quarta-feira, 6 de novembro de 2013

     UM BILHETE, UM RETRATO E UM ANEL


      
        Há horas nesta vida  que são mesmo sei lá o quê – do diabo? Horas, coincidências, azares, predestinações…


       No dia 24 de Abril de 1864, Meyerbeer, o rei da ópera parisiense, o judeu mais odiado por Wagner, cai à cama gravemente doente. Ainda assim, no seu apartamento da Avenue Montaigne – dizem que modesto, apesar de ele ser um dos mais populares, e certamente dos mais bem pagos compositores do tempo – superintende uma equipa de assistentes que copiam as partes cavas da sua última partitura, L’Africaine


       E no dia 2 de Maio desse 1864, Meyerbeer solta o último dos seus melhores suspiros e apaga-se, morre.


       E no dia 2 de Maio desse 1864, depois de ter corrido a meia Europa de Viena, de Zurich, de Milão, de Basileia, Herr Pfistermeister (Franz Seraph von Pfistermeister), o secretário particular do rei solitário, sonhador e sentimental chegado dois meses antes ao trono da Baviera, encontra finalmente, em Sttutgart, o homem que procura, Richard Wagner, o eterno fugitivo dos credores.


       Herr Pfistermeister entrega a Richard Wagner, da parte do seu rei, um bilhete, um retrato e um anel. Ou dizendo de outra maneira, Pfistermeister oferece a Wagner a protecção pessoal do novo rei da Baviera, o que equivale a dizer que oferece a Wagner a redenção de vida, o que ainda equivale a dizer que oferece a Wagner os meios de se livrar para sempre dos seus algozes credores, e os meios de realizar todas as suas mais caras e improváveis fantasias artísticas.
       Não, Wagner nunca julgara possível que tal prodígio pudesse algum dia acontecer. E deve ter ficado especado, paralizado, de boca aberta, a olhar para Herr Pfistermeister, sabe-se lá se desconfiado. Aquilo seria alguma partida que algum dos seus amigos lhe estava a pregar? Seria uma cilada? Seria um truque abjecto de algum dos seus (muitos) credores?
     Não era. Não era nada disso. Era verdade. Era real. Wagner estava a olhar para o homem sem pinga de sangue. Acho eu que devia estar – como eu estaria. E mesmo os seus mais próximos, ao saberem da novidade a custo se refizeram da estupefacção. E porque se lembravam de o ter ouvido dizer num dia em que a vida lhe andava para trás, muito para trás, vocês verão que um dia, de repente, os véus do destino se abrirão para mostrar ao mundo a minha mais indescritível felicidade.


       E para que essa felicidade fosse ainda mais indescritível e inominável, no preciso dia em que o emissário do rei lhe traz a protecção régia e o convite para o palácio, outro emissário lhe chega com mais novas de alegria ao comunicar-lhe o falecimento nesse  mesmo dia do seu maior inimigo – de raça e de arte – Meyerbeer.


     Wagner confessa a Cosima que por outro lado, e pensando bem, a morte do detestado Meyerbeer naquele preciso dia foi uma pena. Foi uma pena e foi um golpe de sorte para Meyerbeer. E foi golpe de sorte porque assim, morto, a providência poupava Meyerbeer de assistir, sem dúvida cinzento de raiva, ao triunfo final do seu inimigo Richard Wagner.
       E mais nada. Como disse, a protecção régia vai libertar Wagner de todas as atribulações de tipo material que lhe envenenavam a alma, libertando-lhe por consequência o estro para os mais altos vôos de arte.

       Naquele dia 2 de Maio de 1864 Wagner tinha cinquenta e um anos. Os mesmos que Verdi.

                                                                               
                                                                     


2 comentários:

  1. Moral (uma das várias possíveis...) da história: sem patronos pouco (ou nada) se consegue.

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  2. Sem dúvida, prego.

    Mas sem talento, nem tenacidade, não se conseguem bons patronos.

    E dois anos mais tarde a Europa mudava: a Prússia batia a Áustria, numa célebre peleja, abrindo o caminho para o ansiado nascimento da Alemanha, sob a sua égide - o qual, por seu turno, acarretaria o fim do Reino da Baviera...

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