Ou, no melhor dos casos, uma naturalidade que significava a continuação do compromisso entre os sexos, feito, já se sabe, sob a batuta dos homens.
        Da baixeza da prisão, Barak e a mulher, por intermediação de um espírito, ascendem às esferas superiores. Mas continuam a procurar-se. A Ama está deitada aos pés da Imperatriz que dormita na antecâmara do templo. E a Ama fica possessa ao ver os dois miseráveis mortais circularem em territórios reservados à elite. E trata de inculcar nos dois esposos as imagens mentais e as enganosas palavras, por forma a confundi-los no desejo de se reencontrarem.


                                                                    

       A Imperatriz dormita na expectativa da decisão que há-de chegar do mundo dos espíritos quanto ao seu destino. Depois é levada à presença de uma austera figura de rosto vendado. Que lhe diz:
      - A água da vida escorre de uma fonte dourada. Bebe dessa água e a sombra da Mulher será tua.
        A Imperatriz recusa. Ouve os lamentos desesperados de Barak e da mulher. Procuram encontrar-se e não há meio de o conseguirem devido às interferências malignas da Ama.
        A Imperatriz está em processo de humanização, quer encontrar o seu lugar no mundo humano. Levanta a cabeça e vê no seu trono, já quase todo petrificadinho, o Imperador seu marido. Os olhos dele ainda piscam, estão vivos, vão resistindo ao processo de petrificação e comunicam-lhe uma angústia sem nome. Há uma voz a tentá-la:
        - Vá, diz: “eu quero”. Se o disseres, a sombra da mulher será tua. Se disseres “quero”, aquele que está ali sentado e meio feito em pedra voltará à vida e viverá contigo.
        - Não, não quero – responde a Imperatriz.


     Finalmente compreendera a Humanidade. É por isso que despede a Ama, o mediador com o mundo dos espíritos, a componente sobrenatural da sua vida. Banida a Ama, a Imperatriz corta definitivamente as pontes com o universo dos sobre-humanos, com o sobrenatural. Não conseguiu uma sombra, é certo. Em compensação aprendeu com os humanos o valor do sacrifício e agora quer viver em plena humanidade, nem que para tanto tenha de sacrificar o ente que lhe era mais querido, o Imperador, em lugar de precipitar a infelicidade de terceiros.
        A Imperatriz tomou a sua decisão em plena liberdade, e como tal suportando o ónus da responsabilidade. Liberdade e responsabilidade. Conceitos sombrios. Uma mulher que gera naturalmente os seus filhos ficará para sempre atolada na suas responsabilidades domésticas e limitada na fruição livre da vida? Pergunta-se. E pergunta-se se uma mulher liberta do fardo da maternidade será uma mulher inteiramente disponível para a liberdade de Ser. De ser mulher. Não de ser um quase sub-produto masculinizado da natureza. Pergunta-se…


          A Imperatriz recusa o oculto, o sobrenatural, mundos complementares ao concreto e ao visível, e que, isoladamente, não fornecem a explicação da vida (como o racional não fornece), não nos dão a integral medida do curso do tempo ou da totalidade do espaço.
 
Sobrenatural e oculto podem significar uma vontade de negação de negação; de negação da morte, a suprema negação; a negação do fim. Mas a riqueza do real concreto da vida assenta na aceitação de um glorioso e humano destino de finitude, porque o sentido da vida é o próprio aleatório e porque o real é a oportunidade que se ganha e que se perde. E pela oportunidade ganha ou desperdiçada se vence ou se desperdiça a própria vida.
A Imperatriz interioriza uma nova aspiração: viver; viver entre os humanos a plena e frágil humanidade do seu estatuto, recente e magicamente adquirido. E Barak reúne-se por fim com a mulher. E ambos se regozijam, pensando na sua futura e exaltante vida de cuidados domésticos.
Quando uma sombra começa a despontar de si, a Imperatriz compreende que superou a mais espinhosa das provas, que era a da disponibilidade para um sacrifício.
O Imperador, que se deixara estar em silêncio, desce do trono e alegra-se com o cântico das crianças que não nasceram e a que doravante o casal pode franquear as portas da existência.



Por falar nisso, em Portugal realiza-se um congresso feminista em 1924, e o voto é permitido às mulheres desde 1931.