terça-feira, 9 de abril de 2013




          UM DIA GOSTAVA DE IR A S.PETERSBURGO
    


        
       Claro que lhe imagino um azul dominante, o primeiro elemento onírico de quem nunca esteve num sítio mas que traçou desse sítio uma topografia, fez dele um desenho, compôs-lhe um enredo, inventou-lhe as dimensões, atribuíu-lhe uma cor, à força de ver a realidade representada em fotografia ou em filme. 

           E é evidente que eu não podia evitar o azul na minha falsa memória de S.Petersburgo, o azul e o ouro do Ermitage, o azul certamente enxovalhado do curso do Neva.
E por falar em Neva, é inevitável pôr em S.Petersburgo, por cima do azul, o branco dos invernos e ver a magnífica carruagem do czar e da czarina a entrar os portões do Palácio desse Inverno, e até imaginar o dia 17 de Fevereiro de 1880, quando a sala de jantar do palácio, por efeito de uma acção anarquista, explodiu dez minutos antes de o czar se sentar à mesa.       

E ver o suporte do poder do czar e da czarina – se ainda não se transformou em condomínio de luxo - a tenebrosa fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, onde o czar Pedro, o Grande matou o próprio filho.  

                                                                 

         É imprescindível pormos cor nas cidades que não vimos. E para S.Petersburgo já tenho bem boas cores, os tais azuis e os tais ouros das monarquias sanguinárias, dos revolucionários e dos museus maravilhosos. Tenho o branco do inverno. Falta uma cor, uma importantíssima cor a acrescentar à História da velha Petrogrado. O vermelho. O vermelho do sangue da repressão czarista e o vermelho das primeiras bandeiras (também vermelhas) que contra esse sangue se levantaram.

         Talvez muita gente não saiba que no dia 24 de Outubro de 1917 Lenine andava a fazer uma figura triste nos subúrbios de S.Petersburgo. Tinha rapado a pêra e tinha posto um chinó. Parecia um cómico de província. Mas era a maneira mais expedita de se disfarçar de operário e de se misturar com a multidão, já que tinha a cabeça a prémio.
         Nesse dia, S.Petersburgo formigava de gente na expectativa de um magno acontecimento. Os exércitos imperiais tinham debandado das frentes de guerra e muitos dos soldados tinham vindo a pé para casa. Dezenas de milhar de desertores andrajosos andavam, portanto, pela cidade a mendigar. Os cidadãos circulavam pelas ruas à toa. O quê, e quando, e onde, poderá acontecer alguma coisa?


Mas os teatros funcionavam e os cafés estavam cheios. O levantamento dos operários é que estava iminente. O governo acumulava tropas na cidade, na inútil precaução (como no Barbeiro de Sevilha) de reprimir o levantamento popular.
Lenine hesitava quanto à marcação do dia exacto para a greve geral e consequente sublevação contra a ditadura de Kerenski. Trotzki discordava.

         


Trotzki não precisava das massas trabalhadoras para nada. Entendia que para avançar com a revolução a primeira coisa a fazer não seria atacar directamente o Palácio de Inverno, ou seja, o governo.
A primeira coisa a fazer seria neutralizar a máquina do Estado. E para isso as massas operárias sublevadas só vinham atrapalhar. Sem a máquina do Estado a funcionar não haveria governo. O exército, os junkers e os cossacos fiéis a Kerenski acumulavam-se em pontos-chave e poderiam reprimir as massas amotinadas com a maior das facilidades. O que não podiam era travar a acção dos mil homens discretos, treinados e prontos para tudo que Trotzki tinha a desenvolver manobras invisíveis no terreno, divididos em dez grupos de cem, disfarçados entre a chusma, misturados com o caos que reinava na cidade, a infiltrarem-se nas centrais telefónicas e telegráficas, nos escritórios, nos ministérios, no estado-maior, nas centrais eléctricas, nos gasómetros, nas estações de caminhos de ferro.
Para desencadear a acção revolucionária Trotzki precisava só de um pequeno grupo de homens silenciosos e prontos a intervir nos pontos vitais do funcionamento do Estado. No pensamento de Trotzki, a revolução era tão somente um problema técnico.

     O grupo dos mil homens de Trotzki era composto por operários escolhidos a dedo nas fábricas Putilov,  marinheiros da esquadra do Báltico, soldados dos regimentos letões. E eram engenheiros. Operacionais enquadrados por engenheiros. E o principal cérebro desses técnicos era um xadrezista chamado Antonov-Ovsienko. Desarmados, entravam e saíam dos sítios onde se controlava a máquina do Estado, tomavam nota de tudo, rotinas, itinerários, topografias, horários, asseguravam-se da planta das condutas subterrâneas do gás, da água, da electricidade e dos fios do telefone e do telégrafo. Levaram um mês a treinar, invisíveis. Ninguém lhes passava cartão. Ninguém dava por eles. Quando chegou a hora…

         Mas qual era a hora? Para Lenine, o dia 23 era demasiado cedo e o dia 26 era demasiado tarde. É a 24 de Outubro que Trotzki dá a ordem para desencadear o ataque. Tirando Lenine, os homens do partido bolchevista, reunidos no Smolny para um congresso decisivo, não sabiam de nada.


         E em poucas horas, e praticamente sem mortos, os comandos de Trotzki tinham nas mãos a máquina do Estado russo.
                                                                      
                                                                                

O governo estava reunido no Palácio de Inverno, fortemente guardado, à espera dos acontecimentos. A chatice era que eles não sabiam ao certo o que vinha a ser um acontecimento. A chatice era que os acontecimentos já tinham acontecido e eles não sabiam; a chatice era que já não podiam comunicar com ninguém, dar ordens, desencadear um contra-ataque.
Os acontecimentos aconteceram sem acontecerem como se esperava. A máquina do Estado estava paralizada. Os pontos chave estavam nas mãos dos mil homens de Trotzki e as pontes do rio Neva estavam guardadas. Era impossível entrar na cidade.
         Trotzki entrega a revolução a Lenine já prontinha, numa bandeja.
Lenine já pode tirar a peruca e tornar a deixar crescer a pêra e o bigode. A revolução de Outubro tinha sido muito simples. Agora era só ir prender Kerenski ao Palácio de Inverno.


        Eu, quando calha viajar, faço-o sobretudo para estar nos lugares onde a História aconteceu.
      E diga-se, já agora, que quando mais tarde, com Lenine já mumificado, Trotzki  se zanga com Estaline e tenta a mesma táctica para o arredar do poder, está ultrapassado. Perde. Estaline já lhe conhecia o jogo. Tinha tomado as devidas, e neste caso úteis, precauções contra o tacticismo de Trotzki.


        S.Petersburgo: azul, ouro, branco e vermelho. O Ermitage. O Smolny. As avenidas do rio Neva. O Palácio Maria. O Teatro Marinski. O Palácio Tauride. O Palácio de Inverno. A fortaleza de S. Pedro e S. Paulo – se ainda não for condomínio de luxo. Lugares onde se representaram as as comédias e as tragédias da cidade. Um dia gostava de lá ir.  Mas são demasiadas horas de voo para um velho fumador impaciente.

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