quinta-feira, 6 de março de 2014

     CONTOS DA MEDIOCRIDADE ACEITÁVEL

Em 1999: 4500 manuscritos de autores desconhecidos foram enviados à famosa editora francesa Gallimard; 2500 à Minuit; 3500 à Flammarion. Grasset recebe 60 textos por semana. Albin Michel 50 por dia. Mas se uns afirmaram que de há cerca de 10 anos antes as editoras francesas recebiam duas vezes menos manuscritos do que já haviam recebido, outros diriam que as remessas de originais pelo correio haviam triplicado.



                     



E tudo isto mesmo que se saiba que 99,9% dos textos de autores desconhecidos do público enviados às editoras são amavelmente recusados.

     

Em qualquer casa editora, pelo menos teoricamente, o primeiro crivo de leitura de um original de autor desconhecido elimina logo 90% dos manuscritos.


                                                    

A moral da edição. Os maduros que nunca escreveram uma linha de jeito mas que gostam do que os outros escrevem e arriscam o seu rico dinheirinho para dar a conhecer ao mundo aquilo que outros escrevem. Aquilo de que eles próprios gostam, já se vê, ou aquilo que o comércio livreiro lhes impõe como negócio.
Arriscar dinheiro a editar livros que o mais certo é não venderem o suficiente pode ser uma questão de moral. É com certeza.



Mas fala-se mais de quê? Daquilo que os editores não gostam, daquilo que eles recusam por não gostarem, ou daquilo que recusam por lhes poder ser prejudicial ao negócio.
Se calhar, a condição moral primeira de um editor que se preza é ter a coragem de recusar. Já Grasset, o famoso editor francês, no seu livro La Chose Littéraire, dizia que quase não chegava, em média, a publicar um em cada 50 manuscritos que lhe eram presentes.
       Vamos lá a ver, moral que seja o negócio, e cultural, tudo bem, mas os editores não são exactamente filantropos, nem as editoras são organizações de caridade. A finalidade delas é vender. E ganhar dinheiro. Ponto final
E já uma vez li numa entrevista do Gabriel Garcia Marquez, quando ele começou a levantar cabeça e a tornar-se uma celebridade, que enquanto ele, escritor que vendia muito bem pelo mundo inteiro, podia comprar, por hipótese, um automóvel, o editor dele poderia comprar cinco. Por mais moral e mais cultura que ande envolvida no ramo, os editores são, primeiro que nada, comerciantes, e lá governam a sua vidinha, e lá têm os seus negócios, as suas razões para publicar ou não publicar isto ou aquilo.
E quando gosta de um manuscrito, um editor pode perguntar-se: “a quantas pessoas poderei comunicar o prazer que experimentei ao ler este manuscrito? Qual é o meu interesse em vender este texto?”

           

Uma obra de estreia poderá não interessar pessoalmente o editor. Poderá entretanto interessar à casa editora, poderá interessar comercialmente. Grasset assevera com respeito à obra literária: é questão de admiração ou de desprezo. Não existem sentimentos intermédios. Mas também sabe que não é possível a um editor publicar apenas as obras que lhe interessam pessoalmente. Sabe que um compromisso é fatalmente necessário na selecção, porque uma coisa é a natureza absoluta do seu julgamento e outra muito diversa são os interesses comerciais da sua casa editora – e os gostos do público comprador, já se vê.

             

Mas pode perguntar-se: porquê tanto e tão intenso desejo de publicar uma prosa, sabendo-se da enorme dificuldade, da enorme concorrência?
E será que qualquer um pode ser escritor?
Pelo que se vê hoje em dia… pode.

                    

A literatura ensina a quem a pratica e ver-se a si próprio e a ver o mundo de uma maneira mais precisa e completa: frase do intelectual francês Jean Paulhan. E nem importará muito a qualidade de literatura que cada um possa fazer. Seja essa qualidade o que for, representa um esforço para observar o mundo como se o próprio lá não estivesse. Ou talvez seja mesmo esse o fim último de toda a literatura.
As pessoas escrevem, antes de mais, porque se sentem sós, isoladas no mundo, a bem dizer inexistentes – opinião de um leitor de uma grande casa editora francesa - , confissões, confidências, traumatismos, sonhos…

                 

                                                

Mas será que somos todos assim à partida escritores potenciais? Quero crer que não. Porém, ao contrário da música ou da pintura, todos nós, mais ou menos, dominamos o utensílio básico da literatura, sabemos escrever, sabemos os rudimentos, pelo menos, da nossa língua. Todos escrevemos cartas. E todos, por exemplo, na escrita de cartas, somos assaltados por um primeiro pensamento técnico-literário: “qual será a melhor maneira de interessar, de tocar o coração do destinatário da minha carta?” Muitos de nós mantêm, ou mantiveram, um diário pessoal e íntimo, que serviu muitas vezes de memorial e de guia de vida, e de vidas, acontecidas e por acontecer, e quase inconscientemente também para esse diário procurámos uma forma, uma eficácia, ainda que ele tivesse vocação de ser lido só por nós. Diz um editor francês contemporâneo que a prática da escrita, parecendo que não, é uma prática de massa, quase como o desporto de massa. A escrita é, portanto, património de todos. Todos aspiramos à narração, todos gostamos de contar, todos queremos contar, contar…


Ou será que publicar é um direito tão incontestável como o direito de escrever e de contar o que nos apetece? Claro que não é.


Publicar uma prosa ou umas versalhadas é, para muita gente, o ápice da realização pessoal, é o ser-se considerado e reconhecido pelo mundo, é ter um estatuto e uma respeitabilidade de ordem incomum. Ser um escritor.
Mas publicar pode não ser a parte mais difícil desta gigajoga de ser escritor. Pode não ser. Pode ser incomparavelmente mais difícil, depois de ser publicado, ser lido. Quero eu dizer, ser vendido. Ser muito lido significa vender bem aquilo que se escreveu. E ser escritor é merecer ver publicada uma segunda obra.

                                                    

Haverá que escolher nesta coisa da escrita, parece-me a mim, uma de duas frustrações: ou ser sistematicamente recusado pelas editoras; ou ser aceite por uma e não ser lido, não vender, não merecer uma segunda chance, ir para o rol dos embrechados, ter estatuto de mono editorial.


Porque também há que contar com a promoção do objecto, sim, do objecto indefeso que é um livro. Um livro que o vendedor pode pôr a venda na montra da loja, no principal escaparate da casa, ou numa prateleira tão baixa que logo à partida nos convida a não curvarmos a espinha, ou numa prateleira tão alta que o livro fica ali só por ficar, sabendo-se que ninguém lhe conseguirá ler distintamente o título.
E porque é que o livreiro pôs o livro acabado de receber da editora na montra, com grafismos e chamadas de atenção para ele, e não o pôs na prateleira do fundo ou na prateleira do alto? Porque alguém lhe pagou percentagem para ele o pôr na montra e não o esconder numa prateleira. E quem pagou? E pagou quanto?  E quem lhe pagou a publicidade nos jornais e nas televisões? Bom, será melhor não avançarmos muito por este caminho…


Claro que hoje já se pode ser escritor de Internet. A Internet é uma nova modalidade de glória literária, outro meio de auto-edição, ou de edição de autor – aquela edição a que, salvo raríssimas excepções (Miguel Torga), e fora dos círculo dos amigos, ninguém passa cartão, porque não é publicitada, porque não está nas montras nem nos melhores escaparates, porque não é promovida. Porque, se calhar, não foi bem distribuída. Mas mesmo na Internet o problema de encontrar leitores e de os interessar persiste. É preciso criar um site, um blog (como este) torná-lo apetecível. Também há meios e círculos a que pertencer no ambiente cibernético.
O autor desconhecido que se dirige a uma editora, se não o envia pelo correio, traz consigo o seu manuscrito e insiste em avistar-se pessoalmente com o dono da casa, o nome famoso da edição. Quer ter a certeza de que será ele a ler o seu romance, pondo muitas vezes  esse detalhe como condição de entregar o manuscrito àquele editor.

                                



Mas muitos dos originais – os que mais nos interessam agora para o caso - chegam às editoras pelo correio. Alguns chegam a aparecer acompanhados de caixas de whisky. Outros levam cartas extensas do próprio autor a explicar o que quis dizer  verdadeiramente na sua obra. Outros ainda proclamam a originalidade da sua história, porque são pessoas pouco lidas e podem afiançar que nunca ninguém tratou aquele assunto e que nunca ninguém contou aquela história, porque a candura dos jovens autores desconhecidos, dizem,  é muita.


Mas, claro está, cerca de metade – estou a reportar-me ao universo francês – dos manuscritos avaliados nas editoras, são recomendados. Não há maneira melhor de publicar nem que seja a maior das mediocridades e das xaropadas do que ser-se recomendado. Por quem? Ora por quem… por escritores, por jornalistas, por livreiros. Ou por amigos influentes. Amigos de uns e de outros. Mas também acontece um pouco em França os grandes prémios literários adorarem consagrar desconhecidos.


Suponho que uma das grandes preocupações de um estreante que manda um manuscrito a uma editora é a convicção de que vai ser realmente lido de princípio a fim e de que o seu manuscrito, por falta de recomendação ou de cunha, não é passado em branco, posto de lado como coisa que, se não foi recomendada é porque não interessa. E é evidentemente isso mesmo que acontece. Ninguém lhe vai ler o original porque ninguém o recomendou. Por isso muita gente perguntava a Bernard Grasset se lia de facto, pessoalmente, todos os manuscritos que lhe enviavam e se era ele a tomar todas as decisões de recusa ou de publicação. E o mesmo Grasset assegura que em muitos casos, quase a maior parte, o processo desencadeava-se pelo conhecimento pessoal. E diz mais, diz que guardou, agrafados aos relatórios de leitura de manuscritos insignificantes, ou mesmo intragáveis, as cartas e os  entusiásticos bilhetes de recomendação de muitos grandes nomes da literatura a insistir para que publicasse as maiores mediocridades escritas pelos amigos.
Sim, pois, o amiguismo. Já em 1929 o amiguismo literário estava por todo o lado e conduzia a tudo. Nem que fosse na literatíssima França.
Bernard Grasset assegura que é ele em pessoa a cortar os cordéis da encomenda de um manuscrito de autor desconhecido acabada de chegar ao seu escritório. Bernard Grasset abre o pacote. Detém-se na primeira página. A importância que pode ter uma primeira página…

                                                             

     
      E a primeira página é decisiva para Grasset. Grasset lê a primeira página. E como é um romântico impenitente fica invariavelmente na expectativa de se deparar com uma obra-prima, espera sempre de uma primeira página uma espécie de revelação. Enfim, espera a obra prima mas, cuidado, está sempre com a alma pronta para a decepção, porque as obras medíocres são indiscutivelmente mais numerosas do que as obras de talento.
Mas pergunto se será de exigir que todas as potencialidades de um livro  se revelem logo na primeira página.


Parece que não. Grasset, não espera ficar maravilhado numa primeira página. Isso seria uma excepção, um milagre. Mas uma primeira página pode dizer muita coisa sobre tudo o resto, pode prender ou desinteressar – eu por mim nem diria uma primeira página, diria uma página, uma qualquer página; numa livraria, ao ler uma página (quantas vezes um parágrafo) de um livro de ficção, percebo logo até que ponto vai a minha consonância com o autor, até que ponto a obra me interessa e porquê. Uma questão de instinto, de treino, e de se saber o que se pretende de um livro, um livro que se queira dar a conhecer ao mundo, ou um livro que se queira simplesmente comprar.

                     

Bom, Bernard Grasset vai lendo, passa a primeira página, a segunda, leva o manuscrito para casa, recolhe-se com ele, vai lendo. Vai lendo até que se choque com a falta de qualidade, com a mediocridade do manuscrito. Nesse caso devolve-o imediatamente ao autor. Mas quando o original logrou interessá-lo, Grasset faz dele a sua tarefa pessoal.


Paul Otchakovsky-Laurens, da editora Albin Michel, também faz muita questão de ser ele a abrir os embrulhos de manuscritos que chegam, e diz que é um trabalho excitante, abrir, folhear, ler linha aqui parágrafo ali, sensibilidade desperta à espera de alguma coisa que o provoque no manuscrito de um desconhecido.
Reparem em três opiniões de editores quanto a critérios de publicação:
Um escritor reconhece-se logo quando se lê, quando temos vontade de virar a página, quando se está perante um universo pessoal, perante a força de uma personalidade.


       Quero reconhecer os textos que farão avançar o mundo e cintilar uma época.
  
                                                                     

       O que procuramos é o nunca lido, uma determinada espécie de de escrita, de encenação literária.


O tema do manuscrito do escritor desconhecido: será apaixonante? Instrutivo? Actual? De acordo com a moda? Ultrapassado? Trágico? Heróico? Regional? Humorístico? A que público se dirige, homens, mulheres, infantil, especializado?
Sinceridade de escrita, no critério de Bernard Grasset. Nada de efeitos fabricados. Uma obra que responda forte e sinceramente a um profundo desejo de a escrever e de a publicar, a uma necessidade forte de se “dizer” aos outros. O contrário da mentira literária do principiante que apenas pretende fazer figura de escritor e que gosta de ser olhado pelo mundo e pelos amigos como um escritor.

                   

Mas por alma de quem, perguntar-se-à, e em nome de quê, se recusa a esmagadora maioria dos manuscritos primeiros apresentados a uma editora?
Grasset responde: em nome do gosto, do bom gosto, vamos lá. “Mas será você o juiz perfeito do gosto? Será você a última e decisiva palavra quanto a gosto literário? Não será pretensão a mais?”
É que se um editor não acreditar que possui um sentido do gosto e da coisa literária suficientemente seguro para estar certo de que uma obra de valor nunca por nunca poderá escapar à sua clarividência, deve imediatamente mudar de profissão. Mas a questão também se joga muito no chamado conselho de leitura de uma casa editora, uns senhores assalariados, escritores, críticos, professores, que podem recomendar ou desaconselhar o original de um desconhecido. Os conselhos de leitura das editoras podem fazer de um manuscrito inteiro de autor desconhecido uma primeira leitura rápida - entre três e dez minutos por cada original, calculem. A maior parte deles são imediatamente eliminados, postos à disposição do autor – ou recuperá-los, ou deixá-los ir para o lixo: as editoras têm uma carta previamente escrita, impessoal, a recusar o manuscrito e a deixá-lo à disposição do autor desconhecido. Uma carta que é enviada ao autor passado cerca de um mês. Um mês, ou dois, por uma questão de boas maneiras, para dar a ideia de que o seu manuscrito levou um mês ou dois a analisar pelo conselho de leitura, quando pode ter levado uns breves dez minutos.


Bernard Grasset manda ao seu conselho de leitura os livros que numa primeira vista de olhos não o desiludiram por completo. Pede um relatório. A decisão deixa de depender unicamente do seu critério. Passa a depender de uma espécie de média tirada entre as opiniões dos membros do seu conselho de leitura.
Em geral, ainda segundo Bernard Grasset, cabe aos conselhos de leitura o papel de advogados da mediocridade, por serem eles os indispensáveis curadores dos valores médios de quanto se publica.

                            

Eu não sabia, mas pelo que li num número já antigo da revista francesa Lire, a primeira coisa que os membros dos conselhos de leitura se perguntam quando pegam num original desconhecido é “que idade tem o autor?” – e se for uma autora, mais perguntam. E também lhes interessa eventualmente a qualidade da carteira de contactos do autor ou autora desconhecidos. É melhor que essa carteira seja apreciável. E, diz quem sabe, vale mais ser jovem e bonita do que velha e frasco, se se quer ter hipóteses com um manuscrito de estreia. E fiquem sabendo que se dá atenção máxima aos assuntos que estão em voga no momento. As confidências de um serial killer ou de um pedófilo têm edição garantida, hoje em dia, acho eu, e podem ser mesmo disputadas por vários editores.

     

(Ou será por isso mesmo, a voga, os temas e as personalidades do momento, que a prosa portuguesa do presente é em muito dominada pelos apresentadores de televisão, pelas modelos mais faladas nas revistas, pelas actrizes de telenovela ou pelos simples locutores de telejornais, finamente designados por pivots… )

                                   

Umberto Eco pôs-se uma vez na pele de um membro de conselho de leitura de uma editora e depois publicou os seus relatórios de leitura fictícios. A Bíblia tinha sido presente ao seu critério de edição e Eco, no seu relatório, desaconselhava vivamente a publicação, a publicação da Bíblia, sublinhe-se: não passava de  uma salsada monstruosa que de certeza não iria agradar ao público.
  
                                                            

Sobre o D. Quixote, ficava a sensação de que o autor tinha acabado de sair da penitenciária e que andava mal de vida. E quanto a Proust, sim, talvez, mas era urgente rever toda a pontuação.
(E já que se fala de Proust, é bom não esquecer, que André Gide era um jovem leitor ajuramentado de uma casa editora – Galimard, creio - quando desaconselhou a publicação da Recherche do mesmo Proust.)


Mas vá lá que quando um editor quer mesmo publicar um autor desconhecido, está-se marimbando para o conselho de leitura. E a pergunta premiada é: quando é que um editor que mesmo publicar um autor desconhecido contra o parecer do seu conselho de leitura? Ora bem, quando ele vem bem recomendado. Quando com as recomendações ele lhe traz garantias financeiras de não perder o seu rico dinheirinho; ou seja, quando o autor conta com o apoio de um patrocinador; ou quando ele, autor, tem de seu o suficiente para comprar uma primeira (ou uma segunda, sabe-se lá) edição do seu próprio livro.
Se um editor não publicar senão as obras que se impõem, que possam trazer algo de novo e de bom às letras, aquilo a que Grasset chama as obras necessárias, terá contra si todos os escritores medíocres da vida ( que é o que mais há), exactamente aqueles que fazem a opinião.

               

Porque a opinião em geral, e a literária em especial, não é feita por alguns poucos homens de génio que atravessam uma época, mas sim pelos profissionais da literatura, incapazes de se elevar acima da concepção que na época deles vigora sobre a escrita. Essa concepção meramente temporal, limitada, digo, pela moda do tempo, é a que, segundo a crítica, terá de servir de bitola aos talentos.
Pois é, uma nova obra literária, para ser publicada, deve equilibrar-se pacificamente entre os valores médios do seu tempo. Restando saber qual o grau de mediocridade intelectual e literária que é aceitável em cada tempo, em cada moda, e qual o grau a partir do qual, em cada época e segundo cada moda, a mediocridade é impossível de tolerar.
   
                                                                   

É. A mediocridade pode ser, tem que ser, a bitola de tudo, a referência, o padrão, a partir dos quais tudo é ou não é. A mediocridade e não o génio. A vida é assim. A vida e as vidas não podem ser governadas pelo génio. Seria o caos, o apocalipse. E o bom viver só existe se pautado por uma mediocridade aceitável – diria facilmente aceitável, em cada tempo, em cada moda.
Numa casa editora é ao conselho de leitura que cabe esse papel de juiz da mediocridade aceitável, ao dizer: “pode-se publicar esta obra, porque ela não é pior do que esta, aquela e aqueloutra que esta casa já editou.”
O mundo das letras (e o da política?) pertence aos medíocres. São eles a maioria. E são eles que fazem a opinião – não sou eu, má língua, que o digo, é precisamente o famoso editor francês Bernard Grasset que o afirma.



Bom, e se no conjunto das publicações de uma editora não encontrarmos muitas obras que tragam qualquer coisa de novo e de bom ao mundo das letras, não é necessariamente defeito do editor, é questão de indulgência, da indulgência que é própria do nosso tempo.
Bernard Grasset escreveu estas coisas em 1929. E, segundo leio e segundo tenho conhecimento, tudo isto é assustadoramente actual – então no que se refere à indulgência do tempo nem vos digo nada…
       Grasset fala, em 1929, da perda do respeito pela coisa escrita. (Coitado.) O que permite dizer a muita gente, em face daquilo que se publica hoje em dia (e em 1929 parece que também),”então se aquele ou aquela publicaram, porque diabo não poderei eu publicar também as minhas redacçõezinhas, as minhas memórias, a minha vida que dava um romance tão lindo. Não terei eu o mesmo direito?”
          Pois é. Não tem. E ao mesmo tempo tem, claro que tem.

                                                          


O sucesso, é bom que se note, o sucesso em literatura e em edição, constitui uma excepção à grande regra da mediania, da banalidade. Da mediocridade. E demais, seria perigoso pretender que foi unicamente o valor literário de uma obra aquilo que a impôs ao gosto do público. “Aquilo que o público gosta”, costumava, e costuma, dizer-se. Fórmula e critério que, segundo alguns mais experimentados do que eu, não passa de uma ideia pueril e que contém em si não pouco desprezo pelo público.
E de tudo isto me lembrei anteontem a propósito do número considerável de pessoas que por carta, por telefone ou pessoalmente, ao longo dos meus anos de Antena 2, solicitaram os meus textos e me perguntaram quando me resolveria a publicá-los em livro. E eu nunca me resolvi. E nem nunca nenhum editor pareceu interessado nisso. Provavelmente por todas ou algumas das razões que eu desfiei atrás.

                

E daqui me vem a convicção: literatura universal?, oh, senhores, literatura universal foi, é e será apenas aquilo que os editores queiram que seja – recomendada, bem capitalizada, etc.. Porque aquilo que um editor escolhe passa a ser literatura. É literatura. E aquilo que um editor recusa, não é literatura. Nunca será literatura. É assim e acabou-se.
Aliás, o nosso Bernard Grasset entende mesmo que a lógica e o verdadeiro interesse da grande literatura mandam que uma obra cuja publicação não se imponha por si jamais deverá ser publicada. E… bom, não sei o que seja isso de uma obra se impor por si se não levar um empurrão dos outros, de alguém, de algum lado, se não trouxer bom dinheiro atrás dela.


Mas enfim, está bem. Eles é que sabem. E agora é que com propriedade se pode dizer que eles é que têm os livros.


                            


Ou então, esta coisa de escrever e ser editado são tudo histórias, tretas, acasos. Ou, como o próprio Bernard Grasset disse em 1929, contos da mediocridade mais ou menos aceitável.


2 comentários:

  1. Que tristeza que tão pouca gente (ou neste caso ninguém) comente este texto. Estão concerteza todos muito ocupados a traçar perfis no Facebook e a manter aqueles diálogos tão cativantes e profundos com os milhares de amigos...Pois olhem a mim o Joel faz-me falta, tal como o ar que respiro.
    Quanto ao blog, que saudades dos tempos em que se publicava pouco, mas bom e em que as livrarias eram verdadeiras "catedrais" do conhecimento...Hoje é tudo para usar e deitar fora...Bem haja.

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  2. Só não comemtei, porque ainda não tive tempo de o ler...

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