sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013






BAYREUTH – O IDEAL

 Para realizar a minha obra, e para bem cumprir a minha missão,  preciso de tanto quanto uns 10.000 talers. Com 10.000 talers mandaria levantar perto de Zurich um teatro de madeira, equipado apenas com o que fosse necessário ao Siegfried. No princípio do ano, mandaria publicar nos jornais alemães convites a todos quantos apreciam o drama musical. Todos teriam entrada gratuita, a juventude, as sociedades corais. Siegfried seria representado três noites durante uma semana. Acabada a última representação, o teatro seria desmantelado e eu queimaria a partitura de Siegfried. Aos que tivessem gostado diria: “é a vossa vez, se desejardes coisas novas como o Siegfried dai-me o dinheiro necessário.”
Dá vontade de rir? Pois dá. Mas foi o que Richard Wagner, nascido a 22 de Maio de 1813, está aqui está a fazer 200 anos, disse. E disse-o no dia 20 de Setembro de 1850, quando no espírito dele ganhava mais e mais consistência a ideia de um teatro só para ele, exclusivamente para ele.
Toda a gente sabe, e quem não sabe e leia isto ficará a saber, que Wagner era um idealista dementado de egocentrismo e de oportunismo, e que, mesmo por isso, dava nota de conhecer a realidade de ginjeira, e de nela saber trabalhar se e quando tal fosse necessário, sem perder de vista a oportunidade redentora, transfiguradora, que, naquele modo particular de ver as coisas e a vida que era o dele,  a música e o drama tinham para oferecer aos homens e às comunidades.

                                                    

Bayreuth nasce então do idealismo de um artista. Arranca sobre uma realidade eriçada de naturais dificuldades. E torna-se, poucas décadas passadas, uma entidade estética, um lugar de culto, a meca do que se chegou a chamar de religião alemã.
Em 1855 escreve ele ao seu ilustríssimo sogro, Franz Liszt. Acabava de abandonar Tannhäuser e Lohengrin ao seu destino. Não queria mais saber artisticamente dessas suas obras. Entregava-as aos teatros, ao circuito comercial. Era uma concessão feita às realidades triviais da exploração teatral e do mundo da ópera. Punha-as tão somente a mendigar-lhe o dinheiro e só o dinheiro, e já nem as considerando como suas. Mesmo nas vésperas do nascimento do projecto megalómano de Bayreuth não pensava ele retirar as suas futuras obras do repertório corrente dos teatros para as fazer representar em exclusivo num lugar único, fixo, e artilhado com as mais específicas e ideais condições?
Bayreuth terá sido o único teatro lírico do mundo a ser concebido e construído com propósitos eminentemente artísticos. Bayreuth não seria um teatro destinado a comemorar mais um poder régio, ou uma classe social, ou lugar de representação  mundana que fosse uma necessidade de Estado ou de regime. O objectivo era muito, mas muito mais perturbador. Eu diria mesmo transgressor. O que havia para comemorar em Bayreuth era um só homem e o seu génio. E um homem que, não obstante esse génio, como cidadão era institucionalmente comum.
Quem era para ser comemorado em Bayreuth era Wagner. 


E era-o sob o pretexto da sua música transgressora do tempo e do modo. A música era o pretexto idealista e com ela a arte alemã (die heil’ge deutsche Kunst), e ainda que tal música fosse ao tempo geralmente considerada como pouco representativa de tal arte alemã.



Bayreuth, segudo o esquiço inicial do seu mentor, estaria para ser um empreendimento democrático e progressista. As concepções que tinha do drama musical, a arte do futuro, eram para ser oferecidas a toda a gente sem distinções sociais. Por uma vez na História da Música, ou da grande Arte, uma vanguarda não era para ser feudo de um pequeno clube de iniciados. Bayreuth era para marcar um corte com o corriqueiro entendimento comercial do que fosse uma casa de espectáculos. O seu produto visava a superior emoção dos fiéis – o que poderia ser mais um elemento de irracionalidade acrescentado à psique colectiva do século XIX alemão, e mais tarde, já no século XX, a ser usado pelo III Reich como ilustração dessa mesma e tão invocada irracionalidade da alma alemã.
Mas como tornar Bayreuth e o festival artístico-religioso que para ele Wagner sonhava acessível ao grande público?
 Claro que essa questão de idealismo moral nunca seria resolvida.
Logo nos seus primórdios, e graças ao esquema de financiamentos e patrocínios, a independência de Bayreuth ficaria refém das elites político-financeiras – na mais risonha das hipóteses, e quando muito, das elites intelectuais.



Basta ver logo na edição de 1876 do festival o pano de boca a abrir  para um auditório de cabeças coroadas, de aristocratas, e altos burgueses capitães da finança internacional. E desde então até aos dias de hoje tal situação pouco mudou, se é que mudou mesmo alguma coisa.


                                                            

Os caminhos do idealismo populista e da grande arte são pedregosos, quando aos pés do caminhante se levantam a cada passo os espinhos da realidade.


O jovem e estranho rei Ludwig da Baviera está a falar com a sua prima Sofia:
- Cheguei a sentir acanhamento.
- Como?
- Sim, quando ele me agradeceu.
- E então?
- Assegurei-lhe… bem… assegurei-lhe que viria a ser cuidado meu conseguir os meios necessários para concluir… e para levar à cena… e tal como ele ambicionava… os seus Nibelungos…
- E ele?
- Inclinou-se, comovido. Inclinou-se sobre a minha mão. E assim ficou por longo tempo…
- E estareis em condições de cumprir a promessa, meu querido primo?
- Agora disponho de poder. Quero usá-lo para lhe suavizar a vida. Sim, porque serei eu o único príncipe capaz de dar realidade…
- Dar realidade aos sonhos mais estranhos, estou a ver…
- Aos sonhos artísticos mais desmedidos. Serei eu o antídoto posto ao dispor de Wagner contra a mesquinhez da vida e dos homens, eu… para quem ele já compôs uma marcha militar… por quem ele se naturalizou bávaro…
            Já se sabe que as intrigalhadas da corte, a desagradável e excessiva intromissão de Wagner nos negócios de Estado em anos seguintes, viriam a minar as relações entre o artista e o seu príncipe
            - Estais a ver? – diz Ludwig à prima Sofia. – Gente miserável e cega! Falam de caír em desgraça e ignoram que aquele meu amigo é tudo para mim, sempre o foi…
- Continuará a sê-lo, meu primo?
- Sim, sempre o foi, e sempre o será até à morte.
Numa primeira fase do projecto de Bayreuth, o rei negaria auxílio ao seu antigo protegido. Ainda assim, no momento mais crítico, mau grado as dificuldades financeiras por que passava a coroa da Baviera, seria essa Baviera e o seu rei a resolver algumas dificuldades de peso.
  Mas uma faceta importante do ideal wagneriano era a independência dos poderes políticos, económicos e comerciais em prol do cumprimento do mistério da arte do futuro e dos novos e revolucionários modos de fruição do drama musical.

                                                                                                           Perante o assédio incansável da realidade, Ludwig volta a intervir. Envia, a título de empréstimo, os fundos precisos para aquela fase da obra. Em compensação, as verbas que houvesse para cobrar dos mecenas, as subscrições e mais metade do lucro de bilheteira dos espectáculos realizados reverteriam para os cofres reais até à liquidação total da dívida.  Também os cenários, adereços de cena e guarda-roupa passariam a propriedade da coroa.



E que ficasse bem expresso: aquela seria a última intervenção de Sua Majestade nos inconcebíveis negócios de Bayreuth.


E nem nesta época de munificências dos estados, mesmo os mais cultos e mais dados à Estética, as coisas culturais eram coisas em que se mexesse impunemente a fundo perdido. E era sempre o mesmo problema de amortização de défices orçamentais e de endividamentos públicos a traçar as regras de convivência entre a cultura e o mecenato de Estado. E, claro, tudo isso contribuiu para amenizar os exacerbados idealismos do artista de fazer erigir com independência um teatro para o povo, isento dos torniquetes sociais que as classes dominantes apertam em redor das instituições que ajudam – na realidade  nunca de forma absolutamente desinteressada.


Uma coisa era certa – ou duas: Wagner estava bem longe de querer ser um músico de Estado; Bayreuth nunca por nunca ser deveria ficar como teatro de Estado, inserido numa lógica de Estado para o teatro musical.
Mas o auxílio do rei marcaria sem dúvida o futuro da empresa.
Wagner criava compromissos inescapáveis. O défice do festival de 1876 escrevia o destino de Bayreuth, penhor nas mãos de Munique até 1906, ano em que os débitos foram resolvidos.




E que haverá para dizer de Wagner que ainda não tenha sido dito? Pouco. Nada. Mas apetece. Porque às vezes até apetece o que se chama de ver (e ouvir) chover no molhado… ou assar carapaus fritos…
Wagner era uma consciência criativa que se afirmava por si só, que era um mundo em si mesmo, era uma totalidade, um universo inteiro de compreensão tanto dos mundos estrictamente  musicais e composicionais quanto de questões de tipo filosófico, existencial, estético – moral.
(Ouça-se, se houver à mão, a caminhada dos deuses para o Walhalla, do Ouro do Reno.)
Não foi fácil a Wagner escolher os seus intérpretes para a temporada inaugural de Bayreuth. Pretendia vozes, está bem, mas não dispensava mentalidades ou talentos cénicos aptos a representar com espontaneidade. Queria aquelas inteligências músico-dramáticas ideais, pouco viciadas na interpretação rotineira das obras do repertório.
Na véspera da estreia, após meses e meses de estudo e preparação do espectáculo, Wagner transmite aos seus intérpretes uma parte decisiva do seu ideal:
- Último pedido aos meus artistas. Clareza! As grande notas, as grandes frases virão naturalmente. O que mais importa são as pequenas. E nunca cantem para o público. Cantem para o vosso interlocutor. Nos monólogos poderá levantar ou baixar os olhos, mas sem nunca deixar de olhar e frente. E um último desejo… não vos esqueçais de mim…
Manda afixar em todos os lugares frequentados pelos artistas um panfleto com as suas últimas instruções. Nas paredes do recinto da orquestra afixa uma recomendação.
 NÃO PROCUREIS FAZER MILAGRES. TOCAI PIANO E PIANÍSSIMO E TUDO CORRERÁ BEM.
O milagre estava compreendido na própria música, está bem de ver.


Outro ponto do ideal: as luzes permaneceriam apagadas ao longo de toda a representação – o que hoje em dia nos parecerá de somenos, mas que rompia com o modo instituído de apreciar o espectáculo de ópera, acontecimento mundano e social por excelência, muito antes de ser evento cultural.


Mas o idealismo do mestre levaria alguns maus tratos. Wagner enfurece-se ao ouvir estalar os aplausos com cena aberta – como de costume em qualquer teatro desse mundo, e como se o que ali acabava de se representar fosse uma operazeca banal e comercial de um Mayerbeer, de um Donizetti, ou de um Verdi.



Por ocasião do último dos seus dramas, o Crepúsculo dos Deuses, Wagner foi muito aclamado, e aclamado com um sentimento novo.  E subiu ao proscénio. E falou:
- Tivestes o ensejo de ver aquilo de que sou capaz. A vós compete agora querer. E se quiserdes, a arte alemã será uma realidade.
Em 1883, ano da morte do mestre, o ideal de Bayreuth, privado do sopro de vitalidade do seu criador, arriscava-se ao desaparecimento. A menos que um herdeiro espiritual de idêntica envergadura tomasse conta da empresa.




Alguém imaginaria Cosima, a viúva, como esse herdeiro espiritual? Provavelmente sim. E o certo é que Cosima deitou mãos a ideal wagneriano, adoptado como linha e rumo nada mais do que a fidelidade ao que poderia ser entendido como a mais íntima vontade do mestre. Criticadíssima, Cosima foi censor implacável de toda a improvisação, de toda a hipótese de reformulação inovadora desviante da palavra sagrada. Mal sonhava, a pobre, para o que estava guardado o ideal do mestre…

 



 BAYREUTH –  A REVOLUÇÃO



(Ouça-se, se possível, a cena final de Siegfried; e logo de seguida a cena da imolação do Crepúsculo dos Deuses.)


Bayreuth seria um espaço de realização da vida, na plenitude e na totalidade em que Wagner a concebia. Criar Bayreuth era um acto genesíaco próprio de um deus teutónico, um gesto demiúrgico de Wotan. Era criar o universo próprio, para activar os milagres; para fazer viver e morrer, miserável ou gloriosamente, as criaturas ideais engendradas por uma força superior; para redimir e castigar; para o ódio e para o amor seu vizinho; para a salvação e para a queda.

                                   

                                                 

  Na visão enorme de Wagner criar Bayreuth era realizar o historicamente necessário ao renascimento de uma visão alemã da vida, essa então em crise profunda. Era estancar a chaga aberta no peito de Amfortas.



Para cumprir o ideal wagneriano força era criar tudo de princípio. A começar pelo edifício do teatro, a continuar nos artistas, a terminar no público.
Wagner obrigava-se a criar até o seu público, porque esse público, novo, virgem de preconceitos, limpo dos lugares-comuns e das vulgaridades impostas pelo comércio da ópera, devia fazer parte da sua obra. Se Wagner não conseguisse criar um público novo, nada feito, o sonho ficaria para sempre irrealizado.
Ao criar uma nova música, havia que prosseguir criando um novo teatro, e para um novo teatro havia que inventar um novo artista-intérprete. Criando de novo música, espaço e intérprete, para que a criação funcionasse em pleno sobre a realidade, obrigatório seria criar um novo público. E criar um novo público não seria menor utopia do que criar um homem novo, o cidadão germânico perfeito. E titânico, à imagem do seu criador.
O meu drama dos Nibelungos será representado de seguida, um grande festival que seja organizado propositadamente. Um festival que durará três noites, precedido pelo prólogo, representado na véspera.
Acrescentaria  ele também que só depois da revolução poderia pensar num empreendimento daquele porte. Sim, porque só uma revolução lhe poderia proporcionar os artistas e, sobretudo, o público, dignos da sua obra.
E diria ele mais: com as suas óperas revelaria aos revolucionários qual o sentido último da revolução que faziam. Só assim os revolucionários estariam perfeitamente equipados em termos de profundidade ideológica para concluir uma revolução, e até para a compreender nas suas últimas consequências.


Uma ideia de revolução que era lâmina de dois cortes – e pensando no aproveitamento que mais modernamente a ideologia nazi (que se reclamou de revolucionária) viria a fazer da herança wagneriana. O que levaria os incautos a ver projectado no retrospectivo écran da História um Wagner perfilado, camisa castanha e braço em saudação romana. E só porque a ideologia nazi, supostamente armada do mesmo ideal, se propunha finalidades semelhantes à revolução wagneriana, a menor das quais não seria por certo a ressurreição idealista de uma pureza cultural ameaçada por inimigos internos, nibelungos a quem era aconselhável estampar uma estrela amarela no peito. 
   
                                                                                                                                                         

Sim, Wagner, fosse ele vivo, não iria muito fora disso.

                   
  
(Aqui, sendo preciso música, não ficaria mal a Marcha Fúnebre do Crepúsculo dos Deuses.)

                                       

E assim, Hitler se propunha dar continuidade ao ideal nacional que se consubstanciava na construção e na consagração de um simples teatro.
Wagner terá sido antes de mais, e acima de tudo, um empolgante fenómeno cultural, apesar de todas as preconceituosas obsessões. Preconceitos e obsessões, aliás, caldeados na polémica do tempo histórico que vivia.


Wagner consultava-se com os poderes da terra, e dessas tão imponentes potestades hauria a substância das profecias que anunciava ao mundo, tal como o deus Wotan, disfarçado de caminhante, procurando Erda, a deusa da terra, e ouvindo-lhe as sabedorias trágicas quando ao devir dos da sua estirpe.

                                                
                                                   
                
Wagner estava como aquele Wotan-Zeus que acabara de criar e que em tudo o que existia apercebia uma projecção de si próprio. Aquele Wotan-Zeus que angustiado monologava e se lamentava da sua condição divina, da força impossível do seu ideal de deus criador a quem só verdadeiramente importava o que nunca tinha acontecido.
Iluminado pelo colossal carisma estético-cultural, Wagner terá sido um arauto do seu tempo e correlativas contradições, e uma voz de tal modo forte e penetrante de ideal e de catástrofe que as suas reverberações se propagaram violentamente pelas gerações do tempo que se lhe seguiu. Só nessa condição, e em alguma medida, lhe poderá ser assacada a paternidade psico-cultural do hitlerismo, num sentido em que Hitler, a seu modo peculiar, interpretou as vozes da terra e do sangue, a tradição, a mundividência alemã, e assim segundo os horrores da herança musical wagneriana.
A profecia wagneriana, segundo a qual só a sua obra acrescentaria sentido a uma revolução, pode ter sido cumprida, ainda que diferida no tempo, na causalidade, na circunstância.
Wagner desafiara musicalmente todas as forças primitivas, terra, fogo, sangue, tempo, o cataclismo, a intolerância, a maldição e a bênção. E as forças desencadearam-se no século seguinte em apocalipse de chamas, enquanto muitos lhe invocavam o nome.

                     





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